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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Seis Ruas, Márcia Lima Soares

03.10.21, Almerinda

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Seis Ruas, Márcia Lima Soares, 2020

Conheci a Márcia na militância política, nos activismos mais difíceis, aqueles que põem toda a coragem de afirmar a sua identidade e os seus desejos, lutando contra a tradição, o politicamente correcto, o status quo. Afirmativa, sem rodeios, invulgar, as suas gargalhadas e postura positiva destacam-na como uma mulher que ama a vida a tempo inteiro.

Na dedicatória que me escreveu no seu “Seis Ruas” pedia-me entre outras coisas que, se quisesse, ilustrasse alguma das passagens do livro e que depois as partilhasse. Não me senti tentada nem habilitada a isso. Preferi escrever um pouco sobre o que o livro deixou em mim.

Os espaços, as ruas, as casas estão povoados de memórias. Neste caso, as seis ruas, todas na margem sul, acompanham a história da narradora e do seu irmão mais velho, aquele que ela tanto desejou quando era a filha única e com o qual teve sempre uma ligação muito próxima. Sendo muitas vezes maternal, aparece sempre como a menina viva, brincalhona e que vai acompanhando o crescimento dos irmãos que entretanto vão nascendo. Ao longo das páginas, com o decorrer dos anos e nas várias ruas onde moram, as brincadeiras, as traquinices, os desastres vão surgindo e em muitos nos revemos. Alguns episódios surgem-nos mais detalhadamente, alguns pormenores são mesmo divertidos e fazem-nos recordar as peripécias das brincadeiras das crianças. A narradora não transforma num relato fofinho o que são as constipações duma criança, nem aquilo que um rabinho limpo e bem cheiroso mostrado em anúncios televisivos apaga da realidade suja e mal cheirosa de uma criança.

Os anos passam. Novos desafios. Casas mais pequenas, sonhos de um sótão cheio de projectos, divórcio dos pais, novas amizades, novas aprendizagens. Mesmo sem querermos e à medida que o livro avança há um adensar de tragédia sempre que as datas são mencionadas com o pormenor do dia, do mês e do ano. O avô que quase se afogou e, mesmo assim, a vida a continuar num concurso televisivo em que o tema eram os pássaros. Irreverentemente, Tiago cumpriu a sua promessa exibindo o “rabo muito branco a imitar a Lua cheia”. E por fim, aquele derradeiro dia quente de Agosto no regresso de um dia bem passado na praia.

Senti este livro como um testemunho de amor ao irmão Tiago. A necessidade de, em livro, a Márcia verter mais umas lágrimas por ele, dar umas gargalhadas para lhe dizer que não o esquece, que ele está sempre com ela, mesmo vivendo agora “além Tejo”. É um testemunho muito belo e sentido, pelo qual só posso dar os parabéns à irmã que ficou para contar.

Sei que a Márcia fará muitos outros livros. Acrescentando novas ruas, novas viagens, novas cidades, novas personagens. Com todos os amores da sua vida, agora que o seu amor maior, a Laurinha, vem acrescentar um novo sentido e uma nova motivação para uma vida com muitos caminhos, muitas causas e muito amor.

3 de Outubro de 2021

Almerinda Bento