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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Foi um Bom Ano (de leituras)!

31.12.24, Almerinda

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Foi um bom ano!

Costumo dizer que quem não tem o hábito de ler, nem sabe o que perde. Em cada livro que lemos há um mundo novo que se abre, um diálogo que encetamos, uma caixa onde descobrimos preciosidades inimagináveis. Quem me conhece, sabe como a leitura é das actividades que mais prazer me dá e como depois de cada livro que leio, gosto de escrever um pequeno texto com a minha leitura pessoal. Só então dou por terminada a leitura. Às vezes, fico até com dificuldade de passar para outro livro, porque o anterior ainda anda às voltas na minha cabeça.

No final de cada ano, agarro na agenda onde listei os livros que li e depois faço aqui uma pequena publicação-síntese. É um clássico. A fotografia não reflecte essa lista, porque alguns dos livros que li requisitei-os na Biblioteca Municipal e outros emprestei-os e não os tinha comigo para a “fotografia de família”.

Como em anos anteriores, leio uma média de dois livros por mês. Este ano foram vinte e dois, melhor, vinte e um e meio porque ainda ando a meio da maravilhosa biografia de Agustina Bessa-Luís da autoria de Isabel Rio Novo, que penso terminar ainda durante as férias de Natal. Tento sempre escolher de forma paritária os autores, para que não sejam só homens ou só mulheres, ou só nacionais ou internacionais. Tento também não ir só atrás das modas ou do que que as livrarias (im)põem nas montras, embora este ano tenha usado menos o velho modo aleatório dos “potes” de livros “há muito à espera da sua vez” e “as novidades compradas ou oferecidas”. E como sigo três clubes de leitura – Unisseixal, Leia Mulheres Lisboa e Ler à Esquerda – tenho de tentar seguir as escolhas que são feitas pelos grupos. Li onze autores portugueses e onze autores estrangeiros; oito escritores e catorze escritoras.

Reli Maria Judite de Carvalho e Eça de Queirós no Círculo de Leitura da Unisseixal. Participei pela primeira vez numa maratona de leitura integral do “Manual de Pintura e Caligrafia” no dia do 17º aniversário da Fundação José Saramago e, promovido pela FEM com o apoio da livraria Snob, fizemos a maratona de leitura de “Novas Cartas Portuguesas”, para celebrar os 50 anos da absolvição das Três Marias.

Por ordem cronológica da leitura ao longo dos 12 meses do ano, sem escolhas impossíveis de fazer do tipo “os 5 melhores”, aqui vai a minha lista:

  1. “Capitães da Areia”, Jorge Amado, 1937
  2. “Acreditar nas Feras”, Nastassja Martin, 2019
  3. “Paula Rego, A Luz e a Sombra, Uma Forma de Olhar”, Cristina Carvalho, 2023
  4. “Tanta Gente, Mariana”, Maria Judite de Carvalho, 1959
  5. “Vemo-nos em Agosto”, Gabriel Garcia Márquez, 2024 (lançamento)
  6. “Outrora e Outros Tempos”, Olga Tokarczuk, 1992
  7. “A Cidade e as Serras”, Eça de Queirós, 1901
  8. “Memórias de Adriano”, Marguerite Yourcenar, 1951
  9. “Manual de Pintura e Caligrafia”, José Saramago, 1977
  10. “A Desobediente”, Patrícia Reis, 2024
  11. “Os Cus de Judas”, António Lobo Antunes, 1979
  12. “A Boa Sorte”, Rosa Montero, 2020
  13. “O Meu Pai Voava”, Tânia Ganho, 2024
  14. “Fahrenheit 451”, Ray Bradbury, 1953
  15. “As Inseparáveis”, Simone de Beauvoir, 1954
  16. “Retrato de Corpo e Alma”, Luís Alpico, 2023
  17. “O Poço e a Estrada”, Isabel Rio Novo, 2019
  18. “Um Cão no Meio do Caminho”, Isabela Figueiredo, 2022
  19. “Atos Humanos”, Han Kang, 2017
  20. “Timbuktu”, Paul Auster, 1999
  21. “Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa”, Sara Barros Leitão, 2021
  22. “Caderno Proibido”, Alba de Céspedes, 1952.

e…“Novas Cartas Portuguesas”, Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa, 1972

Para o ano há mais.

Que seja um ano de boas leituras.

31 de Dezembro de 2024

 

Monólogo de uma Mulher chamada Maria com a sua Patroa, Sara Barros Leitão

27.12.24, Almerinda

 

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Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa, Sara Barros Leitão, 2021

“Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa” é o texto dramatúrgico que deu origem ao espectáculo homónimo, produzido pela estrutura artística Cassandra. Na badana da edição da Imprensa da Universidade de Coimbra pode ler-se: “Monólogo de uma Mulher Chamada Maria com a sua Patroa” é um título roubado clandestinamente a um texto do livro “Novas Cartas Portuguesas” que dá o mote a uma criação de Sara Barros Leitão estreada em 2021. Partindo da criação, em 1974, do primeiro Sindicato do Serviço Doméstico em Portugal, aqui se conta a história, ainda pouco reconhecida, pouco valorizada, do trabalho das mulheres, do seu poder de organização, reivindicação e mudança. Esta é a história das mulheres que limpam o mundo, das mulheres que cuidam do mundo, das mulheres que produzem, educam e preparam a força do trabalho – a história do trabalho invisível que põe o mundo a mexer.”

O texto é poderoso e muito informativo, tal como a representação em palco feita por Sara Barros Leitão é poderosa e inesquecível. Logo o Prólogo, pela sua extensão, pode ser desconfortável, mas é isso mesmo que se quer. Ficamos a saber que em 1921 aconteceu a primeira greve das empregadas domésticas em Lisboa; que data de 1867 uma lei que separava as empregadas domésticas das pessoas escravizadas, mas que continuavam a ter de ter um livrete com o cadastro limpo para poderem trabalhar. Foi por altura de 1921 que o governador civil de Lisboa Lelo Portela se lembrou de reavivar essa lei vexatória que impunha o livrete às empregadas domésticas e aos empregados de cafés e restaurantes, invocando serem classes profissionais muito dadas a roubos. Estes trabalhadores mobilizam-se e o extraordinário é que o poder recua, mas isentando os homens da obrigação e deixando isoladas as empregadas domésticas que não vergaram e fizeram uma greve histórica que obrigou o governador civil a demitir-se e a fugir para o Brasil. Sem empregadas domésticas seria o fim do mundo para os patrões.

Uma empregada doméstica é alguém para todo o serviço; é a invisibilidade, a submissão, a ausência de direitos, a sobrevivência, a solidão. E a mudança da História com o 25 de Abril trouxe mudança na história das empregadas domésticas? A cena 7 faz um registo exaustivo de cartas e desabafos dirigidos ao Sindicato e é o testemunho das dificuldades sentidas para que o sindicato se constituísse. O texto dramatúrgico joga com as palavras e os conceitos: história/História, O Capital/A Capital, mais-valia/mais valia. As trabalhadoras do serviço doméstico aprendem no processo revolucionário a reivindicação e a lei e batem-se pela lei dos 3 Fs: Folgas, Férias e Feriados. No primeiro 1º de Maio descem com uma faixa a dizer “Sindicato do Serviço Doméstico”, mas só em 1976 o sindicato foi legalizado. “Agora, chegou o tempo de contar a narrativa alternativa de quem não saiu, e a quem fizeram acreditar que ainda não era a sua vez” (pág. 54) O 25 de Abril não foi para todos e ainda menos para todas e as empregadas domésticas apercebem-se que às vezes as máquinas avariam e deixam de trabalhar e descobrem que até as máquinas têm mais liberdade que elas.

O Sindicato do Serviço Doméstico foi fundado em 1974 só por mulheres e legalizado apenas dois anos depois. Era profundamente revolucionário e emancipatório, pois “O objectivo era extinguir a profissão nos moldes actuais” (pág. 59), tendo como perspectiva a elevação intelectual das suas associadas. Ocuparam três prédios e criaram serviços, reconvertendo o conceito existente de serviço doméstico. Os sindicatos ficaram perplexos com a capacidade de organização daquelas mulheres e incapazes de uma resposta à altura, que respeitasse o sentimento e o pensamento destas trabalhadoras. Em 1979, o Sindicato do Serviço Doméstico organiza um 1º Congresso com a participação de mais de 9 000 mulheres. Em 1991 este sindicato é integrado num outro, incluindo jardineiros, vigilantes e porteiros. As empregadas domésticas são abafadas e as prioridades são subvertidas.

A lei de 1867 só é alterada em 1980. É revista em 1992. Tal como estas mulheres é uma lei à margem da lei geral do trabalho. Portugal é um dos países da Europa onde mais se contratam empregadas domésticas. Elas colmatam a ausência de respostas públicas dos cuidados. Hoje muitas das empregadas domésticas são mulheres emigrantes, racializadas, sem papéis, desprotegidas. Muitas não falam português.

Esta peça protagonizada por Sara Barros Leitão visibiliza a longa e heroica história de luta deste sector profissional invisível, mas indispensável. Que começou em 1867, passando pelo 25 de Abril e que chega aos nossos dias. As dificuldades, as traições, a resistência, a capacidade de sobreviver. Abalroadas, esquecidas, porque são mulheres.

Um texto e uma peça que exigem uma grande reflexão sobre a necessidade de valorizar quem cuida do mundo e cujos direitos têm sido sistematicamente esquecidos.

13 de Dezembro de 2024

Timbuktu, Paul Auster

12.12.24, Almerinda

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Timbuktu, Paul Auster, 1999

Depois de “Um Cão no Meio do Caminho” de Isabela Figueiredo e na sequência da reflexão sobre as relações de puro afecto que se estabelecem entre as pessoas e os animais, a sugestão do próximo livro, aceite pelo grupo do Círculo de Leitura da UNISSEIXAL, foi este livro de Paul Auster. Para mim, o primeiro livro que leio deste autor norte-americano falecido este ano.

Mr. Bones é a personagem principal em “Timbuktu”. Mr. Bones, um vira-lata, “uma completa embrulhada de traços genéticos” (pág. 8) que, ao longo da narrativa vai ser “baptizado” com outros nomes. Há sete anos que Mr. Bones é o companheiro fiel de Willy, um vagabundo e poeta que, embora sabendo ser “uma alma perturbada e que chumbara no exame de aptidão a este mundo”, andava “de cabeça erguida” (pág. 12), pois tinha noção do valor dos manuscritos que escrevera ao longo da vida. Afinal, “era apenas mais uma criatura bizarra na cena americana” (pág. 27), tendo Mr. Bones como seu interlocutor e fiel companheiro de jornada. Logo no início do livro, percebemos, tal como Mr. Bones, que Willy está a chegar ao fim da vida.

O que acontece a um cão que fica sozinho no mundo? Como sobreviver, quando reconhece que o dono não lhe preparou o futuro? O narrador põe-nos na cabeça de Mr. Bones que reflecte sobre si, sobre a sua visão do mundo, moldada pela aprendizagem da sua vagabundagem ao longo de sete anos com Willy. Mr. Bones tem sentimentos - ansiedade, medo, terror, bem-estar, saudades – e sonhos premonitórios que o preparam para o que virá a seguir. É também o resultado dos preconceitos e do estilo de vida errante que o seu dono lhe proporcionou. Treme quando vê polícias e foge a sete pés nas proximidades de um restaurante chinês. Fica humilhado quando ao fazer tudo bem para abocanhar um pombo, ele lhe foge no último segundo. Percepciona quem mais precisa dele e lhe confidencia os seus problemas mais íntimos. Questiona-se sobre se será melhor viver na rua e em liberdade a comer os restos que encontra, ou amarrado e confinado a um espaço limitado, mas com comida e água garantidas. Mr. Bones teve a possibilidade de conhecer o mundo da pobreza e o mundo da opulência, a rua e a “América das garagens para dois carros” (pág, 139).

Desde que Willy morreu, sempre que as suas pernas lhe permitiram, Mr. Bones fugiu. Willy falara-lhe num sítio “onde as pessoas iam depois de morrerem. (…) Nas últimas semanas, Willy não tinha falado de outra coisa, e agora não havia na mente do cão a menor dúvida de que o outro mundo era um sítio real e não uma invenção. Chamava-se Timbuktu” (pág. 45). Por muito carinho que algumas pessoas lhe tenham dado depois da morte de Willy, Mr. Bones sente saudades e sempre que sonha com ele acorda com “a sensação de que Willy continuava com ele. Mesmo que o dono não pudesse estar presente, era como se estivesse a observá-lo. (…) Mr. Bones não era propriamente um especialista em análise de sonhos, visões e outros fenómenos mentais, mas estava certo de que Willy morava agora em Timbuktu, e se há pouco estivera com Willy, talvez isso também quisesse dizer que o sonho o levara a Timbuktu.” (pág. 108).

É um livro de uma grande ternura, triste, mas com momentos hilariantes, com descrições hiper-realistas e muito bem traduzido por José Vieira de Lima. E, ao ter um cão no centro da narrativa, tem a grande qualidade de nos questionar sobre a vida dos humanos e dos animais. Uma leitura que recomendo.

11 de Dezembro de 2024