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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

“Vemo-nos em Agosto”, Gabriel García Márquez

02.04.24, Almerinda

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“Vemo-nos em Agosto”, Gabriel García Márquez

 

Foi com “Cem Anos de Solidão” que me iniciei e maravilhei com Gabriel García Márquez, já lá vão muitos anos. Com “A Hora Má: o Veneno da Madrugada”, tentei, mas não fiquei fascinada como com aquele primeiro romance incrível que me permitiu horas e horas de deslumbramento. Até que de novo fiquei rendida ao grande Gabriel García Márquez com “O Amor nos Tempos de Cólera”, um dos livros da minha vida. Outros livros do autor colombiano oferecidos mas ainda não lidos têm ficado por desvendar na estante, a aguardar a sua vez.

Dez anos após a morte do autor, chegou às livrarias “Vemo-nos em Agosto”, lançado no dia em que Gabo faria 97 anos. Trata-se do seu último livro. Em 1999 Gabriel García Márquez anunciou que estava a escrever um romance com cinco contos autónomos e foi escrevendo várias versões até que a doença lhe tirou as forças para o dar por concluído. No Prólogo, assinado pelos dois filhos do autor, referem as palavras do pai, consciente da fragilidade da sua condição:  “A memória é ao mesmo tempo a minha matéria-prima e a minha ferramenta. Sem ela não há nada.” (pág.7). Ao tomarem a decisão de divulgar o livro, apoiando-se nas várias versões existentes, Rodrigo e Gonzalo García Barcha reconhecem que se tratou de “um ato de traição”, pois para o pai “Este livro não presta. É preciso destruí-lo.” (pág.8), embora confiem que “Gabo nos perdoe”se os leitores o celebrarem.

O que poderei dizer deste pequeno livro que se lê dum trago? Ana Magdalena Bach de 46 anos, casada e feliz há 27 anos com um homem de 54 anos, com um filho e uma filha, visita a campa da mãe, sepultada numa ilha num pobre cemitério no cimo duma colina “o único lugar solitário onde não podia sentir-se só.” (pág.16). Uma vez por ano, no dia 16 de Agosto, apanhava o ferry até à ilha numa viagem de quatro horas, sempre acompanhada por um livro, apanhava o mesmo táxi, comprava um ramo de gladíolos sempre na mesma florista e ocupava o mesmo hotel. Visitava a campa da mãe, levava-lhe os gladíolos e no dia seguinte regressava a casa.

Tal como a sua vida de casada era feita de rotinas previsíveis e felizes, também aquela rotina anual a levava sozinha à ilha onde a mãe se deslocava com frequência em vida, com a desculpa de que lá tinha um negócio próprio. A experiência de uma relação ocasional com um estranho, que Ana Magdalena Bach conhece no bar do hotel, quebra todo um esquema em que vivera até então. “Nunca mais voltaria a ser a mesma.” (pág.29) “Não obstante, foram-lhe necessários vários dias para tomar consciência de que as mudanças não eram do mundo, mas sim dela própria, que andara sempre pela vida sem a ver, e só nesse ano, ao regressar da ilha, começara a vê-la com os olhos do escarmento.” (pág.31)

A ansiedade por uma nova aventura que se procura em próximos 16 de Agosto na ilha traz consigo alterações no comportamento e no sono e mudanças também na sua relação com o marido, levando-a a suspeitar que ele a enganava. Sentimentos contraditórios de culpa, humilhação, desejo, raiva, frustração e desânimo surgem ao longo do livro em diferentes momentos em que a personagem feminina se depara com diferentes parceiros ou putativos parceiros. Mas assume-se de forma activa e afirmativa enquanto mulher que aspira ao direito ao prazer, fora da sua condição de mulher casada.

Não sendo um livro incrível, é um livro que não se esquece, pois consegue transportar-nos para o insólito duma situação pouco expectável. Os pormenores das descrições dos diferentes locais, das roupas que a protagonista veste, os títulos dos diferentes livros que leva em cada viagem, os diálogos, os momentos que nos fazem rir, tornam o livro muito visual e daí ficar na memória como um momento de agradável fruição de leitura.

Não sei se Gabriel García Márquez ficaria satisfeito pela traição dos filhos. Uma coisa é certa: “Vemo-nos em Agosto” tem estado nos tops de vendas de algumas das livrarias do país e as apreciações dos leitores fiéis de Gabriel García Márquez dividem-se quanto a este livro. Em minha opinião, ainda bem que ele não foi destruído, como o autor desejou.

31 de Março de 2024

Almerinda Bento

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