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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Na Terra dos Outros

25.02.25, Almerinda

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Na Terra dos Outros, Manuel Abrantes, 2024

Este romance da autoria de Manuel Abrantes é fruto do seu trabalho de investigação na área da Sociologia do Trabalho e das Desigualdades. A figura central é Maria do Carmo, uma rapariga que sai da sua terra aos 11 anos e que vai ao longo da vida trabalhar como empregada doméstica nas casas dos outros.

A par da vida de Maria do Carmo, o livro faz-nos percorrer a vida do nosso país até à actualidade. Maria do Carmo é uma menina que não teve infância e que foi desenraizada para a grande cidade, como aconteceu a tantos milhares de mulheres. Vidas de solidão, de abandono, de humilhação, de subalternidade, de invisibilidade, de negação de direitos. De ficar no quartinho dos fundos, de comer as sobras dos outros, de só sair ao domingo de manhã para ir à missa com a patroa, de nunca ser elogiada pelo seu trabalho, de estar sob suspeita de roubar os patrões, de não ter direito ao descanso… Sempre na terra dos outros. Num Portugal do analfabetismo, da emigração para fugir à fome e à pobreza, da guerra colonial, da PIDE, das conversas em família, da liberdade com o 25 de Abril, da explosão nas ruas com o primeiro 1º de Maio, dos patrões apavorados com as reivindicações, das infraestruturas que se estendem aos campos, das telenovelas, dos subúrbios que crescem…. Tanta mudança! E para as empregadas domésticas, o que mudou?

O autor densifica a história desta mulher como trabalhadora que faz parte de um extenso grupo de mulheres fundamentais para o funcionamento da sociedade, as cuidadoras invisíveis que depois de trabalharem uma vida inteira descobrem que nunca foram inscritas na Segurança Social e, portanto, não têm direito à reforma; das mulheres contratadas por empresas de limpeza que apenas recebem uma parte ínfima do que deviam; do trabalho escravo das mulheres migrantes. Escrava dos patrões, escrava do marido e dos filhos, que a consideram inútil, atrasada e frustrada, só uma enorme força interior permite a esta mulher sair da amargura e da prisão que tem sido a sua vida.

Maria do Carmo cresce sempre com vontade de fugir para um novo começo. Será com a mudança de casa e de patrão, com o casamento, com a possibilidade de ter uma casa que seja sua, com o nascimento dos filhos, será deixando o marido e os filhos e seguir sozinha e liberta para um outro destino? Para um outro trabalho? Maria do Carmo rebela-se, volta atrás, tem remorsos por deixar os filhos, sonha, não tem com quem “confidenciar as suas emoções” (pág. 101), culpabiliza-se, cai, levanta-se, luta. A cena da bicicleta (págs. 166 e 167) é das mais expressivas sobre a capacidade desta mulher lutar e se erguer das adversidades. “O que ela se interrogava era como faria para abrandar e imobilizar a bicicleta sem tombar desamparada. Ocorreu-lhe que seria mais prudente conservar-se em movimento, rua após rua, esquina após esquina. Ali estavam já os dois jovens diante do bloco de apartamentos, os seus filhos adolescentes a olharem para ela pasmados, tão pasmados que seriam incapazes de rir ou de protestar.” 

Carmo é uma lutadora, uma resistente. Quantas mulheres como Maria do Carmo conhecemos? Por quantas passamos no dia-a-dia nos transportes públicos bem cedo pela manhã a caminho da primeira casa do dia, do idoso acamado a quem é preciso lavar, dar os medicamentos e o almoço, de mais um escritório para limpar ao fim do dia? Mulheres anónimas, invisíveis, mal pagas, descartáveis.

Manuel Abrantes quis com este livro retirar estas mulheres da invisibilidade. Quis dar-lhes nome, rosto e futuro. Um dia, uma das patroas de Maria do Carmo, uma das poucas que se sentara para a ouvir, dissera: “…que a vida de Maria do Carmo já dera voltas suficientes para encher um livro.” (pág. 282). Ele aqui está.

5 de Fevereiro de 2025

Do Outro Lado do Sonho

23.02.25, Almerinda

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Do Outro Lado do Sonho, Ursula K. Le Guin, 1971

Leitura terminada. Confesso que tenho dificuldade em escrever sobre este livro, mas como vai ser objecto da próxima conversa no Leia Mulheres Lisboa, será certamente um debate vivo e com diferentes opiniões.

Eu não sou apreciadora de ficção científica. Acho que ao longo das cerca de duzentas páginas do livro, há muitas voltas e atalhos que me fizeram sentir perdida e confusa. O tema tem a ver com o sonho e a realidade. Afinal o que é sonho, o que é realidade?

O livro foi escrito em 1971. Passa-se nos Estados Unidos da América, no final dos anos 80. “Nova Iorque estava em vias de se tornar uma das maiores vítimas do efeito de estufa, enquanto o gelo polar continuava a fundir-se e o mar continuava a subir; na verdade, toda a costa de Boston estava ameaçada.” “A subnutrição, a superpopulação e a intensa poluição do ambiente eram normais” (pág. 34). George Orr vive em Portland e nas suas deslocações diárias para o trabalho, no comboio, “entre milhares de pessoas. Sentia aquele peso esmagador que se abatia interminavelmente sobre si. Pensou que estava a viver um pesadelo, daqueles que levam uma pessoa a acordar quando está a a dormir.” (pág. 42). “Poderia alguém, mesmo são, viver neste mundo sem dar em doido?” (pág. 48) É neste ambiente que George Orr, alguém que se privava de sonhar, que tinha medo de sonhar porque os seus sonhos alteravam os acontecimentos e que queria curar-se para aprender a não sonhar com efeito, acabou nas mãos de um psiquiatra que o utilizou como instrumento para as suas experiências. Mas Orr queria ser curado e não usado.

A partir do momento em que entra no esquema das sessões com o psiquiatra que o hipnotiza e lhe controla os sonhos, Orr sente-se usado, quer desistir, mas é impotente e não consegue libertar-se. Ele está “apanhado, como um rato numa ratoeira” (pág. 75). Afinal as mudanças operadas pelo dr. Haber só vieram piorar a situação. Na nova realidade tudo estava padronizado, todos se vestiam da mesma maneira, todos tinham a pele cinzenta e os problemas raciais deixaram de existir, mas embora fossem tolerados os doentes mentais, era considerado crime ter-se uma doença incurável, contagiosa ou hereditária. Não havia espaço para se “perder tempo com sofrimentos desnecessários” (pág. 131). A nova realidade era outro pesadelo.

Nesta história estranha em que há máquinas que condicionam sonhos, em que há extraterrestres pacíficos que se integram na sociedade como empresários, em que há vírus cancerígenos que dizimam populações, também há lugar ao amor que consegue sobrepor-se ao caos que o homem criou. Onde acaba a realidade e começa o pesadelo?

Em minha opinião, o título original deste livro de ficção científica “The Lathe of Heaven”, que pode ser traduzido por O Torno do Céu, aponta para a figura do psiquiatra Dr. Haber, qual deus com a ambição de moldar a mente do seu paciente, levando-o a imaginar viver uma realidade que de facto não existe. Uma coisa é certa: o problema das alterações climáticas não é ficção, a poluição é o ar que respiramos, o degelo polar e o risco de as regiões costeiras ficarem submersas são a realidade. A realidade como pesadelo é o triste legado que a humanidade está a deixar para os vindouros.

16 de Fevereiro de 2025

 

Frida é resistência

19.02.25, Almerinda

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Hoje escolhi Frida para festejar os 6 anos deste blogue, que resiste, pese embora os dias de hoje não serem para leituras demoradas, nem para blogues.

Esta linda Frida foi-me oferecida pela minha prima Zita, que sabe do meu amor por Frida Kahlo. Tenho a imagem de Frida Kahlo em inúmeros objectos e imagens por toda a casa. Há uns anos, quando li "Diego & Frida" que comprei numa Feira do Livro de Lisboa, entrei pela primeira vez naquele universo único de uma mulher apaixonada, lutadora, sofredora e icónica. E nunca mais parei de ver filmes, peças de teatro, ler livros e ver exposições sobre ela. Costumo dizer que só me falta ir à Cidade do México para visitar a casa onde ela viveu, amou e pintou. 

Para mim, Frida é sinónimo de resistência. Ao longo de várias décadas, foi isso o que ela fez de forma exemplar, desde aquela fatídica tarde de 17 de Setembro de 1925, quando se deslocava com Alejandro de autocarro e este foi abalroado por um comboio. 

 

Alejandro estava lívido, os braços e pernas tremiam-lhe violentamente. Em mangas de camisa, sozinho no meio dos gritos, dos destroços, da confuão, do vaivém de macas carregando os feridos, e talvez mortos, paralisado num segundo tempo pelo horror do espectáculo, não conseguia senão dizer para si: «Ela vai morrer... Ela vai morrer...». 

No hospital da Cruz Vermelha, Frida foi transportada imediatamente para a sala de operações. Os médicos hesitavam em actuar, pois não alimentavam ilusóes: ela morreria sem dúvida durante a operação. O seu estado era absolutamente desesperado. Era preciso avisar a família sem demora. 

«Matilde soube a notícia pelos jornais e foi a primeira a chegar. Não se separou de mim durante três meses, dia e noite a meu lado. O choque tornou minha mãe muda durante um mês, e não veio ver-me. Ao ter conhecimento da notícia, a minha irmâ Adriana desmaiou. O meu pai teve um desgosto tão grande que adoeceu e só pude vê-lo vinte dias mais tarde.» (págs. 91 e 92) 

in "Frida Kahlo - Uma Vida", Rauda Jamis

Quando Matilde quis saber  do estado da irmã, o médico disse-lhe que, considerando a quantidade de ferimentos que ela tinha, a sua sobrevivência seria um milagre. Ele estava bastante pessimisrta. Faziam o que era possível, mas não podia fazer conjectutras. Só um mês depois do acidente a equipa médica fez o primeiro diagnóstico sério sobre a situação de Frida, sendo-lhe prescrito o uso de um colete de gesso durante nove meses e repouso absoluto na cama durante pelo menos os dois meses seguintes à sua estada no hospital. 

Resistir é o que se pede nestes tempos tão perigosos em que parece que o mundo deu uma cambalhota e enlouqueceu. Os senhores do mundo decidem sobre as vidas dos povos como se estivessem a jogar ao Monopólio. A aberração é tal que a sensação é a de se estar a viver uma distopia.

Resistir pois, o mais possível e acreditar que ainda há forças progressistas e democráticas para fazer virar os pratos da balança. 

19 de Fevereiro de 2025 

A Poesia está de luto

04.02.25, Almerinda

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Hoje de manhã fui confrontada com uma notícia que era expectável, mas que nunca queremos ouvir.

"A Desobediente faleceu". Foi essa a mensagem que o meu filho me enviou, estava eu em Lisboa e ainda no começo de uma série de coisas que tinha de fazer. Foi um choque. Uma tristeza. 

Não tinha previsto entrar em nenhuma livraria, não fosse ser tentada, mas não resisti, já que estava em Alvalade e poderia encontar a Marta na Bertrand. Mas a Marta não estava e um dos primeiros livros que me chamou a atenção foi o livro da Adília Lopes. O livro chamou-me e foi esse que levei. O jovem que me atendeu quando lhe estendi "Pardais" questionou-me: - Não quer levar nenhum de Maria Teresa Horta? -  A Desobediente! - respondi-lhe. Hoje não. Hoje levo a Adília Lopes. Ainda deu para falarmos da maravilhosa biografia de Maria Teresa Horta feita por Patrícia Reis e lá segui para outro destino. 

"Nous n'avons plus d'argent pour enterrer nos morts.

Le prêtre est là, marquant le prix des funérailles;

Et les corps étendus, troués par les mitrailles,

Attendent un linceul, une croix, un remords."

Esta é a epígrafe que Adília Lopes escolheu da autoria de Marceline Desbordes-Valmore para abrir o seu livro de poemas com o título "Pardais". Folheio o livro e sorrio com alguns dos seus poemas, pequenos, mas que sabem tão bem neste dia soalheiro e frio de Fevereiro. Para cortar a tristeza desta(s) morte(s). 

"Sem liberdade não há felicidade."  (p. 20)

"Sem democracia não há alegria." (p. 21)

"Vale a pena escrever poemas." (encimado pelo poema de Fernando Pessoa "Valeu a pena? Tudo vale a pena se a alma não é pequena) (p. 24)

"É preciso pensar no dia de amanhã alegremente."(p. 25)

"Não empolar. Não escarafunchar." (p. 26)

"Na montra de um café de Lisboa está escrito: A Vida é Super. Também acho." (p. 27)

Já hoje escrevi um pequeno texto de homenagem a Maria Teresa Horta. Poucas e pobres palavras para uma Mulher tão grande, para uma mulher cuja escrita e vida foram importantes para mim como feminista. Para uma Mulher que nunca foi consensual, que nunca vogou nas águas do senso comum, para uma Mulher que rompeu barreiras quando isso era tão difícil e que pagou pela sua desobediência e pela sua insubmissão. Uma Mulher que foi e é uma inspiração. 

Hoje é dia de ler Poesia. O futuro está aí para descobrir e divulgar poesia, as e os poetas.

Acreditar que a Poesia, a Literatura, a Cultura nos salvam.

4 de Fevereiro de 2025