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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Sangue do meu sangue, Michael Cunningham

01.11.19, Almerinda

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Sangue do meu Sangue, Michael Cunningham, 1995

A opinião de escritor admirável que tinha àcerca de Michael Cunningham quando, há já alguns anos, lera “As Horas”, foi reforçada com a leitura de “Sangue do meu Sangue”. A história começa em 1935, com Constantine, um rapaz grego que um dia partirá para os Estados Unidos para fugir da pobreza, movido pela quimera da terra das oportunidades. Aí namorará, irá casar e ter três filhos. A tensão entre o casal resulta não só das diferenças entre as culturas grega e americana, mas também das dificuldades financeiras iniciais e da forma como cada um lida com os filhos, desculpando ou não as birras, os caprichos e os sobressaltos do crescimento das crianças. A ascensão social da família, fruto do negócio de construção de casas baratas, vai acentuar a distância entre Constantine e a família, em vez de a diminuir. A inesquecível cena da fotografia de família para o cartão de Natal a enviar aos amigos não passa de uma capa que esconde a animosidade e a violência latente naquela família americana.

Com o crescer dos filhos – Susan, Billy e Zoe – cada um vai seguir o seu destino e os laços familiares vão-se tornar cada vez mais ténues e esporádicos. Casamentos, divórcios, relações fortuitas, escolher o fio da navalha, descobrir a sua identidade sexual, profunda insatisfação pessoal, o vírus da sida, o sentimento de fracasso, o viver de aparências, a fragilidade na doença, a decadência e a velhice, o reencontro e a aproximação, o amor, a solidariedade, o apaziguamento, o preconceito, a dificuldade em aceitar a diferença, a homofobia, os traumas recalcados, tudo isto vai surgindo, ao mesmo tempo em que vamos acompanhando as diversas personagens à medida que os anos passam. Até 1995 seguimos o que cada um faz, decide, sente, escolhe, sendo nesse ano que a instável “paz” e “harmonia” da família Stassos é definitivamente estilhaçada. A partir daí e até 2035, ou seja, cem anos depois da cena inicial em que o menino Constantine sonha conseguir arrancar o primeiro pimento, a primeira beringela e o primeiro tomate da sua pobre horta na Grécia natal, a narrativa correrá veloz. É o ciclo da vida e da morte. Na última cena, em 2035, Jamal quer estar sozinho quando deitar as cinzas dos pais – Will e Harry – na baía.

Admirável a forma como Michael Cunningham disseca as contradições e os sentimentos das pessoas, os seus sonhos e frustrações, as classes sociais e o estatuto que as mesmas conferem aos indivíduos, a falsidade do sonho americano, os negócios fraudulentos que geram milionários de um dia para o outro, a homossexualidade e a homofobia, a solidariedade e também as preocupações de ordem ambiental.

Sem dúvida um dos grandes livros que li este ano e que recomendo.

1 de Novembro de 2019