Contos de Cães e Maus Lobos, Valter Hugo Mãe
Para ti, Zita, irmã do coração, que tiveste o carinho de me oferecer este belo livro num dia de anos.
“Contos de Cães e Maus Lobos”, Valter Hugo Mãe, 2015
À medida que fui lendo “Contos de Cães e Maus Lobos”, o quinto livro que leio de Valter Hugo Mãe, fui percebendo que me iria ser difícil escrever sobre os doze contos deste livro. Achei mesmo que me iria limitar a transcrever alguns excertos mais significativos que me tinham mais impressionado. Para além da escrita pessoalíssima de Valter Hugo Mãe, cada conto é acompanhado de imagens de artistas plásticos que o autor convidou. Destaco a capa belíssima de Paulo Damião que ilustra o primeiro conto “ A Menina que carregava Bocadinhos” e o prefácio de Mia Couto a que deu o título “Um Pequeno Prefácio para Contos Gigantes”. A certa altura, Mia Couto escreve: “ Tal como nos livros anteriores, há nesta antologia de contos o convite ao regresso a um recanto de que nunca saímos, um reencantamento de infância, uma cumplicidade de quem partilha vazios e silêncios”. (…) “ Está nestes contos aquilo que está em toda a sua obra: o questionar das nossas certezas mais fundas, uma visita às profundezas da alma.” (…) “E é por isso que estes contos, mais do que gigantescos, não têm tamanho.”
“A Menina que carregava bocadinhos” é o sonho de liberdade. “A liberdade também era isso, não voltar”… “…a criada vestiu a sua blusa de princesa e soltou os cães que se puseram em rebuliço e latindo.” (pág. 29).
“O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar. Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo.” (pág. 37). Assim começa o segundo conto com o título “O menino de água”, que na nota do autor que figura no final do livro “é para todas as pessoas que acreditam que as crianças não se podem perder pela tragédia do mundo que os adultos criam.” (pág. 159).
Crescer não é fácil; por vezes é até doloroso e um processo solitário. Assim li “Querido monstro” de que escolhi esta passagem: “…nenhuma tristeza define obrigatoriamente o que podemos fazer no dia seguinte. No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos sempre optar por regressar à busca das ideias felizes.” (pág. 52).
Quando decidimos não agir em conformidade com aquilo que a sociedade espera de nós, podemos ser postos de lado ou ser considerados malucos. Assim aconteceu com “A princesa com alma de galinha”. “Um dia, a princesa disse que queria ser enfermeira e imediatamente correu pelo reino a notícia de que a moça estava maluca.” (pág. 59).
Da história de uma criança que vive no cimo de um monte isolado com a mãe e o pai que é guarda-florestal, transcrevo este parágrafo e relevo o papel determinante que certos professores e professoras têm nas nossas vidas e na nossa maneira de olhar para o mundo: “Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.” (pág. 85).
“O rapaz que habitava os livros” fala de quando a paixão dos livros se sobrepõe a tudo. “Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente.” (pág. 93). “Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros”. (pág. 95).
“Tinha um pássaro no coração. Era assim mesmo, o lugar mais decente para aprisionar um animal de estimação”. (pág. 106), do lindíssimo conto “Modo de amar”.
A história da menina do capuchinho vermelho e do lobo mau é recriada em “O mau lobo”. Aqui de novo a inocência da menina e do lobinho que vai ser curado com as mezinhas que a avó conhece.
“As mais belas coisas do mundo” foi talvez o conto que mais amei de entre os doze contos do livro, o qual nos fala da relação do narrador com o seu avô. Dá vontade de o transcrever todo, de o reler e reler e reler. “Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia reconhecer a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar.” (pág. 128).
Quando li “Quatro Velhos”, o penúltimo conto, não consegui deixar de pensar no conflito actual entre a Rússia e a Ucrânia!
Neste encantamento que é ler e ficar a matutar depois de cada conto, chego ao último “Bibliotecas” ilustrado por Jas e fico rendida logo com a primeira frase: “As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar.” (pág. 149). Vira-se a página, no alvoroço da descoberta que Valter Hugo Mãe nos propõe sobre o que são as bibliotecas, e não resisto: “Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.” (pág. 150). E a terminar: “Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor. // Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor”. (págs. 151, 152)
Na Nota do Autor, que encerra o livro, acompanhada da arte de Duarte Vitória, Valter Hugo Mãe esclarece que “Não sei escrever para crianças. Acho que apenas ausculto a sua candura, mas não sei rigorosamente dirigir-me a elas. Sou desajeitado. Os contos que invento ficam arrevesados de ser uma coisa e outra. Talvez sejam a consciência magoada pela evidência de hoje me ter adulto”.
Se quem ler este meu texto tiver ficado tentado a ler este “Contos de Cães e Maus Lobos” já me darei por feliz. É de facto um livro invulgar.
6 de Abril de 2022