Luis Sepúlveda
Hoje foi um dia triste, mais difícil neste período de confinamento. Luis Sepúlveda, que sabíamos estar em estado crítico por causa da pandemia, deixou-nos.
Li e comprei vários livros dele ao longo dos anos. De entre os vários contos que constituem "As Rosas de Atacama", detive-me em "O Amor e a Morte" e recordei Zorbas que "com o tempo, passou de nosso gato a ser mais um companheiro, um querido companheiro de quatro patas e melódico ronronar." No meio dos livros, encontrei uma folha com uma História Marginal de Sepúlveda publicada num jornal de um domingo de Junho de 1999, com o título Astúrias, o local que escolheu para viver depois de ter andado por tantas terras. As razões da escolha encontram-se no que ele então escreveu:
"Odeio falar de mim porque nunca quis ser uma personagem, mas que diabo, suponho que o escritor tem de afrontar a sua própria vida. Num dia de 1997 decidi deixar Paris - oh Paris! - para viver definitivamente num lugar do mundo em que me senti seguro: as Astúrias. E a escolha não foi difícil.
Nesta região do Norte de Espanha, aberta ao Cantábrico, nós, os marginais que reivinidcamos o direito à marginalidade, somos bem-vindos. Não existe lugar mais marginal do que as Astúrias. Não há região mais sofrida do que as Astúrias, e para o entender basta estar em Gijón, Langreo, Avilés ou Mieres quando soam as sirenes da tragédia mineira. Acontece - em plena época de bem-estar, na nova ordem internacional - que quando a mina engole um ou mais homens, os serenos vales das Astúrias estremecem numa contorção cósmica. Porém, os asturianos- e eu aprendi tanto com eles, que são duros e ternos, irascíveis e pacíficos, à justa raiva preferem a vontade e a resistência, dois sinais valiosos de identidade.
(...)
Não é difícil ser feliz, dizem os asturianos a partir da sua marginalidade gloriosa que lhes recorda 34, o atroz, quando pensam nas visitas de Franco e de dona Carmen saqueando as tendas de campanha dos derrotados. E eu, como eles, sei que uma pessoa é feliz "desde que escute uma gaita e haja sidra no lagar."
Por fim, trago aqui um breve trecho de um livro delicioso, um dos primeiros que li deste chileno asturiano: "O Velho que lia Romances de Amor".
"Antonio José Bolívar sabia ler, mas não escrever.
O mais que conseguia era garatujar o nome quando tinha que assinar qualquer papel oficial, por exemplo, na época das eleições , mas como tais acontecimentos ocorriam muito esporadicamente, já quase se tinha esquecido.
Lia, lentamente, juntando as sílabas, murmurando-as a meia voz como se as saboreasse, e, quando tinha a palavra inteira dominada, repetia-a de uma só vez. Depois fazia o mesmo com a frase completa, e dessa maneira se apropriava dos sentimentos e ideias plasmados nas páginas.
Quando havia uma passagem que lhe agradava especialmente, repetia-a muitas vezes, todas as que achasse necessárias para descobrir como a linguagem humana também podia ser bela.
Lia com o auxílio de uma lupa, o segundo dos seus pertences mais queridos. O primeiro era a dentadura postiça.
Vivia numa choça feita de canas de uns dez metros quadrados dentro dos quais arrumava o seu escasso mobiliário: a rede de dormir de juta, o caixote de cerveja com o fogão a querosene em cima, e uma mesa alta, muito alta, porque, quando sentiu pela primeira vez dores nas costas, percebeu que os anos lhe estavam a carregar e decidiu sentar-se o menos possível.
Construiu então a mesa de pernas compridas, que lhe servia para comer de pé e para ler os seus romances de amor.
A choça era protegida por uma cobertura de palha entrançada e tinha uma janela aberta para o rio. Era a ela que estava encostada a mesa alta.
Junto da porta estava pendurada uma toalha esfiapada e a barra de sabão renovada duas vezes por ano. Era um bom sabão, com penetrante cheiro a sebo, e lavava bem a roupa, os pratos, os cacos de cozinha, o cabelo e o corpo."
Sepúlveda deixou de estar fisicamente connosco, mas permanece na doçura e na força dos seus livros, assim como nos corações daqueles que já o conheceram através das inúmeras personagens e situações que criou.