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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Na Patagónia, Bruce Chatwin e Luis Sepúlveda

16.05.20, Almerinda

Na Patagónia.jpg

Escrito há 6 anos, a lembrar Chatwin e Sepúlveda que partiu há um mês. Certamente os dois divertidos a falar sobre a Patagónia. 

Cá está "Na Patagónia" em dose tripla.

“Na Patagónia”, Bruce Chatwin, 1989
“Patagónia Express”, Luis Sepúlveda, 1995
“Últimas Notícias do Sul”, Luis Sepúlveda e Daniel Mordzinski, 2011

Depois de acabar “Na Patagónia” livro muito aclamado do jornalista inglês Bruce Chatwin, senti uma necessidade imperiosa de ir ao encontro dos dois livros do chileno Luis Sepúlveda sobre essas terras do fim do mundo no extremo sul da América Latina.
A sensação de incompletude do livro de Chatwin ficou apaziguada com a leitura dos dois livros de Sepúlveda sobretudo porque através de retratos fantásticos de personagens que o escritor chileno nos dá a conhecer em “Últimas Notícias do Sul”, escrito 22 anos depois de “Na Patagónia”, Sepúlveda deixa-nos um gosto de nostalgia de um mundo que está a desaparecer e que nunca mais voltará a ser como era. É como que um adeus, um fechar de um ciclo, as últimas notícias de uma Patagónia transfigurada pelo neoliberalismo e que surgem através das palavras de Sepúlveda, quase a fechar o livro “Aquela viagem tinha a marca indelével das despedidas… tudo estava a mudar muito rapidamente e não para melhor.”
Mas voltando ao princípio e ao livro de Chatwin, vale a pena referir o telegrama que o jornalista do Sunday Times Magazine escreveu a demitir-se do jornal: “Fui para a Patagónia.” Aquela paixão por conhecer a Patagónia estava associada, como Chatwin refere logo no início do livro, à sua infância e a um estranho pedaço de pele de um animal pré-histórico que a avó tinha dentro de um aparador. “Na Patagónia” é o relato de uma viagem sem roteiro pré-estabelecido, a viagem de um Chatwin nómada, solitário que desce desde o Rio Negro na Argentina até Ushuaia no extremo sul do continente sul-americano, passando por cidades, povoados, estepes, rios e montanhas, ao encontro dos descendentes dos velhos imigrantes do País de Gales, dos exilados russos, de criminosos nazis, dos esconderijos de foragidos famosos como Butch Cassidy ou Sundance Kid. Sem roteiro pré-definido mas com uma bagagem que confirma aquele amplo espaço da Patagónia argentina como terra de oportunidades e do tango, marcada por histórias de bandidos, de foragidos, de exilados, de pessoas a fugir do seu passado mas também de gente com saudades de uma terra que nunca conheceram, da terra dos antepassados como se da sua terra natal se tratasse. Até que um dia, nesta viagem solitária pela Patagónia, ao explorar uma gruta do milodonte ou preguiça-gigante encontrou “mechas do pêlo áspero e avermelhado que tão bem conhecia. Puxei-os com cuidado, meti-os num envelope e sentei-me, exultando de satisfação. Tinha alcançado o objectivo desta ridícula viagem.”
“Patagónia Express” – apontamentos de viagem – é o relato de diversas viagens “sem itinerário fixo” de Luis Sepúlveda. Partindo também das memórias da sua infância, e de duas promessas que fizera ao avô quando este lhe deu o livro “Assim foi temperado o Aço” de fazer uma longa viagem com “um bilhete para lado nenhum”, o autor dedica dois dos capítulos iniciais do livro a falar brevemente da sua experiência de dois anos e meio na terrível prisão de Temuco. Quebra assim a sua decisão de não tocar na sua experiência dessa obscenidade que foi a ditadura de Pinochet (uma viagem a lado nenhum) e consegue pôr o/a leitor/a rir com alguns episódios que são o testemunho da capacidade de resistir e de sobreviver na adversidade por parte dos seres humanos. A segunda parte do livro trata da viagem atribulada e sinuosa do Sepúlveda exilado, desde que sai do Chile por intervenção da Amnistia Internacional. Passando por diversos países da América Latina, sem dinheiro mas apenas com a intenção de partir para a Europa ou para África é “a viagem de ida”. “A viagem de regresso” fá-la-á Sepúlveda muitos anos mais tarde quando já lhe era permitido regressar ao Chile. Foi a concretização da viagem que ele e Bruce Chatwin haviam planeado há anos num café em Barcelona, para ser feita e escrita a quatro mãos mas que agora o chileno iria fazer sozinho, apenas acompanhado dos Moleskines que Bruce lhe tinha entregado, percebendo que já não teria tempo para acompanhar o amigo chileno nessa viagem.
O último apontamento deste livro é a chegada a Martos, na Andaluzia. Trata-se de um belíssimo e emotivo encontro de Luis Sepúlveda com o tio-avô e é o cumprir da segunda promessa que fizera de um dia ir à terra natal de onde o avô emigrara para o Chile.
Por fim, “Ultimas Notícias do Sul” é um livro de pequenos episódios para saborear com as fotografias de Daniel Mordzinski e resulta de uma conversa dos dois amigos num café de Paris enquanto bebiam um chá-mate. É uma viagem feliz à memória de uma região que eles ainda conheceram antes das mudanças violentas que a economia impõe sobre as vidas dos povos e dos países e que neste caso trouxe o fim das coisas que sempre tinham existido. Ironizando com a pseudo modernização da economia e dos países, nomeadamente através da privatização dos comboios, descobre-se que afinal os serviços não conseguem responder a uma pergunta tão simples quanto é “a que horas parte o próximo comboio para a Patagónia?” É de facto um livro delicioso e quero aqui lembrar Tano, o fabricante de violinos, ou Doña Delia, a senhora dos milagres ou a cena com os turistas texanos cujos dólares pensam que são capazes de “chartear” La Trochita, nome carinhoso dado ao Patagónia Express, com total desrespeito pelas necessidades dos locais que têm nesse meio de transporte a única forma de tratarem dos seus problemas e de resolver as suas necessidades. Mas afinal, o dinheiro não compra tudo nem todos!
Outras leituras sobre a Patagónia certamente virão acrescentar o que me ficou da leitura destes três excelentes livros. Penso que o nosso Gonçalo Cadilhe será o próximo a ajudar-me a fazer este itinerário por essas terras do sul que, mesmo transfiguradas pelo poder do neoliberalismo, sempre deixarão intocado e inviolável o que de mais puro há nas gentes daquelas terras austrais do fim do mundo.

Maio 2014

 

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