Saltar para: Post [1], Comentar [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

As Palavras Poupadas, Maria Judite de Carvalho

22.04.19, Almerinda

 

Tanta Gente, Mariana.jpg

As Palavras Poupadas, Maria Judite de Carvalho, 1961

É impossível ficar indiferente à escrita de Maria Judite de Carvalho. Li alguns livros (crónicas e romances) dela nos anos 80 e mais tarde ainda um outro romance. Senti necessidade de a revisitar e ler mais, para confirmar o tom melancólico, mas sereno que eles me tinham deixado como marca. Confirmei a grande, enorme escritora da literatura portuguesa do século XX, injustamente pouco referenciada.

Há uma mágoa na sua escrita que nos atinge, porque é tão palpável, tão verdadeira. Num prefácio a “A Janela Fingida” – “Maria Judite de Carvalho: uma ternura magoada” – escreve Baptista Bastos: “De que falam todos os livros de Maria Judite de Carvalho? De pessoas, necessariamente. De uma lenta, insidiosa, obsidiante solidão. (…) Solidão, portanto, interpretada como violência imposta pela nossa sociedade; solidão como facto social. Solidão no realizado e no irrealizável, nos actos, no amor, na esperança, no sentido da vida, nas relações humanas, nos projectos. Solidão como sinónimo de falência. Eis porque nunca saímos «neutros» desta prosa neutra.”

Reli, pois, vários livros dela. Li outros pela primeira vez e saí exausta e magoada, mas continuando a colocar a escrita de Maria Judite de Carvalho num lugar bem elevado. E de tudo o que li dela, atrevo-me a escolher “As Palavras Poupadas” como o melhor entre os melhores, o mais perfeito e completo de entre os que li. Em torno da figura de Maria da Graça, que aos catorze anos é já uma pessoa triste, infeliz, sem mãe, que “fugia sempre a sentar-se perto de um espelho”, aos vinte e dois anos quando se apaixona por Claude, ou mais tarde já viúva e sozinha com o seu passado, são-nos apresentadas todas as personagens que a rodeiam: Claude o marido, Vasco a paixão da juventude e amante da madrasta, o pai, Leda a madrasta, Clotilde-minha-querida e Emília as amigas de Leda, Piedade a criada com o seu poder insidioso, o tio Rafael. De todas estas personagens, o tio Rafael só é referido uma única vez, mas vale a pena aqui transcrever como ele é descrito: “Ele era a gota de água no deserto e ao mesmo tempo a ovelha ronhosa da família, qualidades essas (ou defeitos, segundo o ângulo de visão) que se encontram frequentemente lado a lado. Um poeta, afinal, só mais tarde Graça o havia de compreender, um poeta que nunca escrevera versos e que a vida empregara traiçoeiramente (porque ela não gosta de poetas, a vida; «porque esse mandrião nunca quis estudar», dizia o pai) na casa Faria Benavente, Comissões e Consignações, da Rua dos Fanqueiros, onde, valha a verdade, raramente aparecia. Andava sempre sem dinheiro e cheio de dívidas, e o pai não lhe perdoava a sua total ausência de senso prático”.

A história de Maria da Graça é assim contada a partir da dança das personagens e de situações passadas, num puzzle extremamente bem articulado, numa escrita visual, inteligente, elegante, com diálogos convincentes, naturais e em que a ironia fina de Maria Judite de Carvalho, característica em todas as suas obras, tornou a leitura de “As Palavras Poupadas” difícil de interromper. O final, como geralmente acontece nos romances desta escritora, fica nas mãos do/a leitor/a, deixando-lhe a capacidade de participar e de dar o destino que bem entender às personagens que tão bem descreveu e de quem também em certa medida através de alusões ou pinceladas breves, deixou em aberto traços e caminhos por percorrer.

“As Palavras Poupadas” recebeu o prémio Camilo Castelo Branco.

Almerinda Bento

 

Comentar:

Mais

Se preenchido, o e-mail é usado apenas para notificação de respostas.