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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Humilhação e Glória - o acidentado percurso de algumas mulheres singulares

13.06.20, Almerinda

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Humilhação e Glória”, Helena Vasconcelos, 2012

 

Este ensaio de Helena Vasconcelos tem como subtítulo “O acidentado percurso de algumas mulheres singulares”. Constituído por oito capítulos, para além da Introdução – Estudos Femininos, Mulheres e Cidadãs, A Ascensão segura das «Mulheres de Letras», O corpo das mulheres, O círculo das Belas-Artes, Em nome da Ciência e Misoginias – é um livro muito interessante e curioso, para quem quer ficar com uma visão geral da História com o foco nas mulheres, esclarecendo a autora na nota final que este não é um tratado e reconhecendo que faltarão “referências importantes a mulheres que têm dado o seu contributo inspirador”.

Comecemos pelo princípio e pela questão da maternidade, que colocou a mulher “protegida”, “enclausurada”, “afastada” e “relegada” na ordem social. A autora destacou a americana Margaret Sanger (1879-1966), activista pelo direito feminino de evitar a maternidade, lutou pelo direito à contracepção e foi defensora da pílula. Ao longo do livro, Helena Vasconcelos por diversas vezes refere que o século XIX foi um século mau para as mulheres pois infantilizou-as. É um século conservador para as mulheres, embora seja o século em que surgem os movimentos das feministas reivindicando o voto feminino. Charles Darwin chegou a considerar as mulheres “dignas de estudo”, catalogando-as na espécie das raças inferiores e num estado de civilização “menos desenvolvido”(págs. 30 e 31). George Savage, o psiquiatra que tratou Virginia Woolf, aconselhava cautela às mulheres que liam e estudavam, tendo proibido o estudo a Virginia Woolf quando ela tinha quinze anos e tendo-lhe receitado quatro horas de jardinagem diária, obrigatoriamente.

Mary Woolstonecraft (1759-1797), autora de “A Vindication of the Rights of Women” (1792) é pioneira e um nome incontornável na história dos feminismos. Escreveu ela que as mulheres não deviam deixar-se bajular pelos homens quando enalteciam os seus atributos de beleza, desprezando as suas qualidades intelectuais. Apercebeu-se do papel do sistema educativo e da tradição, no sentido de tornar as meninas subservientes. Chamaram-na de “imoral, louca, infeliz, feminista”! Por essa altura, em Portugal, no tempo de D. José I e do Marquês de Pombal, Gertrudes Margarida de Jesus escrevia “A Primeira Carta Apologética em favor e defesa das Mulheres”(1761).

Madame de Stael e os Românticos desempenharam um papel importante no rebater as ideias de Mary Woolstonecraft, fazendo a apologia da “mulher-criança” e da “fada do lar”. Ema Bovary de Gustve Flaubert ou Anna Karenina de Tolstoi são exemplos de heroínas destituídas de direitos.

Com a revolução industrial, impõe-se o modelo vitoriano da família nuclear e o conceito de “respeitabilidade” cultivado pela nova burguesia em que as mulheres eram esposas devotadas e mães extremosas. Este espartilho, esta rigidez nos comportamentos impostos às mulheres foram sempre um motivo de grande sofrimento para quem não se revia nestes normativos. Em alternativa, o refúgio dos conventos, mas havia quem preferisse o isolamento ou a morte, por não quererem ser nem mães nem esposas. A histeria (do grego hystéra=útero) foi uma das doenças ditas “femininas” que deixou de fazer parte do léxico das doenças neurológicas, quando na 1ª Guerra Mundial surgiram muitos homens com sintomas semelhantes aos que se atribuíam às mulheres histéricas.

Aliás, o corpo das mulheres foi sempre e ainda é um campo de batalha. A menstruação que é “impura”, a mulher procriadora, a satisfação erótica destinada exclusivamente aos homens que podem satisfazer-se com prostitutas ou outras mulheres. O corpo das mulheres não lhes pertencia; o seu controlo pertencia aos pais, aos maridos, aos médicos e especialistas. A sexualidade feminina era reprimida, o desejo sexual considerado um distúrbio mental, uma aberração, uma doença. As teorias de Freud marcaram essa época e a muitas raparigas consideradas doentes e que foram confinadas em estabelecimentos psiquiátricos era-lhes imposto trabalho manual – tricot e bordados – como cura para a sua doença. Tal como a masturbação feminina era proibida, a menopausa nas mulheres era ignorada e ridicularizada. As grandes transformações começaram a operar-se com a entrada das mulheres num território até então exclusivamente masculino, quando a medicina passou também a ter mulheres médicas e psicanalistas. Lembremo-nos da luta heróica das sufragistas, muitas delas encarceradas em instituições psiquiátricas por terem sido consideradas doentes mentais.

Seguidamente, Helena Vasconcelos refere mulheres marcantes pelo seu pensamento e obra, que revolucionaram o pensamento e a visão da mulher na sociedade. A escritora inglesa Virginia Woolf que advogou o direito a um espaço próprio que seja das mulheres e que estilhaçou os conceitos estanques de sexualidade com a sua obra “Orlando” (1928). Simone de Beauvoir e o “Segundo Sexo” (1949) contra o determinismo, os preconceitos e as ideias pré-estabalecidas que não davam hipótese de escolha às mulheres. Germaine Greer, uma feminista australiana polémica interessou-se pela questão do envelhecimento das mulheres e suas consequências. Dizia que a mulher era uma criada do marido e que trabalhava de graça para ele. Nos anos 90 do século passado, Camille Paglia advoga posições antifeministas e é célebre pelas suas posições e ideias muito controversas.

Nestes capítulos iniciais do seu livro, a autora pontua algumas datas e acontecimentos importantes na longa caminhada das mulheres até alcançarem o estatuto de cidadãs. Em Portugal, o facto de a Inquisição ter vigorado por perto de três séculos, entre 1536 no tempo de D. João III até 1821, ajuda a compreender a perseguição e a menorização a que as mulheres foram submetidas. No 1º Código Civil em Portugal que data de 1867, elas aparecem com o estatuto de esposas e mães. Só em 1890 é autorizado o acesso das meninas aos liceus públicos, apesar de o ensino liceal existir desde 1836 por iniciativa de Passos Manuel.

Como anteriormente já referi, o surgimento de movimentos reivindicando o voto feminino foi de extrema importância, num século em que muitos dos espaços de cidadania ainda estavam barrados às mulheres. Na Convenção Mundial contra a Escravatura que se realizou em Londres em 1840, foi impedida a participação de mulheres. Em 1848 realiza-se a 1ª Convenção pelos Direitos das Mulheres em Seneca Falls, Nova York. A Nova Zelândia vai ser o primeiro país no mundo a instituir o voto das mulheres em 1883. Não posso deixar de mencionar aqui um nome que, ao longo do livro nunca vi referido, a médica e feminista Carolina Beatriz Ângelo, a primeira mulher a votar em Portugal a 28 de Maio de 1911, invocando a sua condição de chefe de família, assim torneando a lei que impedia o voto das mulheres portuguesas. O Estado Novo “apagou” os nomes de muitas activistas feministas do tempo da 1ª República, consideradas aberrações. Com efeito, elas não encaixavam na concepção estreita da santíssima trindade salazarista: Deus, Pátria, Família. Incontornável o papel pioneiríssimo, a figura de Maria Lamas e a sua obra ímpar “As Mulheres do meu País”, resultado de um trabalho de campo profundo por todo o continente e ilhas, de registo da vida das mulheres portuguesas.

Portugal assina com a Santa Sé em 1940 a Concordata que proíbe o divórcio, uma das causas que vai mobilizar vastas massas imediatamente a seguir ao 25 de Abril, impossibilitadas de refazer as suas vidas por uma lei retrógrada que as impedia de voltarem a casar. Portugal vai viver a seguir à Revolução dos Cravos grandes transformações sociais, conquanto muitas delas tenham demorado a romper com os preconceitos e as discriminações de género que vinham de longe. Este fenómeno de discriminação e desigualdade entre mulheres e homens que enforma as sociedades e não apenas a portuguesa tem sido combatido por movimentos e organizações de mulheres que nos seus países e a nível internacional têm feito um trabalho assinalável com grandes avanços, sobretudo a partir do último quartel do século XX. A Declaração Universal dos Direitos do Homem data de 1948, após o fim da 2ª Guerra Mundial, mas só em 1979 é adoptada a Convenção para a Eliminação de todas as formas de Discriminação em relação às Mulheres.

Na página 99, Helena Vasconcelos põe no seu livro uma pergunta que muitas pessoas (homens e mulheres) muitas vezes colocam, tendo em conta os extraordinários progressos das mulheres na sua luta pela cidadania plena: “O que falta então à mulher?”

A verdade é que sempre que as mulheres lutaram e quiseram romper com o estabelecido, foram chamadas de atrevidas, de provocadoras e ridicularizadas. Nas Letras, quando se destacavam, achavam que elas eram imitadoras, não inovadoras ou criativas. Helena Vasconcelos nomeia mulheres renascentistas ilustres, que geralmente são ignoradas: Joana Vaz, Paula Vicente, Leonor Coutinho, Ângela Sigeia, Luísa Sigeia e Públia Hortênsia de Castro (séculos XV e XVI). Os conventos e as casas privadas de mulheres com dinheiro e elevado estatuto social eram o oásis no tremendo deserto cultural vigente na sociedade portuguesa dos séculos XVII e XVIII. Mariana Alcoforado, a Marquesa de Alorna ou Teresa Margarida da Silva Orta, autora do primeiro romance escrito por uma portuguesa, sujeito à aprovação da censura do Santo Ofício. No século XIX, o fechamento e a punição das mulheres que transgridem está bem patente no caso de Maria da Felicidade do Couto Browne, cujos escritos foram queimados pelo próprio filho, devido à ligação que a mãe tinha tido com Camilo Castelo Branco.

No século XX, são muitas as escritoras que se destacaram como Agustina, Sophia ou Lídia Jorge, entre muitas outras. Lamento não ter visto assinalados os nomes de duas grandes escritoras injustamente invisibilizadas: Irene Lisboa e Maria Judite de Carvalho. Justamente, fala das Três Marias e do seu livro As Novas Cartas Portuguesas, que granjeou um eco internacional de solidariedade pelas escritoras levadas a tribunal pela moral conservadora e hipócrita do salazarismo marcelista no seu estertor.

No capítulo O Corpo das Mulheres, a autora volta ao tema da ignorância e do preconceito relativamente ao corpo da mulher, os períodos de abertura e fechamento em termos da liberdade sexual, os temas da contracepção e do aborto que foram sempre muito sensíveis e da valentia das mulheres que conseguiram afrontar toda uma arquitectura patriarcal solidamente implantada. Neste capítulo destaca os nomes da bióloga Natalie Angier e do seu “Mulher: uma Geografia Íntima” que lhe deu o Prémio Pulitzer, a antropóloga americana Helen Fisher e a ceifeira portuguesa Catarina Eufémia, assassinada por uma GNR quando lutava pelos seus direitos como trabalhadora.

No capítulo das Belas-Artes, a autora diz que muitos historiadores de arte olham para as artistas mulheres com alguma condescendência e leviandade, invocando o “jeito” em vez do génio. Entre várias artistas, nomeio aqui Josefa de Óbidos, Amélia de Sousa, Paula Rego, Maria Helena Vieira da Silva, Helena Almeida e muitas outras.

São imensas as mulheres que se destacam no campo da Ciência. Geralmente fora do holofote mediático, mal pagas, a teimosia e o espírito de sacrifício são as marcas destas mulheres. Num campo em que não poucas vezes a religião esteve contra a ciência, a autora lembrou mulheres cheias de tenacidade que na sua época não baixaram os braços e lutaram contra a misoginia que as excluía do acesso à ciência. Em Portugal e no estrangeiro foram verdadeiras guerreiras.

O último capítulo – Misoginias – é o remate que nos dá a conhecer alguns dos ideólogos que deram corpo às concepções que ainda hoje persistem, resistem e estão na base da desigualdade entre os géneros. “Quando uma mulher pensa, é o Diabo que pensa por ela”, proferida por um papa do séc. XV. Para S. Tomás de Aquino, a mulher era “um ser miserável e defeituoso”. O padroeiro dos bibliotecários, S. Jerónimo, considerava que “como o verme destrói a madeira, também uma mulher destrói o marido.” Tudo homens da Igreja. Contra a corrente do seu tempo, Gil Vicente traça personagens femininas cheias de graça, afirmativas, fortes, determinadas, cheias de vivacidade. Os cerca de trezentos anos da Inquisição foram uma tragédia para as mulheres, sendo que muitas, perseguidas como bruxas acabaram na fogueira, apenas porque eram mulheres insubmissas e com práticas não convencionais.

O século XX foi aquele que maiores desafios colocou às mulheres: com a sua entrada em força no mercado do trabalho, quebrando as concepções da mulher presa ao lar por via das necessidades da guerra, mas remetendo-a de novo ao lar no pós-guerra, glorificando uma imagem fictícia da “mulher moderna” dos anos 50. Porém, o caminho das ideias que tinham posto as mulheres no início do século XX a lutar pelo voto e pela educação, a revolução sexual dos anos 60 com a democratização da pílula e dos meios anticoncepcionais, as vagas que se seguiram de feministas e de novas teorias e concepções, é um caminho de não retorno. De felicidade para as mulheres, como sujeitos de direitos e como participantes de pleno direito na transformação social para uma sociedade sem discriminações de qualquer tipo.

Não consegui tornar este texto menos extenso. Volto à ideia inicial, expressa pela autora de que este livro é um ensaio, não é um tratado. Tem tanta informação valiosa, que me custou trazê-lo à minha apreciação, truncando-o de nomes e dados imprescindíveis.

O meu obrigada a Helena Vasconcelos por esta obra de divulgação de uma história resumida das mulheres.

 

1 de Junho de 2020

Almerinda Bento