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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

An Unending Story

08.06.20, Almerinda

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Estamos a viver tempos muito perigosos

Talvez esta frase por muitas vezes a ter repetido, por muitas vezes a ter lido se tenha tornado irrelevante, sem qualquer peso ou força. Mas acho que ela é actual e real.

Esses tempos perigosos não começaram agora com a pandemia, são anteriores a ela, mas tornaram-se mais perigosos nestes tempos de covid, nesta primeira metade de 2020.

O confinamento das pessoas encerrou-as num espaço e num tempo estranhos. Levou-as a olhar para dentro, a desenterrar os seus medos e a estar expostas às mensagens mais díspares, falsas, oportunistas e desconexas. A vida ficou para muitos de pernas para o ar. Desempregados, apanhados pela doença, ansiosos por não terem perspectivas de futuro, expectantes face às notícias do país e do mundo, estarrecidos com lideranças inenarráveis, assentaram os pés na terra percebendo que ficaram sem chão.

Uma guerra. Um tsunami. O desconhecido. Cada um chamou à pandemia o nome que melhor achou ajustar-se à situação. Cada um fez e fará deste período a sua leitura pessoal. Nos diários da quarentena que floresceram, espelham-se os dias vividos por milhões de pessoas em todo o mundo. As crianças que deixaram de ir à creche e à escola. Os velhos que ficaram em casa à espera que lhes levassem as compras e os medicamentos. As mulheres que passaram a estar sempre na presença dos agressores. Os casais que tiveram de gerir o cansaço, os tiques e o temperamento do outro, sabendo à partida que dificilmente serão confrontados com o novo. Os que continuaram a trabalhar, como se o hoje fosse igual ao ontem. Os que salvaram vidas.

Também fiz o meu diário. Comecei-o a 12 de Março e acabei-o a 14 de Maio. Duas quintas- feiras. Sinto que esta é uma “unending story”. Parei porque estava a ficar saturada, já não me interessava estar a anotar o número de infectados, mais o número de mortos, mais o número de recuperados. Chovia nesse dia e sentia uma vontade imensa de agarrar na roupa que me acompanhou nestas semanas, incluindo toda a roupa interior e deitar tudo aquilo para o lixo, embora sabendo que o tempo da covid ainda está para durar. No dia 13 de Maio não resisti e pus no lixo os chinelos de inverno. Já não conseguia ouvir o som arrastado que faziam quando me deslocava pela casa. A higienização paranóica, a presença constante da lavagem das mãos, mais o álcool gel, sem que se perceba como iremos ganhar anti-corpos é algo que me assusta. Se calhar uma ida a um psicólogo no futuro poderá ajudar a ganhar os anti-corpos que tanta higienização não permite.

Tenho ideia que muitos mais de nós vamos apanhar a covid. Até agora não tenho conhecimento de nenhuma pessoa amiga que a tenha apanhado, o que é estranho, mas com o tempo, ela há-de bater-nos à porta e alguns de nós vamos ter maior capacidade para lhe resistir ou não. Tudo depende de vários factores, como se sabe. Novembro e Dezembro vão ser os dias de pânico, acho eu. Entretanto vamos desconfinando com mais ou menos ousadia.

O meu desconfinamento tem sido no sentido de suprir o que me faltou dos 50 dias em que estive em casa. Exercício físico, marcha todas as manhãs de casa até ao Seixal e regresso. São 6 quilómetros que se fazem em pouco mais de uma hora e 15 minutos. Faz bem ao coração, aos músculos das pernas e à cabeça. Ganhei peso, subiu o colesterol, foi talvez o pior desta quarentena. Li, escrevi, desenhei, pintei, fiz colagens, sudokus, telefonei, passei demasiado tempo no facebook e no whatsapp, continuei a contactar os meus alunos/as da UNISSEIXAL, acabámos de ler The Diary of a Young Girl, dormi algumas sestas, acordei muito cedo, acreditei que a humanidade ia ser mais inteligente, o meu respeito pelo meu filho cresceu, fiquei com menos tolerância e pachorra para algumas pessoas e práticas.

Limpei algumas coisas, mas continuei ainda a não limpar tudo o que precisa de ser limpo.

Sinto que estou uma pessoa diferente. Talvez mais velha e preguiçosa e isso, sem dramas. O grande abanão que tive nos primeiros anos da década de 10 com a morte dos meus queridos mais próximos, foi reavivado com esta doença a que muitos chamam bicho, por terem medo de o apanhar. A pandemia veio para nos lembrar da precariedade da vida e para nos situar na nossa fragilidade.

Olho à volta, eu sei que o meu horizonte é muito curto!, e acho que os humanos se esquecem depressa. Volta tudo à estaca zero. À estaca abaixo de zero.

Almerinda Bento

Domingo, 7 de junho de 20

 

 

 

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