“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”, Ana Cristina Silva
“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”, Ana Cristina Silva, 2010
Sei que o próximo livro de Ana Cristina Silva está prestes a sair, mas antes disso quis ler este livro que comprei há tempos a um amigo alfarrabista. Estava autografado, tinha sublinhados e anotações, a que acrescentei os meus próprios sublinhados, o que prova como um livro é apropriado e lido diferentemente por cada leitor. Mais uma personagem – Al-Mu’tamid – que Ana Cristina Silva estudou, pesquisou e nos dá um retrato complexo e interessante.
Al-Mu’tamid foi uma personagem que eu desconhecia em absoluto e a leitura deste livro permitiu-me conhecer, não só este emir que viveu no final do século XI, mas também um pouco da história do chamado Al-Andalus, ou seja, a região do sul de Espanha, o sul do Alentejo e Algarve, quando essas regiões estavam divididas em taifas que eram governadas por reis mouros. Al-Mu’tamid nasceu em Beja, foi governador em Silves e governou Sevilha após a morte do pai. Ao contrário do pai, cujo objectivo quase exclusivo foi combater e fazer guerra, Al-Mu’tamid tinha outras intenções que passavam por uma governação menos ligada à guerra e em que a poesia, a cultura e a filosofia teriam um maior peso. As disputas e rivalidades entre os emires das taifas, as investidas dos cristãos a norte e as ambições dos almorávidas de Marrocos descontentes com o fraco apego dos emires aos ensinamentos de Alá precipitaram o o fim de Al-Mu’tamid e o fim do reino Al-Andalus.
Esta “Crónica” constituída por vários capítulos cujos títulos são versos de diversos poemas de Al-Mu’tamid é, não só o relato da vida do rei-poeta, mas uma longa reflexão sobre um destino que ele não quis, num período de profunda convulsão social e política que transformou a Península Ibérica. “A verdade é que nem como emir me distingui” … “Nasci com vocação para poeta, mas o destino quis que eu administrasse um reino” (pág. 32). A função de governante não se ajustava ao seu perfil. O seu ideal era celebrar a beleza através da poesia e a paz com que sonhava teve de ser adiada indefinidamente pelas circunstâncias. Fora os momentos descontraídos e de felicidade da sua juventude, em que a arte e o prazer andaram de mãos dadas, o seu destino obrigou-o a seguir um caminho que não quis e a viver com os fantasmas do pai a quem queria agradar e dos filhos pelas suas mortes.
Para além do remorso e do luto por mortes que não conseguiu evitar e por outras que protagonizou, viveu de perto a intriga da corte, a falsidade e a traição dos cortesãos. Se o povo, espoliado e cansado da guerra acolheu com júbilo as ideias fanáticas do emir de Marrocos quando este desembarcou com os seus exércitos para derrubar o reino Al-Andalus, - a “glorificação da jihad fazia-se em prejuízo de chamamentos mais lúcidos, mas unia o povo num propósito. A guerra santa era um abrigo seguro para a miséria dos mais pobres.” (pág. 140 - Al-Mu’tamid também encontrou em Marrocos, como prisioneiro, gente que o olhava com “uma certa reverência misturada com compaixão” (pág. 156). De tantos quantos viveram com Al-Mu’tamid, foi Itimad o maior amor da sua vida e quem o acompanhou até ao fim, estando os seus túmulos em Aghmât, num mausoléu construído pelo filho Arrazi.
“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”é uma história sobre o poder, sobre as consequências devastadoras das guerras, sobre o remorso, sobre a solidão e sobre o amor. E também sobre o fanatismo religioso que continua a subjugar povos nos dias de hoje, com base em ideias e pressupostos primários saídos da cabeça de fanáticos sem escrúpulos.
8 de Setembro de 2023
Almerinda Bento