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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Os Idólatras, Maria Judite de Carvalho

17.04.19, Almerinda

 

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Os Idólatras, Maria Judite de Carvalho, 1969

Sobre “Os Idólatras” escreveu Urbano Tavares Rodrigues numa nota biobibliográfica que esta foi a “sua única e excelente aventura no fantástico e na ficção científica”. Já Baptista Bastos no prefácio de “A Janela Roubada” intiulado «Maria Judite de Carvalho: uma ternura magoada» diz de “Os Idólatras” “lamentavelmente incompreendido por aparentemente inesperado”.

 “Os Idólatras” é constituído por 13 contos. Todos eles primorosamente escritos, mas tristes, premonitórios dum futuro assustador, onde as pessoas perderam a qualidade humana e onde a marca da solidão é comum. Logo no primeiro “A Floresta em sua Casa” as pessoas, face à quase inexistência de natureza e ao confinamento dos raros animais que ainda existem em espaços fechados, adquirem quadros a lembrar as pinturas exuberantes de Douanier Rousseau onde se escondem animais perigosos e ameaçadores é o retrato de uma sociedade geradora de loucos.

A fama que rouba a paz e a privacidade aos artistas idolatrados leva-os a esconder-se e a fugir do público sequioso e ávido é o tema do conto que dá o nome à colectânea de contos.

De novo a solidão, no conto “O meu pai era milionário”. Alguém com muito dinheiro que compra a sua “não morte” através da congelação do seu corpo. Cinquenta anos mais tarde, ao ser ressuscitada, enfrenta a solidão absoluta. Ninguém a ouve, ninguém a entende quando conta a sua história que começa por “o meu pai era um milionário”. Com efeito, a sua história não passa de um disco partido.

“Baía Triste” é a história de um astronauta que ficou no espaço. Para a mulher que não conseguiu reaver os despejos do marido, ele passa a ser o brilho de uma luz que se move no espaço.

Em “Casa de Repouso para Intelectuais e Artistas” a palavra “asilo” é proibida. Velhos artistas, outrora famosos, agora esquecidos, entretêm-se a lembrar o passado e a elogiar-se para receberem os elogios que o público já não lhes dá porque os esqueceu. “A velhice era uma coisa triste, mas não tanto como o esquecimento a que tinham sido votados. O escritor murmurava às vezes, de si para consigo: Dantes havia umas coisas chamadas literaturas… havia bibliotecas… havia livros…”

E por aí fora… Neste livro “Os Idólatras” a Terra não é um planeta habitável. Não há animais. Não há livros. Não há obras de arte. Não há gente. Há robots. Tudo está super organizado, desumanizado. As férias são passadas noutros planetas. As pessoas são ilhas. Não se amam. É a premonição dos quotidianos em função dos telemóveis, dos tablets, dos televisores, dos gadgets, da tecnologia. O tempo tem uma dimensão utilitária. Todo o tempo está compartimentado, agendado e não se pode perder e por isso as pessoas não conseguem viver com tempos mortos. Ficam infelizes, querem suicidar-se porque os tempos mortos não fazem sentido para elas. Mas no fim da vida, também há velhos que ainda querem comprar algum tempo para poderem viver aquilo que não viveram em vida…

Para terminar, o belíssimo “A Cidade do Êxito”. A senhora Bruce, que tinha sido uma famosa pintora de flores, é a única pessoa que não tem negócios relacionados com Marte. Vive numa casa que está a “estragar” a paisagem de arranha-céus, no meio de dois grandes edifícios como se fosse uma ilha. A sua casa térrea é um estorvo para os dois proprietários que tudo fazem para negociar com ela para que saia daquela casa e daquele sítio tão apetecível para que possam expandir os seus negócios. Ela sempre se recusa, o tempo passa e, entretanto, os vizinhos proprietários morrem, ela resiste e vive até aos 115 anos sem que ceda às pressões dos especuladores! Só a morte levará ao derrube e demolição da casa da senhora Bruce pelos funcionários camarários que no meio dos despojos levam quadros de flores como recordação.

Um livro de ficção que vale bem a pena ler. Maravilhosa e lúcida escrita.

Março 2019

Almerinda Bento

 

 

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