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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Apenas Miúdos, Patti Smith

10.12.21, Almerinda

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“Apenas Miúdos ” – Patti Smith, 2011

A primeira vez que ouvi falar de Patti Smith foi há bem pouco tempo, numa campanha presidencial de Marisa Matias em que “People have the Power” cantado por ela me deixava fascinada pela força que o poema convocava. Mais tarde, foi à grande amiga Patti Smith que coube ler em Estocolmo a mensagem de Bob Dylan, agraciado em 2016 com o Nobel da Literatura. Foi pois com interesse que quis conhecer esta mulher despojada de artifícios de artista, neste “Apenas Miúdos”, o seu primeiro livro em prosa.

Ela e Robert Mapplethorpe, a quem Patti prometera escrever a história deles num livro, são esses “miúdos”. É um livro de memórias que começa nos primeiros anos de Patti a viver com os pais e os irmãos no sul da Nova Jérsia, a partida para Nova York em 1967 quando decide viver a sua vida independente, o encontro com Robert e a descoberta de um mundo novo, os amores, desamores, encontros e desencontros da vida tumultuosa dos anos 70, uma década de amor, rock and roll, drogas, arte, experimentalismo, busca incessante da felicidade, até à morte de Robert em 1989, quando Patti vive em Detroit, é mãe dum filho e duma filha e é casada com Fred Sonic Smith. O livro está repleto de nomes dos famosos da música, da arte e da cultura anglo-americana que nessa época passavam na rádio e nos gira-discos dos jovens de todo o mundo.

Patti e Robert, dois jovens de 21 anos, com culturas e histórias diferentes, anseiam da vida muito para além dos percursos previsíveis, expectáveis pela sociedade. Querem exprimir-se pela arte, querem ser livres, querem criar aquilo que ainda nunca antes foi experimentado, mas ainda não sabem como fazê-lo. Escrever um livro, escrever poemas, musicar poemas, desenhar, ler e aprender com o que se lê, fotografar. Se Robert ficou célebre pela fotografia, nunca tendo conseguido adaptar-se a trabalhos estáveis ou fixos, aceitando o que aparecesse, a verdade é que Patti, para além de ter trabalhado em livrarias, experimentou várias formas de expressão, desde uma breve incursão no teatro, a modelo para fotografias de Robert, leituras de poemas ao vivo, desenha, faz recensões de discos, mas sempre com o seu maior desejo de escrever poemas para canções. E tudo isto num ambiente de falta de dinheiro permanente e de busca de reconhecimento. Se o primeiro mês da chegada de Patti Smith a Nova York foi uma experiência de sem-abrigo, ela confessa que se sentia segura “Não tinha nada para oferecer a um ladrão, e não temia os homens que andavam por ali a rondar”. Os seus mantras dessa época eram “Sou livre, sou livre” “Tenho fome, tenho fome”. (P. 45) Mas no meio da solidariedade que lhe permitia uma pequena refeição ou um banho em casa de algum amigo, foi o encontro com Robert que veio marcar a sua vida, muito para além do tempo de vida de Robert.

Nova York palpitava de vida. Jovens como eles, à procura de si próprios. “Éramos um bando de inadaptados, mesmo no terreno liberal de uma escola de arte. Por vezes dizíamos a brincar que éramos um «salão de inúteis»”.(p. 75) Leais, mas livres. Foi no Hotel Chelsea onde “toda a gente que passa por aqui é alguém, mesmo que não seja ninguém no mundo lá de fora” (p. 115) , “uma feira franca, onde toda a gente tinha algo de si para vender e ninguém parecia ter muito dinheiro ” (pp. 134 e 141) que Patti e Robert conheceram uma imensa comunidade de  artistas e que marcou Patti pelos famosos que ali tinham vivido ou pernoitado, como Oscar Wilde, Dylan Thomas, Thomas Wolfe ou Bob Dylan. Para Patti o Hotel Chelsea é a sua nova universidade onde, para além de entrar em contacto com os seus poetas de eleição, aprofunda a sua relação antiga com a poesia de Rimbaud, conhece Janis Joplin e tantos outros músicos, poetas, cantores, sendo o fim do Chelsea, quando cada um se vai embrenhando nas suas vidas e escolhendo os seus destinos, o fim de um ciclo para ela.

Neste livro de memórias, Patti é duma franqueza comovente. Há uma marca forte de espiritualidade na personalidade de Patti, alguém que passando por um ambiente tão desprendido e livre passa muito consciente de si e quase intocada. O seu ar andrógino criava falsas ideias e incompreensão entre os que com ela se relacionavam, de que era lésbica e se drogava. Imagino-a sentada no chão, no Hotel Chelsea ou no estúdio que compartilhava com Robert, a escrever poemas na Remington e mais tarde na Hermes 2000, a planear a sua ida a Paris para visitar o túmulo de Jim Morrison e a Charleville para visitar o lugar onde Rimbaud nasceu e está sepultado. A ligar todos aqueles que morreram ainda jovens: o Brian Jones dos Rolling Stones, o Jim Morrison, o Jimmy Hendrix ou a Janis Joplin. A sentir que a sua vida está numa encruzilhada, que a sente como irrelevante e irreverente e que quer dar-lhe uma volta. A imaginar no primeiro dia de cada ano que “o que acontecer hoje, acontece no resto do ano” e a decidir 1973 como o seu ano da poesia. Mas sempre ligada a Robert, admirando-o, amando-o e dando-lhe todo o apoio, mesmo quando as suas propostas a chocam por serem demasiado radicais.

Os anos 80 trazem consigo a SIDA, uma doença desconhecida e fatal. Uma geração que morrera no Vietname ou por consumo de drogas via agora chegar uma cruel praga para a qual a medicina ainda não estava preparada. No dia em que Patti sabe que está grávida da filha Jesse, recebe a notícia de que Robert está doente com SIDA. Quando mais tarde se reuniram e Robert decidiu fotografar a capa do álbum de Patti “Ele transportava a morte dentro de si e eu transportava a vida. Ambos estávamos cientes disso, bem o sei. Era uma simples fotografia. O meu cabelo estava entrançado como o da Frida Kahlo. O sol a bater-me nos olhos. E eu estou a olhar para o Robert e ele está vivo.”

“Apenas Miúdos” é um livro comovente. O retrato de uma época, de uma geração. Um testemunho que vale a pena ler.

7 de Dezembro de 2021

 

 

 

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