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Lendo e escrevendo

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“Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”, Olga Tokarczuk

02.09.20, Almerinda

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Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos”, Olga Tokarczuk, 2009

Tal como “Viagens”, este “Conduz o teu Arado sobre os Ossos dos Mortos” da mesma autora, é um livro surpreendente. É um romance passado na Polónia rural, numa povoação perto da fronteira com a República Checa, mais propriamente num pequeno lugar – Planalto – onde apenas três casas são habitadas durante todo o ano, visto que dado o rigor do Inverno, os restantes habitantes vão para a cidade a partir de Outubro. A narradora que detesta que a tratem por Janina porque acha que esse nome não se lhe adequa, dedica-se, entre outras actividades, a fazer a ronda pela terra para verificar se tudo está em ordem, nomeadamente as casas e propriedades que os seus donos lhe deixaram à guarda durante os meses que estão ausentes. Já não é nova e tem Maleitas que tornam por vezes difícil cumprir uma tarefa que se torna mais penosa com a neve e o frio dos longos meses de Inverno. Tinha sido engenheira de pontes na Síria e na Líbia, tinha sido professora e continuava a ensinar Inglês a crianças na cidade uma vez por semana, todas as sextas-feiras recebia a visita de Dyzio com quem trabalhava na tradução de William Blake para polaco, mas a sua grande paixão e dedicação era a Astrologia e fazer os horóscopos das pessoas sempre que sabia o dia e a hora exacta dos seus nascimentos. O chefe da polícia achava que ela era “doida varrida”.

Logo no início do romance, a narradora é acordada pelo vizinho o Papão que a informa da morte do outro vizinho o Pé Grande. Estes são os nomes que ela lhes dá e que correspondem à impressão que eles lhe transmitem. O inusitado da morte de Pé Grande, um caçador furtivo contra o qual ela já havia apresentado várias queixas que caíam no saco roto das autoridades locais e da polícia, engasgado com um osso de uma corça, levam-na a construir uma teoria de que ele tinha sido morto pelas corças, castigando-o da sua actividade de caça furtiva e ilegal. Descobre a data de nascimento de Pé Grande e umas fotografias e vai passar dois serões a estudar o horóscopo do caçador de pés grandes.

As estranhas mortes que se seguem, todas de caçadores locais, vão gerar a insegurança e o pânico entre os habitantes, tanto mais que as investigações não conseguem chegar a resultados. Janina continua a defender tratar-se duma vingança dos animais e reclama contra a ausência de respostas da polícia às suas cartas. Os seus amigos – Dyzio, Papão e Boa Nova – embora não partilhem das suas teorias nem da sua paixão pela Astrologia, são os seus únicos amigos, a sua família, sobretudo desde que as suas Meninas – as cadelas – morreram.

A narradora é uma mulher que se bate pela defesa dos Animais, pela Natureza. Trata cada um como uma entidade, respeitando-os, não se colocando numa posição de superioridade face a eles. Para ela o Homem é um ser livre, não uma peça de uma engrenagem, que se deve reger pelo coração e pela intuição e não por regras estúpidas e rígidas. Ela gostava muito de observar os morcegos com os quais se identificava: “No fundo, eu tinha muita coisa em comum com eles - também via o mundo noutra frequência, de pernas para o ar.” Para uns, uma ave rara, para outros uma bruxa, uma megera, uma velha tonta.

A ingenuidade e a genuinidade da narradora são comoventes e conseguem ser incómodas. Longe de se sentir isolada e não compreendida, ela não pára de denunciar a inoperância da polícia, a hipocrisia do padre Sussurro, as leis irracionais e contranatura, os projectos que só se fazem com os subsídios da União Europeia…

Tratando vários temas muito a sério, muitas vezes com ironia e muito sentido de humor, este livro de Olga Tokarczuk não deixa ninguém quedar-se na paz dos mortos.

1 de Setembro de 2020

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