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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Terra Sonâmbula, Mia Couto, 1992

05.07.22, Almerinda

Terra Sonâmbula.jpg

(Para assinalar o dia do aniversário de Mia Couto, mais um texto da série leituras pré blogue)

“Terra Sonâmbula”, Mia Couto, 1992

“Terra Sonâmbula” é o primeiro romance de Mia Couto. É um livro belo, difícil, singular. A linguagem poética característica dos livros de Mia Couto é surpreendente e recria o português com a singularidade da oralidade moçambicana. Um romance carregado de poesia. Dá vontade de fazer um glossário com palavras e expressões que nos surpreendem a cada linha.

É um livro difícil, sobre a guerra civil e sobre as consequências devastadoras na terra e nas gentes. As diversas personagens andam à deriva, em círculos, procuram mas não encontram, são náufragos, deslocados em fuga à procura de poiso seguro para viver. O medo é para muitos a única coisa que possuem. Farida, filha-gémea, facto já de si sinal de grande desgraça segundo as tradições locais, pergunta a dado momento: “Essa guerra algum dia há-de acabar?” Siqueleto, outra personagem diz que não está triste, apenas cansado da guerra.

O velho Tuahir e o pequeno Muidinga, este sem memória do passado e aquele sem perspectiva de futuro, encontram um velho machimbombo calcinado que se torna num precário, mas único refúgio-casa para se protegerem dos bandos e das feras. Junto ao autocarro encontram uma mala perdida e uns cadernos-diário de uma personagem: Kindzu. Estes cadernos que Muidinga vai lendo para si e para o seu companheiro Tuahir são um tesouro que agarra Muidinga àquele refúgio inóspito. As histórias que vai lendo ajudam-nos a viver para além do pesadelo da guerra, da solidão, do desespero.

“ – Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir. ” As histórias nos cadernos de Kindzu estão carregadas de magia, de crendices, de fantasia e alternam com a história de Muidinga e Tuahir sobrevivendo no machimbombo e nos percursos que os levam a lado nenhum. O que é sonho? O que é realidade? Quando são a mesma coisa, se fundem e nos intrigam?

Apesar do efeito regenerador que a magia dos cadernos de Kindzu despertava, Kindzu era “um sonhador de lembranças, um inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera.”  Para Muidinga não havia passado nem se vislumbra futuro.

“  - Tio, eu me sinto tão pequeno…

- É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.”

Mia Couto quis neste livro trazer-nos a dor do seu povo que após dez anos de luta anti-colonial se viu logo de seguida envolvido numa longa guerra civil cujos efeitos perduram muito para além do fim oficial da guerra.

31 de Outubro de 2015

Almerinda Bento