Manhã de Domingo
Manhã de Domingo
Como sempre, o Gaspar reclama a sua ração da manhã. Nada a fazer. Acordar com um gato em cima da cara a abanar a cauda não permite recusas. Levanto-me, faço-lhe a vontade, volto para a cama. Afinal ainda é tão cedo. Volto-me na cama de um lado para o outro, sem conseguir retomar o sono interrompido. Deito-me de costas, olho para o tecto, começo a recordar o que tenho de fazer, o que está em falta, o que ando a adiar… Procrastinadora até morrer! Entretanto, o Gaspar já satisfeito, aninhou-se no edredon no côncavo das pernas do Vítor.
Levanto-me. Já não consigo conciliar o sono e a luz exterior que passa entre as frinchas do estore, diz-me que ficar na cama é um desperdício.
Olho para o telemóvel à procura de alguma mensagem. Hoje é o dia de Marielle. Há um ano já não podíamos sair de casa e pusemos fotografias nossas no facebook. Enxameámos as redes sociais com “Quem mandou matar Marielle?” Todos sabemos quem foi. O genocida que está no poder. Nas memórias que o facebook me traz, além do “Fevereiro de Almerinda”, os vários desenhos que fiz de Marielle, imagens numa escola em Santiago do Cacém onde há 5 anos fomos distribuir o folheto “No namoro só bate o coração”, uma citação de Miguel Torga: “Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade.” Que maravilha! E depois uma fotografia enternecedora a preto e branco: dois velhos de costas, abraçados, a caminhar lado a lado como dois namorados, num passeio duma cidade. Londres? Paris? Edimburgo?
Volto à cozinha. Preparar o pequeno-almoço e buscar um jornal para ir lendo enquanto tomo o leite da manhã. Parece mentira, mas ainda não folheei a revista do Expresso do passado fim-de-semana. Na capa, uma personagem odiosa. O título é sugestivo e apropriado: Retrato de um populista quando jovem. Não me interessa. Costumo sempre ler a Revista da última página para trás e muitas vezes fico satisfeita e termino na secção Culturas. Procuro sempre notícias sobre livros e muitas vezes rasgo as folhas que me interessam. Talvez me venham a ser úteis mais tarde, quando e se ler aqueles livros.
Gosto de ler José Tolentino Mendonça. Há uma serenidade nas suas palavras e hoje ligo-as ao que li do Torga. Tolentino Mendonça sugere-nos que nos desembaracemos “do equívoco escondido na palavra “ideal”, que em vez do “sempre” e do “nunca” utilizemos o “quase sempre” e “quase nunca” e que façamos uma “conversão do olhar”, lembrando que “O essencial é saber ver… /Isso exige um estudo profundo, /Uma aprendizagem de desaprender.”, nas palavras de Alberto Caeiro.
E depois, Pedro Mexia faz-nos um roteiro pelas Livrarias da sua vida, muitas delas também livrarias da minha vida, da minha adolescência e da minha juventude, quando fui estudante universitária e residia em Lisboa. Destaco a Buchholz e a Barata. Conheci o senhor Barata quando a Barata ainda não era o que é hoje, na avenida de Roma. Ainda me lembro dos rostos dos funcionários que nos atendiam. Sabíamos que eles tinham livros proibidos. Hoje é proibido ir às livrarias, mas por outro motivo, que eu não entendo. A última vez que fui à Barata foi numa segunda feira de Maio, na fase de desconfinamento da primeira vaga da pandemia. Fomos à tarde, a seguir ao almoço e descobrimos com mágoa que o horário era reduzido – layoff, crise a pedir solidariedades – e que a Barata estava fechada às segundas-feiras à tarde! Logo ao lado, a Bertrand tinha uma longa fila de pessoas desejosas de entrar numa livraria, de comprar aquele livro, de voltar a sentir o cheiro do papel, de olhar para as capas dos livros expostos, de folhear, abrir um livro numa página qualquer e ler…
Entretanto, cá por casa já começou o dia e o Gaspar já deixou o aconchego do vão das pernas do seu dono.
14 de Março de 2021