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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral

11.08.19, Almerinda

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Pão de Açúcar, Afonso Reis Cabral, 2018

 

Afonso Reis Cabral já me surpreendera aquando do seu primeiro livro “O Meu Irmão”, pela forma séria como tratou a realidade das pessoas com síndrome de Down e os desafios que se colocam às famílias na sua forma de se relacionarem com essa realidade no que respeita aos direitos e necessidades das pessoas que são diferentes.

Em “Pão de Açúcar” Afonso Reis Cabral agarra um acontecimento ocorrido no Porto em 2006 – o assassinato de Gisberta – e transforma-o numa obra de ficção. Na nota prévia, o autor apresenta-nos um rapaz que trabalha numa oficina de bate-chapas, mas que tem o sonho de um dia ser marceneiro – o Rafael Tiago – que o abordou numa sessão de “escritor-caixeiro-viajante”, lhe entregou uma pasta cheia de documentos e lhe pediu que fizesse um romance com aquilo. “Ele esperava que a minha escrita realçasse a beleza, o tal chorar de ternura e não ligar ao que dizem.” Seguiu-se todo o trabalho de organizar aqueles papéis, o trabalho de campo e investigação dos factos e “depois baralhei com ficção, que é como se faz um romance.”

É ficção, mas ajuda-nos a compreender o incompreensível; a perceber os contextos; a desvendar as histórias de vida; a conhecer os percursos da Gi, do Rafa, do Samuel, do Nélson, do Fábio, do Grilo, do Leandro, da Alisa… Das vidas que não são cor-de-rosa nem a preto e branco. De como os estereótipos e os preconceitos nos condicionam e de como a sociedade os inculca em nós, condicionando-nos nas nossas atitudes e nos nossos actos. Em “Pão de Açucar” está lá tudo: o abandono, a segregação, a violência como norma, a miséria, “as famílias de merda”, a marginalidade, a fuga à escola, o andar ao deus dará armado em durão, a institucionalização, a sobrevivência.

No meio de tanto abandono e falta de carinho, para um rapaz que mal tem 12 anos, conseguir manter-se à tona poderá ser tornar-se dono de uma bicicleta sem préstimo que alguém deitou para o lixo e restaurá-la, ou roubar a chave do sótão do internato para desvendar os segredos lá escondidos, ou dizer por desenhos o que não se consegue dizer por palavras, ou servir-se da força física para exercer poder e estabelecer a hierarquia dentro do grupo, ou ter um esconderijo que seja só seu, mesmo que não passe de um lugar sujo. “Em 2006, havia muito que ninguém prestava atenção à ruína que fora um quarteirão do século XIX e que teria sido um hipermercado do Pão de Açúcar.”

E depois são as dores do crescimento, as contradições de quem tem de fazer pela vida, mas não tem chão onde pôr o pé. Quer-se ser amado, mas repudia-se um simples gesto de carinho.

Tem-se nojo, mas depois é-se atraído como por um ímã. Quer-se guardar segredo, mas depois tem que se mostrar que também se é dono de uma raridade.

Afonso Reis Cabral dá-nos isto com mestria, em imagens vivas, em vislumbres subentendidos, em cenas de poesia e beleza, carregadas do vernáculo e expressões do quotidiano de rapazes na adolescência. Numa fase em que se anda à deriva, em que os corpos estão a descobrir que uma tatuagem ou o tocar da pele podem queimar, a descoberta de um corpo esquisito agora muito fraco, mas que já foi poderoso e desejado, com uma história de luta e de afirmação, de resiliência e sobrevivência, como responder a tanto questionamento quando não há ninguém que nos ouça e que nos embale?

Vale a pena ler “Pão de Açúcar” não só para lembrar Gisberta, as Gisbertas, mas para perceber que a luta contra a transfobia e a homofobia não se compadece com vagos encolher de ombros ou assobios para o lado. Requer um processo de educação profundo, um respeitar as diferenças, as identidades, o humano na sua diversidade e beleza.

Termino, com algumas citações retiradas ao longo da leitura de “Pão de Açúcar” e esta notícia do “Observador” de 22 de Fevereiro de 2016: “Dez anos depois, o que é feito daqueles jovens? E da instituição? E do prédio abandonado onde Gisberta morreu? E da família da imigrante? Quem era, afinal, aquela mulher? E o que é que a sua morte deixou?”

 

(…)

 

“De certo modo estava-lhe agradecido. Até então, ninguém elogiara uma coisa minha, um trabalho destas mãos. Supus que as mães faziam igual: deixavam bilhetinhos por todo o sítio para os filhos lerem.”(pág. 59)

 

“… os contos da Gi eram como desenhos com palavras.”(pág. 105)

 

“Aquilo de querer que os outros vissem como ele, no fundo, é o que toda a gente quer: que os outros nos compreendam. Mas uns podem e outros não.” (pág. 180)

 

“Engraçado como aos doze anos até circunstâncias de merda permitem camaradagem.” (pág. 201)

 

Mouriscas, 9 de Agosto de 2019

Almerinda Bento

 

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