A Peste, Albert Camus
“A Peste”, Albert Camus, 1947
Há livros que parece que estão à nossa espera para serem abertos e lidos na hora certa. Foi a leitura de uma crónica num jornal em que se fazia referência a “A Peste” de Camus, que me levou a encontrar este livro, na minha estante, no meio de muitos outros.
Logo no início, o narrador situa-nos num dia de Abril nos anos 40 do século passado em Orão, uma cidade desinteressante como tantas outras: árida, sem pombas, sem árvores, sem jardins em que os interesses dos seus habitantes são fazer negócios e enriquecer. Até que um dia, aparece um rato morto no patamar do prédio onde mora o doutor Rieux. Poucos dias depois tudo está enxameado de ratos mortos. A surpresa inicial dá lugar ao pânico, até que as autoridades ousam pronunciar a palavra peste. As previsões das autoridades sanitárias apontam para a possibilidade de metade da população da cidade vir a morrer. Mas dever-se-á dar toda a informação à população? A cidade não tem soro, aguarda que o mesmo venha de França e, entretanto, é decretado o encerramento da cidade. Para alguns, o assunto é encarado com desinteresse, mas a corrida às lojas e o açambarcamento dos bens de primeira necessidade é o primeiro sinal do medo que se instala definitivamente. Preces colectivas, mercado negro, esquemas mafiosos para fugir da cidade, violências, pilhagens, incêndios, juízos de valor que são suprimidos, especulação nos géneros essenciais, enterros em massa, cansaço das equipas sanitárias, desespero.
O que mais se ouve “Quando tudo isto tiver acabado…” ou palavras como “pico, planalto ou patamar” também aqui nos aparecem, o que revela que o padrão da pandemia daquela cidade Argelina se repete, mas agora em 2020 a um plano e a um nível muito mais alargado porque planetário.
O Dr. Rieux vai interagir com várias personagens que, embora sem formação nem ligação à saúde, são a sua equipa que o acompanha nas suas visitas domiciliárias e que actualiza os registos burocráticos necessários. Apoiam-se, lutam por salvar vidas, emocionam-se, desesperam, confessam-se, questionam-se. O padre Paneloux, que no início da peste fizera um discurso acusador, culpando os homens pela doença que se abatera sobre a cidade, perante o sofrimento e a morte de uma criança inocente, altera o seu discurso e põe em dúvida todas as suas certezas. Afinal será Deus mesmo misericordioso? Jean Tarrou que vai registando num caderno as suas impressões sobre a cidade, como se fosse um historiador, vem mais tarde confessar ao médico numa conversa num terraço de onde se conseguia ver o mar – “um lugar fora da peste” – que um dia decidiu “recusar tudo o que, de perto ou de longe, por boas ou más razões, faz morrer ou justificar que se faça morrer”, numa clara alusão a regimes opressores sustentados em pretensos grandes ideais. Joseph Grand, o eterno precário funcionário da Câmara, leva uma vida ascética e sonha encontrar as palavras certas para se exprimir e para escrever um dia um romance. Rambert, o jornalista apanhado pela peste e que quer sair da cidade para se juntar à pessoa que ama, que se exaspera por não ser atendido achando que as autoridades tomam decisões abstractas sem olhar ao particular, que tudo faz para tentar quebrar o cerco, mas que quando tem a oportunidade de sair, não consegue abandonar os seus amigos. Como era possível ser feliz, quando se tem vergonha de ser feliz sozinho, abandonando quem precisava de si? – assim pensa Rambert quando desiste de sair da cidade. Ao que o Dr. Rieux lhe diz: “Nada no mundo vale que nos afastemos daquilo que amamos”. Afinal o que é a coragem? É morrer por um ideal ou morrer por amor?
Em torno da metáfora da peste, este livro convoca-nos a reflectir sobre o valor dos grandes ideais da humanidade em situações extremas: a amizade, a solidariedade, a paz, a crença num deus, a honestidade, a coragem, as convicções. A morte cuja magnitude e frieza quando vista pelo prisma dos números não deixa de ter o peso e o silêncio de uma derrota sempre que um indivíduo morre.
De repente, dez meses depois do primeiro sinal de peste, ela desaparece. A peste recua e o primeiro sinal é o regresso de ratos à cidade. “A doença partia como tinha vindo.” “Tinha-se apenas a impressão de que a doença se tinha esgotado por si ou talvez de que se retirava depois de ter alcançado os seus objectivos. De qualquer maneira, o seu papel tinha terminado.” Para Rieux, o médico habituado durante aqueles longos meses a conviver com dezenas e centenas de doentes que morreram de peste, a morte do seu amigo Tarrou, já depois de anunciado o fim da peste, foi a derrota definitiva.
No final, quando a cidade ainda receosa festeja com risos e com lágrimas o fim da peste, o Dr. Rieux volta ao terraço já sem o seu amigo Tarrou que nunca sucumbira na busca da paz e da felicidade, com a certeza de que “há nos homens mais coisas a admirar que coisas a desprezar”. Esta nota de esperança na humanidade é temperada com a ideia de que a alegria está sempre ameaçada pois “o bacilo da peste não morre nem desaparece nunca.”
8 de Abril de 2020
Almerinda Bento