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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

As Inseparáveis, Simone de Beauvoir

13.10.24, Almerinda

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As Inseparáveis, Simone de Beauvoir, 1954

Quando no ano passado li “A Força da Idade” de Simone de Beauvoir, lamentei já mal recordar “Memórias de uma Menina Bem-Comportada” que lera há muitos e muitos anos e que na altura teve um grande impacto no meu desenvolvimento. Aí, logo no início, se referia várias vezes a grande amiga Zaza e a enorme influência que essa amizade tinha tido na sua juventude e ao longo da vida. “As Inseparáveis” é um romance que vai ressuscitar essa amizade profunda entre Élisabeth Lacoin (Zaza) e Simone de Beauvoir. Para isso, em “As Inseparáveis” a autora cria duas personagens: Andrée que é Zaza e Sylvie/Simone, a narradora.

Conheceram-se com nove anos, numa escola de freiras católicas. Se antes de passarem a ser colegas de carteira, Sylvie não tinha amizades com ninguém em particular, “Todas as crianças que conhecia aborreciam-me” (p. 16), Andrée vai ser para ela uma revelação. Rebelde, confiante, frontal, independente (vai sozinha da escola para casa), habilidosa e muito inteligente, Sylvie vai nutrir pela colega uma amizade profunda, a tal ponto que, quando as férias as separam, confessa que “viver sem ela não era viver” (p. 22). Mas incapaz de revelar essa paixão, só para si própria confessava que “nos livros, as pessoas fazem declarações de amor, de ódio, têm coragem de dizer o que lhes vai na alma; porque é que isso não é possível na vida real?” (p. 29) e só bastante mais tarde lhe revelou que o que a ligava à amiga era muito mais do que estima.

No entanto, a narradora, ao aprofundar a sua convivência com a colega e com a família, vai descobrir insuspeitos aspectos da vida de Andrée, que sempre lhe parecera uma rapariga insubmissa e diferente do comum das jovens que conhecia. Filha de uma família numerosa, profundamente religiosa, tradicional, classista, conservadora, o destino que lhe estava previamente traçado, era o de não ter direito à escolha, de se moldar ao que a sociedade queria dela enquanto mulher, de reprimir desejos, de pôr a família em primeiro lugar e de seguir um destino igual ao da sua mãe, também ela castrada por uma mãe autoritária. A narradora descobre que a casa e a família de Andrée não passam de uma prisão; que os casamentos são arranjados, pois “um casamento por amor é considerado suspeito” (p. 84); que a alternativa ao casamento é o convento e que, afinal, a amiga é profundamente infeliz “Não tenho um minuto livre” (p. 79).

Em “As Inseparáveis” Andrée é a personagem central, sendo o papel da narradora o de desvendar a personalidade da amiga e em consequência, traçar o retrato de uma época, incidindo a atenção sobre a vida das mulheres e das raparigas de uma determinada classe social. Simone de Beauvoir tinha 46 anos quando escreveu este romance e o seu pensamento sobre a condição feminina estava amadurecido e já publicara “O Segundo Sexo” e “Os Mandarins”. Sendo “As Inseparáveis” um romance e não um ensaio filosófico, ele denuncia, contudo e de forma clara, a visão de um sector conservador e poderoso da sociedade francesa, o peso da ideologia da Igreja na construção do conceito de pecado ligado à sexualidade e aos sentimentos; os preconceitos de classe e de raça que discriminam pessoas e as tornam personae non gratae, ou, por exemplo, os medos daquele sector privilegiado da sociedade, de que o sufrágio feminino viesse beneficiar os inimigos da Igreja.

Na contracapa desta bela edição da Quetzal, com tradução de Sandra Silva, pode ler-se na sinopse, que o livro contém “um posfácio da filha adoptiva de Simone de Beauvoir – Sylvie Le Bon de Beauvoir – em que é feito um relato factual e cronológico desta amizade, da vida e do contexto familiar de Zaza, e um conjunto de cartas e de fotografias, As Inseparáveis é um livro de grande valor literário e documental e uma peça importante no conhecimento da vida e obra de Simone de Beauvoir”.

9 de Outubro de 2024

Almerinda Bento