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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Em Tudo havia Beleza [Ordesa] de Manuel Vilas

18.06.19, Almerinda

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Em Tudo havia Beleza  [Ordesa], Manuel Vilas, 2018

“Obrigada à vida, que me deu tanto.

Deu-me o riso e deu-me o pranto.

Assim distingo a sorte do quebranto,

os dois materiais que compõem o meu canto,

e o canto de vocês, que é o mesmo canto,

e o canto de todos, que é o meu próprio canto.”

                                                                               Violeta Parra

Abrir um livro em que o autor tenha escolhido para epígrafe este belo poema de Violeta Parra é, desde logo, um bom augúrio. À medida que se vai progredindo no livro, constituído por centena e meia de capítulos ou quadros, alguns muito breves, entramos na intimidade do autor/narrador que logo no início nos fala da sua dor e da impossibilidade de a medir ou quantificar. No seu caso, a somar aos infortúnios ou percalços da vida, a dor pela perda do pai e da mãe. Uma dor que ele vai tentar superar, se é que tal é possível!, pela escrita deste livro e pela fuga para um lugar mágico da sua infância, um lugar num vale cercado de montanhas onde foi muito feliz com os pais. Ordesa é esse lugar mágico, “Ordesa” é o nome original deste livro traduzido por Vasco Gato e que na sua versão portuguesa é “Em Tudo havia Beleza”.

Professor durante 23 anos, com um historial de abuso de drogas e de álcool a que consegue sobreviver, pai de dois filhos com quem a comunicação não é fácil, o seu divórcio aos 52 anos vai ter um efeito novo na sua vida. Tudo tem de ser reorientado, tudo passa a ter outro significado que o vai levar a dar à vida e morte dos pais uma importância que antes nunca tinha dado. Ele projecta-se nos pais, culpa-se por não lhes ter feito as perguntas para respostas que hoje já não pode ter, e antevê nos filhos aquilo que eles também sentirão quando ele já não existir. Sobretudo, culpa-se por aquilo que deixou de fazer, por aquilo que não verbalizou , pelos abraços que nunca conseguiram dar, talvez por pudor, as provas de amor que ficaram por dar e que agora já não são possíveis de demonstrar. Muitas vezes pensa e coloca-se no papel de uma terceira pessoa que lhe fala, lhe dá conselhos, ideias e sugestões, como que se distanciando dele, assumindo uma voz crítica. Há aspectos a que volta, que repisa, que repete, vertendo para o papel os medos, as dúvidas, as hesitações, os fantasmas.

Por isso, ao lê-lo senti que era um livro que fazia muito sentido, que fazia todo o sentido, porque é muito verdadeiro, muito palpável. Revi-me muitas vezes nele, encontrei-me nele e dei por mim por vezes a pensar: isto podia ter sido escrito por mim. Mas também penso que, pelo facto de a dor da morte e da perda definitiva estar sempre subjacente no livro, a sua leitura não será fácil para quem tiver esse sentimento de perda e de luto ainda muito recente. Não é fácil.

Enquanto é muito preciso nas datas de muitos acontecimentos da sua vida – nascimento em 1962; “No dia 9 de Junho de 2014 deixei de beber”; anos do nascimento,  casamento e cremação dos pais; concepção em Novembro de 1961; “Escrevo estas palavras a 9 de Maio de 2015” – a data do seu divórcio é imprecisa pois “não se sabe muito bem o momento, pois não é uma data, mas um processo…” É crítico e cáustico relativamente à instituição casamento. Transcrevo duas passagens, a primeira decorrente dum almoço com gente da cultura para que foi convidado pelo rei Felipe e por Letizia

 “É normal sentir compaixão pelos casais, especialmente pelos casais que começam a acumular anos de vínculo conjugal, porque todos sabemos que o casamento é a mais terrível das instituições humanas, pois requer sacrifício, requer renúncia, requer negação do instinto, requer mentira atrás de mentira, proporcionando em troca a paz social e a prosperidade económica.” (pág. 40)

A segunda, em que recorda o tio Rachmaninov, o irmão do pai

“E, para cúmulo, o Rachma divorciou-se. Isso é que foi espantoso.(…) O mais curioso é que lhe invejei essa vida. Julgo que o casamento de longa duração não é próprio da natureza humana. Fico contente que o Rachma tivesse sabido dar-se conta disso. Imagino que tenha sido isso. Os homens aceitam os casamentos de longa duração porque deixam de acreditar na juventude. 

Penso que após o seu divórcio se terá transformado noutro homem. Bem, entendo assim que o Rachma disse não a essa ordenação simbólica da realidade que existe por trás do casamento de longa duração, que é um pesadelo, que é uma prisão; claro que quem vive nesses casamentos sorri, e parece tratar-se de um sorriso verdadeiro. Acho que os casamentos de longa duração não valem a pena, percebo que esta afirmação seja exagerada, mas a renúncia às paixões também é um exagero do sacrifício razoável. Certos antropólogos dizem que a monogamia não é natural. Essa feira interminável de infidelidades entre homens e mulheres, de mal-entendidos dolorosos, está por trás da imposição da monogamia.

Talvez tenha sido o capitalismo eclesiástico a inventar os casamentos de longa duração.” (págs. 347 e 348)

E depois os lugares pontuam as diferentes fases da vida, desde logo Barbastro na região do Alto Aragão onde nasceu, Saragoça onde estudou, Madrid a imensa capital política, Ordesa e as montanhas que a cercam, a poderosa Catalunha ligada às viagens do pai quando o negócio do têxtil estava florescente e a Galiza onde o irmão do pai casou e se estabeleceu. Um mosaico da Espanha franquista, da Espanha pobre a que a sua família sempre pertenceu mesmo quando a prosperidade momentânea do caixeiro-viajante ou o sonho da sala exclusivamente usada pelas visitas da mãe não passaram de um breve episódio nas suas vidas. E depois fica o desamparo, a solidão, apanágio de quem é pobre, de quem só pode comprar electrodomésticos de marca branca, ou de quem opta por ter uma sala grande sem serventia em vez de uma casa de banho em condições! Do outro lado a monarquia e os que gravitam à volta do poder. A ironia em torno da Espanha e do seu povo não poupa os pais que não ligam a nada da política, para quem os interesses não vão além dos programas de culinária na televisão (o pai) ou o acompanhar todos os detalhes da vida de Julio Iglesias (a mãe).

O autor/narrador expõe-se, revela-nos acontecimentos marcantes da sua vida e nomeia os membros da sua família à medida que eles vão surgindo no livro com nomes de grandes mestres da música. O pai é Bach, a mãe é a Wagner, Vivaldi e Brahms são os nomes que dá aos filhos, Monteverdi e Händel são os tios maternos e Rachmaninov o tio irmão do pai, a viver na Galiza. Até ao rei ele dá um nome – Beethoven – o rei dos músicos. E depois a figura sinistra do padre G. que ele recorda como alguém que é o Mal, alguém cujo toque provocou nele um apagão, desde sempre associado a um sentimento de medo, o medo típico da vítima que se acha culpada do mal que lhe provocaram.

O pai – Johann Sebastian – é constantemente recordado como uma pessoa boa que atraía os desventurados. São muitas as marcas, anotações e sublinhados que fiz, mas deixo aqui apenas alguns em torno da figura do pai.

“O meu pai foi um artista do silêncio.” “A medicina ainda não é inteligente, é ainda uma simples prática, simples constatação de factos. Tem de descobrir a beleza e a salganhada imaterial de um tumor cancerígeno, porque num tumor cancerígeno também está a vontade de vida do corpo do homem que o traz dentro de si. É essa a razão de o meu pai ter escolhido o silêncio. Não havia nada a dizer. A medicina estava vazia, a religião nunca existiu, e ele já abandonara o seu carro. Os seres humanos já estavam na invisibilidade, não tinha nada para nos dizer” (pág. 70)

“Na realidade, eu nunca soube quem era o meu pai. Foi o ser mais tímido, enigmático, silencioso e elegante que conheci na minha vida. Quem foi? Não me dizendo quem era, o meu pai estava a forjar este livro.” (pág. 217)

“Éramos então pai e filho, de uma forma que nunca mais voltaríamos a ser.

Jogávamos muito bem.

Formávamos um único ser, fundíamo-nos.

Éramos amor.

Mas nunca falámos disso, nunca o dissemos.

Nunca.”  (págs. 264 e 265)

Sobre a mãe – a Wagner – limito-me a fazer esta transcrição: “Como sou parecido com a minha mãe, absolutamente igual.” (pág. 360)

Muito próximo do fim,

 “O mês de Junho aparecia por Barbastro como um deus a iluminar a vida das pessoas.

Era o paraíso. Foi o meu paraíso. Foram eles o meu paraíso, o meu pai e a minha mãe, como gostei deles, como fomos felizes e como nos desmoronámos. Que bela foi a nossa vida em conjunto, e tudo está perdido agora. E parece impossível.” (pág. 235)

Manuel Vilas tem uma produção poética intensa e a sua escrita é muita rica, mas simples, sem artifícios. Este romance autobiográfico surpreende pela escrita, mas não posso deixar de aqui referir o último capítulo (157) que se refere à noite da sua concepção quando os pais eram uns jovens a estrear a sua vida conjugal e um prédio em que tudo era  novo, em comparação com a decrepitude do mesmo prédio passados cinquenta anos. É um capítulo simplesmente belíssimo.

O epílogo – A família e a História – é como que a síntese, em poesia, das cerca de quatrocentas páginas que constituem o livro.

Termino, voltando ao princípio e ao icónico canto da grande Violeta Parra

 “ Obrigada à vida, que me deu tanto. Deu-me o riso e deu-me o pranto. …”

16 de Junho de 2019

Almerinda Bento

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