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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Caderno Proibido, Alba de Céspedes

28.01.25, Almerinda

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Caderno Proibido, Alba de Céspedes, 1952

 

De tantas tão boas leituras que fiz em 2024, tenho muita dificuldade em dizer qual ou quais foram as minhas preferidas, mas “Caderno Proibido”, o último livro que li no passado ano, é certamente dos melhores. Uma verdadeira revelação, um livro com a minha idade, mas que é duma actualidade incrível e no qual me revi, e certamente muitas mulheres que tiverem oportunidade de o ler.

O caderno proibido é uma revolução na vida de Valeria. Mulher italiana de 43 anos, casada há 22, mãe de uma rapariga e um rapaz, empregada num escritório, um dia começa a escrever num caderno de capa preta reflexões sobre si e a sua vida. A escrita no caderno – um diário – vai, pela primeira vez, obrigá-la a questionar tudo: a família, o casamento e, sobretudo, ela própria.

Valeria é uma mulher tradicional, preconceituosa, educada para se apagar nos cuidados com o marido e os filhos, a viver em função dos outros, a gerir um orçamento limitado que a leva a comprar para si só o indispensável, com uma vida social muito limitada, apenas mantém contacto com uma amiga de infância. Invisível, o seu trabalho não é valorizado. Até àquele domingo ameno em que sai para comprar um maço de tabaco para o marido e acaba por ser atraída pela capa preta de um caderno na montra da tabacaria e o compra.

A escrita do diário vai-se prolongar ao longo de seis meses e logo no primeiro dia em que trouxe aquele caderno para casa, nunca mais teve um momento de paz. O romance começa com estas palavras: “Fiz mal em comprar este caderno, mesmo muito mal. Mas agora já é tarde de mais para me lamentar; o mal está feito.” (pág. 7). A viver em função dos outros, descobre que nem consegue encontrar em casa um lugar onde escreva sem a presença da família, nem sequer tem um sítio seguro para esconder o diário “Afinal, não tinha, em toda a casa, uma gaveta, um cantinho que fosse meu” (pág. 8) / “… sonho que gostaria de ter um quarto só para mim.” (pág. 55) / “Repito que precisávamos de mudar de casa porque esta já é muito pequena, mas sinceramente é porque queria ter um quarto para mim.” (pág. 109). E pela primeira vez, deseja estar só, “Agora desejo que saiam para ficar sozinha a escrever” (pág. 9).

Como quando se toma uma decisão difícil, se escolhe um caminho que implique uma mudança corajosa, a pessoa questiona-se, tem dúvidas… Assim é com Valeria que põe em causa o seu direito de escrever o diário; que tem sentimentos de culpa, remorsos por roubar tempo para si sempre que escreve no diário; que se rebela contra o diário e tem vontade de o rasgar. Mas que tem ânsias de verter para o papel as suas inquietações e aquilo que nunca confessou a ninguém nem a si mesma: que se sente escrava da família e da casa; que não sabe o que é o descanso; que nunca teve tempo para ler um livro; que encara a família como um lugar de opressão; que o casamento e o nascimento dos filhos foram os únicos  pontos altos da sua vida e que tudo o resto foi insignificante; que embora ache que na sua idade já é tudo tarde de mais, descubra que ainda é possível amar fora do casamento; que para sobreviver precisa de mentir; que um matrimónio exemplar é feito de um contínuo fingimento.

Não se espere deste romance respostas fáceis, nem um final feliz. Sendo uma narrativa que decorre no início dos anos 50, no pós-guerra e sempre com o receio de uma possível guerra futura, considero que não é um romance datado, antes aborda temas e inquietações intemporais: o envelhecimento, a sexualidade, os preconceitos sociais, a família, os conflitos geracionais, a ânsia de liberdade e de felicidade. Valeria, que sempre se habituara ao silêncio e que tinha pudor em confessar ao marido os seus sentimentos, ousa um dia perguntar-lhe se era feliz. Pergunta tão simples, de resposta tão difícil! “– Que pergunta! Pois naturalmente, porque não havia de ser? Os pequenos são bons, são saudáveis… Ricardo há-de fazer uma bela carreira na Argentina. Mirela já trabalha, depois casará. Que mais poderemos desejar, mamã?” (pág. 77).

O caderno proibido abriu a Valeria um caminho de liberdade e de questionamento de que é impossível livrar-se, apesar das amarras que a prendem.  Termino com uma das últimas frases deste belo livro, inesquecível: “Todas as mulheres escondem um caderno negro, proibido. E todas têm de o destruir.” (pág. 208)

 

30 de Dezembro de 2024

Almerinda Bento

 

 

O Poço e a Estrada, Biografia de Agustina Bessa-Luís, Isabel Rio Novo

23.01.25, Almerinda

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O Poço e a Estrada - Biografia de Agustina Bessa-Luís, Isabel Rio Novo, (2016-2018)

Quem me conhece sabe como gosto de biografias e de romances biográficos. Esta é a terceira biografia que leio publicada pela Contraponto, depois de Integrado Marginal de Bruno Vieira Amaral que biografou José Cardoso Pires e de A Desobediente de Patrícia Reis, sobre a vida e obra de Maria Teresa Horta. Todas elas valiosos e completos trabalhos de divulgação da obra dos biografados. Quando se acaba de ler a biografia de Agustina Bessa-Luís fica-se com um enorme respeito e gratidão pela biógrafa que, sem apoio da família da biografada, teve a coragem de se aventurar num trabalho minucioso e muito profundo sobre a vida e obra da escritora. Valendo-se do conhecimento da extensíssima obra da autora, de entrevistas e testemunhos de amigos e conhecidos, de pesquisas em arquivos e bibliotecas, só uma grande paixão pela obra permitiu um trabalho com o valor que é dado apreciar na leitura de O Poço e a Estrada. Eu, que pouquíssimo li de Agustina (o preconceito de me aventurar na leitura de uma autora com fama de difícil…) fico com vontade de deixar a preguiça e ir de seguida ler uma edição (5ª) d’ A Sibila da Guimarães Editores, que tenho cá em casa e que herdei da minha irmã Isabel.

Da leitura desta biografia, fica-se com a ideia da personagem invulgar, complexa, contraditória e nada consensual que foi Agustina Bessa-Luís. Impossível de catalogar, a sua paixão pela escrita foi a marca fundamental da sua vida. Criança observadora, silenciosa e precoce, gostava de estar sozinha e o gosto pela leitura e pela escrita revelou-se desde muito cedo e sempre aspirou a ser excepcional na escrita. Como Isabel Rio Novo refere, “…todos os romances de Agustina são biográficos…” (p. 16). A sua obra é extensa e a filha continua a trabalhar na organização de muito material escrito pela mãe que nunca foi publicado, como cartas e manuscritos de intervenções, entre outros.

Isabel Rio Novo traça nesta sua biografia vários aspectos que gostaria de referir e que nos permitem ter uma visão muito abrangente, não só da vida como da obra de Agustina. Sendo uma mulher que nasceu no início da década de 20 do século passado, nunca foi muito ligada ao meio intelectual da sua geração, nem apreciava eventos literários nem livrarias. No entanto, estabeleceu amizades duradouras e íntimas com autores como Ferreira de Castro, José Régio, Ilse Losa ou Eugénio de Andrade ou com Sophia de Mello Breyner ou o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. Nunca se furtou a grandes disputas públicas e desenvolveu ódios de estimação que ficaram célebres como com Jaime Brasil, o sobrinho de Teixeira de Pascoaes ou Natália Correia. “Cúmplices, mas sempre em choque” (p. 333), assim é referido o seu relacionamento com Manoel de Oliveira que, sendo uma relação de amor-ódio, correspondia de facto a uma admiração recíproca entre ambos.

Oriunda de uma família abastada e conservadora, há na biografia de Agustina momentos verdadeiramente inusitados, como por exemplo, um namoro e casamento nada convencionais, depois de ela própria ter posto n’ O Primeiro de Janeiro aquele que foi “ao longo de três anos… o único anúncio de cariz pessoal colocado por uma rapariga solteira.” (p. 132). Dessa ousadia, à revelia da família, resultou um casamento de grande entendimento e cumplicidade que durou 72 anos. Mesmo como esposa, mãe e avó, Agustina nunca seguiu os papéis que tradicionalmente eram impostos às mulheres, chegando mesmo a aconselhar as jovens escritoras a não se consumirem no papel de mães como fez em conversa com Inês Pedrosa “Agora vão começar a falar-lhe no casalinho, não vá nisso. É uma prisão que fazem às mulheres. Tomar conta de crianças dá muito trabalho, e depois não tem tempo para escrever. Olhe que no meu tempo era muito mais difícil ter só uma filha, e foi o que eu fiz.” (p. 159). Embora sendo uma mulher com um percurso cívico de direita, dizendo que as suas simpatias se situavam no centro-esquerda, a verdade é que também neste campo os seus posicionamentos são cheios de ambiguidades. “Em certo aspecto, sou o que se chama conservadora. No que se refere a um enraizamento que constitui o melhor da minha cultura” (p. 290). Desiludida e frustrada com o estado do país antes do 25 de Abril, o rumo da revolução gerou nela desconfiança, mas no final da sua presença pública na vida do país, apoiou sem hesitação a campanha do SIM pela despenalização do aborto a pedido da mulher, no referendo de 2007. Este percurso não pode deixar de ser polémico, algo que era indiferente para Agustina, insubmissa, independente e imprevisível.

A fama de Agustina surgiu e consolidou-se com a publicação de “A Sibila” em 1953. Agustina tinha 32 anos. A partir daí, os prémios e as homenagens sucedem-se e isso vai dar um impulso e um entusiasmo cada vez maior a Agustina para escrever. Isabel Rio Novo passa em revista toda a obra da escritora que lhe vai granjear ao longo da sua longa vida, homenagens, condecorações, prémios, nomeações para cargos de direcção e relevância em várias instituições, inclusivamente o seu nome foi ventilado em 1981 para o Prémio Nobel da Literatura. Havia por parte da escritora “um aparente desinteresse pela sua reputação literária” (p. 354), de acordo com testemunho de Lídia Jorge. Realço aqui que Agustina Bessa-Luís foi a primeira mulher a ser admitida na Academia de Ciências de Lisboa em 1989, uma instituição que durante 210 anos apenas tinha acolhido homens como seus membros.

Falar de Agustina é também falar das casas de família e as casas onde viveu com o marido desde a infância até à morte: Amarante, Régua, Póvoa, Coimbra, Esposende e Porto, com especial destaque para o número 100 da Rua do Gólgota, “a casa ideal” (p. 219); das viagens que fez com o marido, com Sophia de Mello Breyner e com o casal Maria Helena Vieira da Silva e Arpad Szenes. E, finalmente, da profunda ligação e cumplicidade que Agustina teve com o marido Alberto Luís, que a apoiava na transcrição dos manuscritos que ela lhe lia e que continuou a representá-la em actos públicos em que era homenageada e a que já não podia comparecer por estar doente.

Esta biografia da autoria de Isabel Rio Novo é um convite à leitura da obra de Agustina. Todos os capítulos são encimados com epígrafes que são frases dos diferentes livros de Agustina, como que a abrir a porta aos leitores para ousarem lê-la. Inês Petrosa, citada na pág. 406 diz “Abre-se ao acaso um livro de Agustina, e sempre encontramos uma frase que nos inquieta ou nos consola.”.  Vamos então à epígrafe inicial do livro onde Isabel Rio Novo foi buscar o título da biografia de Agustina: “Viviam na aldeia e tinham no quintal um poço construído de cascalho e tão profundo que, diziam os velhos, se ouviam os galos cantar do outro lado; um dia, Marcelo, que tinha seis anos, inclinou-se para espreitar a mancha de água imóvel e viu uma estrada, branca, longa […]. Uma estrada no fundo do poço – ele jurava que a tinha visto. Aonde podia levar, como aventurar-se para chegar-lhe, para percorrê-la, medi-la, explorá-la?”

Agustina Bessa-Luís, O Manto

20 de Janeiro de 2025

Almerinda Bento