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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Corpo Vegetal. Julieta Monginho

13.04.25, Almerinda

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Corpo Vegetal, Julieta Monginho, 2024

Este é o quarto livro de Julieta Monginho que leio. Leio-o quando a sociedade portuguesa é sacudida pela notícia da violação de uma jovem por três “influencers” que filmaram o acto e o partilharam na internet, tendo a violação sido vista por milhares de pessoas, sem que alguém se tenha levantado para denunciar o abuso. Leio-o, quando recentemente, um conhecido sociólogo português acusado de assédio afirmou sentir-se “profundamente injustiçado, profundamente magoado. Apesar desta mágoa toda acho que não consigo odiar. Elas [as mulheres que acusam] de alguma maneira são vítimas do neoliberalismo que se instalou e é pena que não assumam a sua responsabilidade, porque isso é típico do neoliberalismo, é transferir para os outros as responsabilidades.” A violação é o que está no centro de “Corpo Vegetal”, com as consequências devastadoras para a vida de uma mulher na sequência da violação.

Os verbos que dão nome aos seis capítulos do livro - Cair, Correr, Caminhar, Recuar, Voar, Dançar – acompanham Mimi, a personagem central, que podia ser qualquer uma das muitas mulheres que se confrontam com esse crime hediondo que atenta contra a sua autonomia e que tantas vezes fica impune, numa sociedade que inverte/subverte a situação, desculpabilizando os homens e olhando para as mulheres como culpadas. «Ela estava a pedi-las!» sintetiza uma visão discriminatória e culpabilizadora, tantas vezes assumida por quem detém a justiça, que deveria, ao invés, ser respeitadora da igualdade e dos direitos de todas as pessoas, independentemente do género.

Mimi é tradutora, tem 48 anos, é mãe de Bea e separada de Miguel, com quem mantém uma relação de amizade e cumplicidade que a separação não matou. Os pais, já idosos, são acompanhados por Isa, uma cuidadora brasileira e Rosalina, uma amiga artista que visita os pais de Mimi são as pessoas do círculo familiar da personagem central.

No polo oposto, Samson X Baxter, o autor americano de cinquenta e muitos anos, que Mimi só conhece do último livro que anda a traduzir e dos emails que trocam e videochamadas que fazem para tirar dúvidas.  Até que há “esse maldito dia” do assalto sexual e com ele o pasmo, o horror, a paralisia, o desespero, a ambivalência entre denunciar ou ficar parada, adiar ou agir e enfrentar o poder. Do encontro em Lisboa, sobra a orquídea Juana que se “tornou prova de terror” (p.26) e a repulsa bem no fundo do seu “corpo rasgado” (p.10).

A narrativa coloca Mimi e coloca-nos a nós, leitores, perante várias perguntas. O que fazer? Denunciar? Como fazer uma denúncia? A quem se/me dirigir? Vale a pena avançar quando “já ninguém acredita em nada” (p.81) e já ninguém acredita no #metoo? A violência misógina das mensagens que o advogado de Samson X lhe envia é o espelho duma sociedade em que a impunidade dos agressores é total. De que lado está afinal a justiça, quando os direitos à privacidade e à autonomia são postos em causa, quando são pedidas à vítima provas de que não fez nada de mal (p. 120)? Nunca li “O Processo” de Kafka, mas em dada altura da leitura deste “Corpo Vegetal” recordei “O Castelo” e as barreiras intransponíveis que a burocracia cria para impedir o acesso à justiça.

Contudo, é no seio da família e das amigas, que Mimi ganha força para avançar e fazer ouvir a sua voz. O pai que “considera a insubmissão o único sentido da História, o único sentido da vida” (p.18) e que (se) apoia (n)a filha para escrever a sua “Teoria Geral da Insubmissão”. Isa que ouve e é quem ouve os seus segredos mais íntimos. A filha que pressiona para que a mãe se mexa e que é quem denuncia publicamente o violador. Miguel, o Próspero de “A Tempestade” que consegue mobilizar uma pequena Vila alentejana (a ilha) para a alegria do encontro com a cultura. Miguel, o que está lá sempre para a ouvir. Tão importante saber ouvir! Rosalina, que desenha árvores e que tem a arte da escuta dos outros.  A mãe e as memórias da roda de mulheres que se juntavam para ouvir as novelas e daí até à ideia de se criar “uma comunidade de leitoras” (91). “Tontices, dizia ela. Mais lúcidas que os meus devaneios. A cadência da voz, a vivacidade, as mãos nodosas, falantes, sobrepostas à paisagem. Uma serenidade alheia aos meus últimos dias. Queriam mostrar-me outra possibilidade de viver.” (p. 93)

“Corpo Vegetal” vai ser objecto de uma conversa no próximo encontro de Leia Mulheres no Aljube. Como todos os livros que li de Julieta Monginho, também neste, cada frase tem muitas camadas. Lemos uma vez, voltamos atrás e descobrimos outros sentidos. É uma leitura que, embora nos puxe para avançar, nos obriga a alguma serenidade e vagar. Certamente que no encontro de leitoras no Museu do Aljube muito será dito para além deste pouco que aqui fica escrito neste simples texto. Um livro com muitas camadas focando um assunto central que exige resposta urgente e firme.

8 de Abril de 2025

Almerinda Bento

Nota: escrevi este texto a ouvir “From Gardens Where We Feel Secure” de Virginia Astley, que não conhecia e a que o livro faz referência na página 129.

“Confusa, talvez, mas o corpo adquirira por mim uma espécie de lucidez que só a ele pertencia. O que me escapava, ele sabia de cor. Sabia-o há muito, muito tempo. Clamava por água e por luz, para sobreviver, como a orquídea. Clamava por repouso e palavras secretas para regressar à vida. Pedi para me porem a tocar Virginia Astley, From Gardens Where We Feel Secure. (…) Os sinos em repique, as teclas como gotas, pétalas, caules tenros ao vento. Esse o meu lugar.

Um caule ao vento, o meu corpo. Um corpo e a sua paisagem, algo com medo de sentir.”

 8 de Abril de 2025

 

Um Dia na Vida de Abed Salama, Nathan Thrall, 2023

11.04.25, Almerinda

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Um Dia na Vida de Abed Salama, Nathan Thrall, 2023

Desde que me conheço que ouço falar da Palestina e do conflito que opõe Israel à Palestina, com a anexação sistemática de território, com as restrições de mobilidade que tornam a Palestina uma prisão a céu aberto, dos quilómetros de muro que separam os territórios e os povos, das ocupações por colonatos israelitas, das prisões arbitrárias, das mulheres que dão à luz nos checkpoints porque não chegaram a tempo à maternidade… e penso que desde o dia 7 de Outubro de 2023 já ninguém pode dizer que não sabe, que não viu o genocídio que está a acontecer na faixa de Gaza e na Cisjordânia. Ele passa todos os dias nas televisões e já não há palavras para um horror desta envergadura.

Recentemente, vi “No Other Land” vencedor do óscar para melhor documentário, que retrata o dia a dia da ocupação israelita e a resistência palestiniana. Já depois de ter recebido o óscar, o realizador foi preso e agredido. Este “Um Dia na Vida de Abed Salama”, escolhido para leitura num dos clubes de leitura que acompanho, é um impressionante testemunho e relato de um episódio, mas é muito mais do que isso, porque nos dá o contexto histórico de um povo até aos nossos dias. Permito-me transcrever as palavras de Francisco Louçã, um dos coorganizadores deste clube de leitura, a propósito deste livro: "Thrall, judeu, educado na Califórnia, vive em Jerusalém (já viveu em Gaza) e é jornalista. Nunca escondeu o seu empenho na denúncia dos abusos da ocupação israelita. Este livro, de que a edição portuguesa foi a primeira tradução, foi publicado em 2023 e ganhou o Pullitzer numa categoria de não-ficção em 2024, e é uma poderosa reportagem sobre um pai que procura o filho, que pode ter sido vítima de um acidente com o seu transporte escolar. Não é um romance, mas retrata os seus personagens com um cuidado que faz disto uma grande peça da literatura. Não é um manifesto, mas mostra-nos as condições degradantes da vida da população palestiniana, bem como a persistência da resistência - e até a humanidade que se descobre em alguns dos representantes do outro lado. E é tremendo, caminhamos para o abismo e sabemo-lo desde a primeira página. É por isso uma desistência fatalista? Não, será mesmo um dos livros mais cheios de esperança dos últimos anos, pois naquele horror absoluto encontram-se gestos e emoções que compreendemos e nos comovem."

O livro começa com um prólogo que ajuda a situar-nos  em Anata, o local onde Abed Salama vive com a sua família. Um local caótico, sem infraestruturas, que antes tinha sido uma zona rural. Abed é casado com Haifa, tem dois filhos: Milad de 5 anos e Adam de 9. Milad vai fazer um passeio escolar e a carrinha em que viaja com os colegas e os professores é abalroada por um camião e incendeia-se. Aquilo que deveria ser um dia feliz para as crianças tornou-se uma tragédia para as cinco crianças e a professora que morreram e para o condutor da carrinha que ficou com danos irreversíveis. “O acidente destruíra todas as famílias, cada uma à sua maneira”. (p. 194)

O livro relata-nos as condições que propiciaram o desastre, a ausência da prestação de socorro pelas autoridades israelitas, os bombeiros que não apareceram, o não deixarem as ambulâncias palestinianas passarem nos postos de controlo, todo um labirinto de restrições que espelham a desumanidade das autoridades israelitas numa situação de desastre, mas que é o espelho do dia-a-dia da população árabe. As dificuldades de Abed até saber para que hospital Milad tinha sido levado, se estava vivo ou não resultam do facto de ser palestino, de ter um cartão de identidade de cor verde, sinal de que já tinha sido preso. Mas o livro está igualmente cheio de exemplos de solidariedade entre árabes e judeus, o que é o raio de esperança neste conflito sem fim à vista.

Quando pensamos na expulsão e fuga de mais de oitenta por cento dos palestinianos naquilo que foi a Nakba em 1948, as acções de resistência, as Intifadas, as prisões de crianças, os massacres, as organizações políticas no terreno com as suas diferenças, as traições, os acordos de Oslo, as resoluções nunca cumpridas, compreendemos que o ódio é o combustível para um conflito interminável e em que o desequilíbrio de forças é brutal. No documentário “No Other Land” é inesquecível a cena em que os tanques e os buldozers vêm derrubar uma escola, mas antes os soldados israelitas fecham a porta da escola para que as crianças não possam sair. Têm de saltar pela janela se não querem ficar debaixo dos escombros.

Este ódio está bem expresso no epílogo do livro “Um Dia na Vida de Abed Salama”, a propósito de uma reportagem televisiva feita pelo israelita Arik Weiss sobre o acidente da carrinha. “O motivo de interesse da história não era o acidente em si, mas a reacção de alguns jovens israelitas, que exultaram com a morte das crianças palestinianas. Arik ficara consternado com a enxurrada de publicações e comentários no Facebook que celebraram a perda de vidas:

«Hahahaha 10 mortos hahahaha, bom dia.»

«É só um autocarro cheio de palestinianos. Nada de especial. É pena que não tenham morrido mais.»

«Óptimo! Menos terroristas!!!!»

«Notícias alegres para começar a manhã.»

«O meu dia tornou-se uma doçura!»

O que chocara Arik não era tanto o conteúdo das mensagens, mas o facto de muitos dos seus autores exibirem livremente as suas identidades. Como afirmou na introdução da peça jornalística, essas pessoas escreviam sem se esconderem atrás de um teclado anónimo, sem vergonha. E muitas das publicações eram escritas por estudantes do ensino básico e secundário. Arik ficou intrigado com esse elemento. Estes adolescentes estavam a viver um período de paz invulgar. Alguns deles eram demasiado novos para se lembrarem da violência dos anos 90 e da Segunda Intifada, mas pareciam ser mais racistas do que as gerações mais velhas.” (p. 195)

“Um Dia na Vida de Abed Dalama” é um valioso trabalho de não-ficção, um instrumento muito honesto e corajoso para mostrar a realidade do conflito israelo-palestiniano. Um livro notável, a ler e divulgar.

26 de Fevereiro de 2025