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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Monólogo de uma Mulher chamada Maria com a sua Patroa, Sara Barros Leitão

27.12.24, Almerinda

 

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Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa, Sara Barros Leitão, 2021

“Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa” é o texto dramatúrgico que deu origem ao espectáculo homónimo, produzido pela estrutura artística Cassandra. Na badana da edição da Imprensa da Universidade de Coimbra pode ler-se: “Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa” é um título roubado clandestinamente a um texto do livro “Novas Cartas Portuguesas” que dá o mote a uma criação de Sara Barros Leitão estreada em 2021. Partindo da criação, em 1974, do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal, aqui se conta a história, ainda pouco reconhecida, pouco valorizada, do trabalho das mulheres, do seu poder de organização, reivindicação e mudança. Esta é a história das mulheres que limpam o mundo, das mulheres que cuidam do mundo, das mulheres que produzem, educam e preparam a força do trabalho – a história do trabalho invisível que põe o mundo a mexer.”

O texto é poderoso e muito informativo, tal como a representação em palco feita por Sara Barros Leitão é poderosa e inesquecível. Logo o Prólogo, pela sua extensão, pode ser desconfortável, mas é isso mesmo que se quer. Ficamos a saber que em 1921 aconteceu a primeira greve das empregadas domésticas em Lisboa; que data de 1867 uma lei que separava as empregadas domésticas das pessoas escravizadas, mas que continuavam a ter de ter um livrete com o cadastro limpo para poderem trabalhar. Foi por altura de 1921 que o governador civil de Lisboa Lelo Portela se lembrou de reavivar essa lei vexatória que impunha o livrete às empregadas domésticas e aos empregados de cafés e restaurantes, invocando serem classes profissionais muito dadas a roubos. Estes trabalhadores mobilizam-se e o extraordinário é que o poder recua, mas isentando os homens da obrigação e deixando isoladas as empregadas domésticas que não vergaram e fizeram uma greve histórica que obrigou o governador civil a demitir-se e a fugir para o Brasil. Sem empregadas domésticas seria o fim do mundo para os patrões.

Uma empregada doméstica é alguém para todo o serviço; é a invisibilidade, a submissão, a ausência de direitos, a sobrevivência, a solidão. E a mudança da História com o 25 de Abril trouxe mudança na história das empregadas domésticas? A cena 7 faz um registo exaustivo de cartas e desabafos dirigidos ao Sindicato e é o testemunho das dificuldades sentidas para que o sindicato se constituísse. O texto dramatúrgico joga com as palavras e os conceitos: história/História, O Capital/A Capital, mais-valia/mais valia. As trabalhadoras do serviço doméstico aprendem no processo revolucionário a reivindicação e a lei e batem-se pela lei dos 3 Fs: Folgas, Férias e Feriados. No primeiro 1º de Maio descem com uma faixa a dizer “Sindicato do Serviço Doméstico”, mas só em 1976 o sindicato foi legalizado. “Agora, chegou o tempo de contar a narrativa alternativa de quem não saiu, e a quem fizeram acreditar que ainda não era a sua vez” (pág. 54) O 25 de Abril não foi para todos e ainda menos para todas e as empregadas domésticas apercebem-se que às vezes as máquinas avariam e deixam de trabalhar e descobrem que até as máquinas têm mais liberdade que elas.

O Sindicato do Serviço Doméstico foi fundado em 1974 só por mulheres e legalizado apenas dois anos depois. Era profundamente revolucionário e emancipatório, pois “O objectivo era extinguir a profissão nos moldes actuais” (pág. 59), tendo como perspectiva a elevação intelectual das suas associadas. Ocuparam três prédios e criaram serviços, reconvertendo o conceito existente de serviço doméstico. Os sindicatos ficaram perplexos com a capacidade de organização daquelas mulheres e incapazes de uma resposta à altura, que respeitasse o sentimento e o pensamento destas trabalhadoras. Em 1979, o Sindicato do Serviço Doméstico organiza um 1º Congresso com a participação de mais de 9 000 mulheres. Em 1991 este sindicato é integrado num outro, incluindo jardineiros, vigilantes e porteiros. As empregadas domésticas são abafadas e as prioridades são subvertidas.

A lei de 1867 só é alterada em 1980. É revista em 1992. Tal como estas mulheres é uma lei à margem da lei geral do trabalho. Portugal é um dos países da Europa onde mais se contratam empregadas domésticas. Elas colmatam a ausência de respostas públicas dos cuidados. Hoje muitas das empregadas domésticas são mulheres emigrantes, racializadas, sem papéis, desprotegidas. Muitas não falam português.

Esta peça protagonizada por Sara Barros Leitão visibiliza a longa e heroica história de luta deste sector profissional invisível, mas indispensável. Que começou em 1867, passando pelo 25 de Abril e que chega aos nossos dias. As dificuldades, as traições, a resistência, a capacidade de sobreviver. Abalroadas, esquecidas, porque são mulheres.

Um texto e uma peça que exigem uma grande reflexão sobre a necessidade de valorizar quem cuida do mundo e cujos direitos têm sido sistematicamente esquecidos.

13 de Dezembro de 2024

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