Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral
Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral, 2018
Afonso Reis Cabral já me surpreendera aquando do seu primeiro livro “O Meu Irmão”, pela forma séria como tratou a realidade das pessoas com síndrome de Down e os desafios que se colocam às famílias na sua forma de se relacionarem com essa realidade no que respeita aos direitos e necessidades das pessoas que são diferentes.
Em “Pão de Açúcar” Afonso Reis Cabral agarra um acontecimento ocorrido no Porto em 2006 – o assassinato de Gisberta – e transforma-o numa obra de ficção. Na nota prévia, o autor apresenta-nos um rapaz que trabalha numa oficina de bate-chapas, mas que tem o sonho de um dia ser marceneiro – o Rafael Tiago – que o abordou numa sessão de “escritor-caixeiro-viajante”, lhe entregou uma pasta cheia de documentos e lhe pediu que fizesse um romance com aquilo. “Ele esperava que a minha escrita realçasse a beleza, o tal chorar de ternura e não ligar ao que dizem.” Seguiu-se todo o trabalho de organizar aqueles papéis, o trabalho de campo e investigação dos factos e “depois baralhei com ficção, que é como se faz um romance.”
É ficção, mas ajuda-nos a compreender o incompreensível; a perceber os contextos; a desvendar as histórias de vida; a conhecer os percursos da Gi, do Rafa, do Samuel, do Nélson, do Fábio, do Grilo, do Leandro, da Alisa… Das vidas que não são cor-de-rosa nem a preto e branco. De como os estereótipos e os preconceitos nos condicionam e de como a sociedade os inculca em nós, condicionando-nos nas nossas atitudes e nos nossos actos. Em “Pão de Açucar” está lá tudo: o abandono, a segregação, a violência como norma, a miséria, “as famílias de merda”, a marginalidade, a fuga à escola, o andar ao deus dará armado em durão, a institucionalização, a sobrevivência.
No meio de tanto abandono e falta de carinho, para um rapaz que mal tem 12 anos, conseguir manter-se à tona poderá ser tornar-se dono de uma bicicleta sem préstimo que alguém deitou para o lixo e restaurá-la, ou roubar a chave do sótão do internato para desvendar os segredos lá escondidos, ou dizer por desenhos o que não se consegue dizer por palavras, ou servir-se da força física para exercer poder e estabelecer a hierarquia dentro do grupo, ou ter um esconderijo que seja só seu, mesmo que não passe de um lugar sujo. “Em 2006, havia muito que ninguém prestava atenção à ruína que fora um quarteirão do século XIX e que teria sido um hipermercado do Pão de Açúcar.”
E depois são as dores do crescimento, as contradições de quem tem de fazer pela vida, mas não tem chão onde pôr o pé. Quer-se ser amado, mas repudia-se um simples gesto de carinho.
Tem-se nojo, mas depois é-se atraído como por um ímã. Quer-se guardar segredo, mas depois tem que se mostrar que também se é dono de uma raridade.
Afonso Reis Cabral dá-nos isto com mestria, em imagens vivas, em vislumbres subentendidos, em cenas de poesia e beleza, carregadas do vernáculo e expressões do quotidiano de rapazes na adolescência. Numa fase em que se anda à deriva, em que os corpos estão a descobrir que uma tatuagem ou o tocar da pele podem queimar, a descoberta de um corpo esquisito agora muito fraco, mas que já foi poderoso e desejado, com uma história de luta e de afirmação, de resiliência e sobrevivência, como responder a tanto questionamento quando não há ninguém que nos ouça e que nos embale?
Vale a pena ler “Pão de Açúcar” não só para lembrar Gisberta, as Gisbertas, mas para perceber que a luta contra a transfobia e a homofobia não se compadece com vagos encolher de ombros ou assobios para o lado. Requer um processo de educação profundo, um respeitar as diferenças, as identidades, o humano na sua diversidade e beleza.
Termino, com algumas citações retiradas ao longo da leitura de “Pão de Açúcar” e esta notícia do “Observador” de 22 de Fevereiro de 2016: “Dez anos depois, o que é feito daqueles jovens? E da instituição? E do prédio abandonado onde Gisberta morreu? E da família da imigrante? Quem era, afinal, aquela mulher? E o que é que a sua morte deixou?”
(…)
“De certo modo estava-lhe agradecido. Até então, ninguém elogiara uma coisa minha, um trabalho destas mãos. Supus que as mães faziam igual: deixavam bilhetinhos por todo o sítio para os filhos lerem.”(pág. 59)
“… os contos da Gi eram como desenhos com palavras.”(pág. 105)
“Aquilo de querer que os outros vissem como ele, no fundo, é o que toda a gente quer: que os outros nos compreendam. Mas uns podem e outros não.” (pág. 180)
“Engraçado como aos doze anos até circunstâncias de merda permitem camaradagem.” (pág. 201)
Mouriscas, 9 de Agosto de 2019
Almerinda Bento