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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Cidade e as Serras, Eça de Queirós

27.05.24, Almerinda

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A Cidade e as Serras, Eça de Queirós, 1901

Mais um livro que voltei a ler por força da circunstância de Eça de Queirós ter sido escolhido para o mês de Maio no Círculo de Leitura da UNISSEIXAL. Este livro sempre me faz recordar com saudade a minha irmã Isabel que tinha uma verdadeira adoração pela figura de Jacinto e do seu enlevo pelo arroz de favas.

 “A Cidade e as Serras” é um livro delicioso, cheio de humor, que se lê com muito agrado. Foi o último livro escrito por Eça de Queirós, tendo a conclusão da revisão do manuscrito ficado entregue a amigos.

É o narrador José Fernandes que introduz a personagem central – o amigo Jacinto - a que chama frequentemente o Príncipe. Jacinto, sendo um homem com raízes em Portugal, no entanto toda a sua vida de adulto se desenrolou na cidade de Paris, mais propriamente no nº 202, um palacete nos Campos Elísios. Tendo adoptado como máxima de vida “o homem só é superiormente feliz quando é superiormente civilizado” (pág. 16), para Jacinto Civilização era sinónimo de Cidade. Com uma agenda preenchidíssima, na sua vida não podia faltar nenhuma maquineta que ainda estivesse para ser inventada e os objectos de uso pessoal tinham de ser multiplicados até à náusea. E era feliz este Jacinto hiper civilizado? Quando Zé Fernandes regressa a Paris depois de uma ausência de 7 anos, Jacinto ainda está nos seus trinta e poucos anos, mas o amigo encontra-o envelhecido, sem o habitual brilho nos olhos, corcovado, exclamando “Que seca!”, ou “Que maçada!” acompanhadas de bocejos, de suspiros e de muito enfado. Inteligentemente, o Grilo, um dos seus criados, diz a certa altura “Sua Excelência sofre de fartura.” (pág. 81)

As descrições são tão perfeitas e completas que conseguimos visualizar aquele mundo hiperbólico, a que o narrador chama frequentemente “jacíntico”. O gabinete, a biblioteca, o quarto de Jacinto, todo aquele luxo supérfluo são descritos ao pormenor, assim como os “desastres humilhadores” (pág. 71) como a inundação no 202 ou o peixe da Dalmácia encalhado no elevador, no dia do jantar oferecido ao grão-duque.

O Príncipe, prematuramente envelhecido, conhecedor de todas as teorias e filosofias, desinteressado de tudo e de todos e de si próprio, exclama no dia do aniversário: “Então há trinta e quatro anos que eu ando nesta maçada?” (pág. 107) Só uma revolução podia tirar Jacinto desta morte lenta. Afinal, o campo, que ele sempre desdenhara e que associava às funções nutritiva e procriadora, o oposto da Civilização, acabou por ser a salvação. Tormes, a grandeza do Douro e da vinha, a serra, o caldo de galinha, o arroz com favas, o frango assado no espeto… a descoberta da Natureza! Uma ressurreição. As anteriores exclamações de enfado de Paris são agora substituídas por “Que doçura, que paz…” (pág. 132),Que beleza!” (pág. 136), ”Divina!” (a sopa) (pág. 211).

Mas “A Cidade e as Serras” não é um livro que passe por cima da sociedade tal como ela é, focando-se apenas na vida de dois elementos das classes privilegiadas. O Jacinto civilizado de Paris que deixara o Pessimismo para trás, é em Tormes, primeiro o Jacinto contemplativo e depois o Jacinto que passa à Acção e à transformação quando se apercebe da miséria, da doença e da fome que grassa entre os trabalhadores daqueles campos de que é proprietário. Tendo vivido até então numa bolha de luxo, acorda para a realidade social, apesar de já em Paris o amigo José Fernandes lhe ter feito uma prelecção, invectivando a sociedade que aceita que haja escravos para haver Jacintos. “E um povo chora de fome, e da fome dos seus pequeninos – para que os Jacintos, em Janeiro, debiquem, bocejando, sobre pratos de Saxe, morangos gelados em champanhe e avivados de um fio de éter!”(pág. 89)

O último capítulo é uma viagem de Zé Fernandes a Paris para um encontro desencantado com uma cidade e um 202 que não é mais do que um museu que parou no tempo, sem qualquer graça. Aquela revisitação é um nunca mais para Zé Fernandes. Erotismo, flacidez, pó de arroz, decadência, tudo aquilo é postiço e sem graça. O regresso a Tormes é o encontro com o encanto da serra e da harmonia que representa Jacinto e a sua família.

O regresso e a releitura dos clássicos com o manejo de um vocabulário rico e diversificado é sempre um prazer e uma aprendizagem. Eça de Queirós tem uma frescura e vivacidade na sua escrita que o tornam actual e acutilante.

26 de Maio de 2024

 

 

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