Na Terra dos Outros
Na Terra dos Outros, Manuel Abrantes, 2024
Este romance da autoria de Manuel Abrantes é fruto do seu trabalho de investigação na área da Sociologia do Trabalho e das Desigualdades. A figura central é Maria do Carmo, uma rapariga que sai da sua terra aos 11 anos e que vai ao longo da vida trabalhar como empregada doméstica nas casas dos outros.
A par da vida de Maria do Carmo, o livro faz-nos percorrer a vida do nosso país até à actualidade. Maria do Carmo é uma menina que não teve infância e que foi desenraizada para a grande cidade, como aconteceu a tantos milhares de mulheres. Vidas de solidão, de abandono, de humilhação, de subalternidade, de invisibilidade, de negação de direitos. De ficar no quartinho dos fundos, de comer as sobras dos outros, de só sair ao domingo de manhã para ir à missa com a patroa, de nunca ser elogiada pelo seu trabalho, de estar sob suspeita de roubar os patrões, de não ter direito ao descanso… Sempre na terra dos outros. Num Portugal do analfabetismo, da emigração para fugir à fome e à pobreza, da guerra colonial, da PIDE, das conversas em família, da liberdade com o 25 de Abril, da explosão nas ruas com o primeiro 1º de Maio, dos patrões apavorados com as reivindicações, das infraestruturas que se estendem aos campos, das telenovelas, dos subúrbios que crescem…. Tanta mudança! E para as empregadas domésticas, o que mudou?
O autor densifica a história desta mulher como trabalhadora que faz parte de um extenso grupo de mulheres fundamentais para o funcionamento da sociedade, as cuidadoras invisíveis que depois de trabalharem uma vida inteira descobrem que nunca foram inscritas na Segurança Social e, portanto, não têm direito à reforma; das mulheres contratadas por empresas de limpeza que apenas recebem uma parte ínfima do que deviam; do trabalho escravo das mulheres migrantes. Escrava dos patrões, escrava do marido e dos filhos, que a consideram inútil, atrasada e frustrada, só uma enorme força interior permite a esta mulher sair da amargura e da prisão que tem sido a sua vida.
Maria do Carmo cresce sempre com vontade de fugir para um novo começo. Será com a mudança de casa e de patrão, com o casamento, com a possibilidade de ter uma casa que seja sua, com o nascimento dos filhos, será deixando o marido e os filhos e seguir sozinha e liberta para um outro destino? Para um outro trabalho? Maria do Carmo rebela-se, volta atrás, tem remorsos por deixar os filhos, sonha, não tem com quem “confidenciar as suas emoções” (pág. 101), culpabiliza-se, cai, levanta-se, luta. A cena da bicicleta (págs. 166 e 167) é das mais expressivas sobre a capacidade desta mulher lutar e se erguer das adversidades. “O que ela se interrogava era como faria para abrandar e imobilizar a bicicleta sem tombar desamparada. Ocorreu-lhe que seria mais prudente conservar-se em movimento, rua após rua, esquina após esquina. Ali estavam já os dois jovens diante do bloco de apartamentos, os seus filhos adolescentes a olharem para ela pasmados, tão pasmados que seriam incapazes de rir ou de protestar.”
Carmo é uma lutadora, uma resistente. Quantas mulheres como Maria do Carmo conhecemos? Por quantas passamos no dia-a-dia nos transportes públicos bem cedo pela manhã a caminho da primeira casa do dia, do idoso acamado a quem é preciso lavar, dar os medicamentos e o almoço, de mais um escritório para limpar ao fim do dia? Mulheres anónimas, invisíveis, mal pagas, descartáveis.
Manuel Abrantes quis com este livro retirar estas mulheres da invisibilidade. Quis dar-lhes nome, rosto e futuro. Um dia, uma das patroas de Maria do Carmo, uma das poucas que se sentara para a ouvir, dissera: “…que a vida de Maria do Carmo já dera voltas suficientes para encher um livro.” (pág. 282). Ele aqui está.
5 de Fevereiro de 2025