Corpo Vegetal. Julieta Monginho
Corpo Vegetal, Julieta Monginho, 2024
Este é o quarto livro de Julieta Monginho que leio. Leio-o quando a sociedade portuguesa é sacudida pela notícia da violação de uma jovem por três “influencers” que filmaram o acto e o partilharam na internet, tendo a violação sido vista por milhares de pessoas, sem que alguém se tenha levantado para denunciar o abuso. Leio-o, quando recentemente, um conhecido sociólogo português acusado de assédio afirmou sentir-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado. Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.” A violação é o que está no centro de “Corpo Vegetal”, com as consequências devastadoras para a vida de uma mulher na sequência da violação.
Os verbos que dão nome aos seis capítulos do livro - Cair, Correr, Caminhar, Recuar, Voar, Dançar – acompanham Mimi, a personagem central, que podia ser qualquer uma das muitas mulheres que se confrontam com esse crime hediondo que atenta contra a sua autonomia e que tantas vezes fica impune, numa sociedade que inverte/subverte a situação, desculpabilizando os homens e olhando para as mulheres como culpadas. «Ela estava a pedi-las!» sintetiza uma visão discriminatória e culpabilizadora, tantas vezes assumida por quem detém a justiça, que deveria, ao invés, ser respeitadora da igualdade e dos direitos de todas as pessoas, independentemente do género.
Mimi é tradutora, tem 48 anos, é mãe de Bea e separada de Miguel, com quem mantém uma relação de amizade e cumplicidade que a separação não matou. Os pais, já idosos, são acompanhados por Isa, uma cuidadora brasileira e Rosalina, uma amiga artista que visita os pais de Mimi são as pessoas do círculo familiar da personagem central.
No polo oposto, Samson X Baxter, o autor americano de cinquenta e muitos anos, que Mimi só conhece do último livro que anda a traduzir e dos emails que trocam e videochamadas que fazem para tirar dúvidas. Até que há “esse maldito dia” do assalto sexual e com ele o pasmo, o horror, a paralisia, o desespero, a ambivalência entre denunciar ou ficar parada, adiar ou agir e enfrentar o poder. Do encontro em Lisboa, sobra a orquídea Juana que se “tornou prova de terror” (p.26) e a repulsa bem no fundo do seu “corpo rasgado” (p.10).
A narrativa coloca Mimi e coloca-nos a nós, leitores, perante várias perguntas. O que fazer? Denunciar? Como fazer uma denúncia? A quem se/me dirigir? Vale a pena avançar quando “já ninguém acredita em nada” (p.81) e já ninguém acredita no #metoo? A violência misógina das mensagens que o advogado de Samson X lhe envia é o espelho duma sociedade em que a impunidade dos agressores é total. De que lado está afinal a justiça, quando os direitos à privacidade e à autonomia são postos em causa, quando são pedidas à vítima provas de que não fez nada de mal (p. 120)? Nunca li “O Processo” de Kafka, mas em dada altura da leitura deste “Corpo Vegetal” recordei “O Castelo” e as barreiras intransponíveis que a burocracia cria para impedir o acesso à justiça.
Contudo, é no seio da família e das amigas, que Mimi ganha força para avançar e fazer ouvir a sua voz. O pai que “considera a insubmissão o único sentido da História, o único sentido da vida” (p.18) e que (se) apoia (n)a filha para escrever a sua “Teoria Geral da Insubmissão”. Isa que ouve e é quem ouve os seus segredos mais íntimos. A filha que pressiona para que a mãe se mexa e que é quem denuncia publicamente o violador. Miguel, o Próspero de “A Tempestade” que consegue mobilizar uma pequena Vila alentejana (a ilha) para a alegria do encontro com a cultura. Miguel, o que está lá sempre para a ouvir. Tão importante saber ouvir! Rosalina, que desenha árvores e que tem a arte da escuta dos outros. A mãe e as memórias da roda de mulheres que se juntavam para ouvir as novelas e daí até à ideia de se criar “uma comunidade de leitoras” (91). “Tontices, dizia ela. Mais lúcidas que os meus devaneios. A cadência da voz, a vivacidade, as mãos nodosas, falantes, sobrepostas à paisagem. Uma serenidade alheia aos meus últimos dias. Queriam mostrar-me outra possibilidade de viver.” (p. 93)
“Corpo Vegetal” vai ser objecto de uma conversa no próximo encontro de Leia Mulheres no Aljube. Como todos os livros que li de Julieta Monginho, também neste, cada frase tem muitas camadas. Lemos uma vez, voltamos atrás e descobrimos outros sentidos. É uma leitura que, embora nos puxe para avançar, nos obriga a alguma serenidade e vagar. Certamente que no encontro de leitoras no Museu do Aljube muito será dito para além deste pouco que aqui fica escrito neste simples texto. Um livro com muitas camadas focando um assunto central que exige resposta urgente e firme.
8 de Abril de 2025
Almerinda Bento
Nota: escrevi este texto a ouvir “From Gardens Where We Feel Secure” de Virginia Astley, que não conhecia e a que o livro faz referência na página 129.
“Confusa, talvez, mas o corpo adquirira por mim uma espécie de lucidez que só a ele pertencia. O que me escapava, ele sabia de cor. Sabia-o há muito, muito tempo. Clamava por água e por luz, para sobreviver, como a orquídea. Clamava por repouso e palavras secretas para regressar à vida. Pedi para me porem a tocar Virginia Astley, From Gardens Where We Feel Secure. (…) Os sinos em repique, as teclas como gotas, pétalas, caules tenros ao vento. Esse o meu lugar.
Um caule ao vento, o meu corpo. Um corpo e a sua paisagem, algo com medo de sentir.”
8 de Abril de 2025