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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Atos Humanos, Han Kang

28.11.24, Almerinda

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Atos Humanos. Han Kang, 2017

Este livro é sobre uma revolta, que começou por ser uma revolta estudantil, mas que juntou trabalhadores, sobretudo operárias, e que se estendeu por 10 dias. Entre 18 e 27 de Maio de 1980, ocorreu em Gwangju um massacre perpetrado pelo exército sul coreano duma ferocidade e desumanidade extremas, a mando do general Chun Doohwan. Gwangju é uma cidade do sul, por sinal a cidade onde Han Kang nasceu a qual teria 9 anos quando o massacre aconteceu. Na altura, a autora lembra-se que os adultos, quando estavam perto dela ou dos primos, costumavam baixar a voz para falar do acontecimento, como se as crianças fossem espiões. Mais tarde, decidiu que era sua obrigação desenterrar um acontecimento que a ditadura tentou abafar e silenciar e que ficou por muitos anos escondido do mundo. A investigação obsessiva que fez ao longo de meses fê-la mergulhar no horror que matou e torturou um número nunca apurado de pessoas, para além das que ficaram com sequelas para a vida. Só em 1997, o massacre teve pela primeira vez a honra de um memorial.

É um livro duríssimo. Escrito de uma forma tão palpável, que por vezes é preciso parar a leitura, ir apanhar ar e respirar fundo. Ouvem-se os gritos, as palavras de ordem, sente-se o cheiro, quase que se sente a dor e depois o silêncio da morte. Constituído por seis capítulos e por um epílogo, os narradores vão surgindo e contando a história que viveram nesse tempo em que imperava a lei marcial e em que as liberdades individuais foram suprimidas. São vários os e as protagonistas, mas a personagem central é, em minha opinião, o rapaz – Dong-ho – o primeiro narrador. Estudante do liceu, Dong-ho acompanhava o amigo que foi baleado, presenciou o massacre, o ataque a pessoas indefesas sem qualquer ligação à revolta e decidiu que o seu lugar devia ser no ginásio a ordenar e lavar os corpos dos mortos, para poderem ser identificados pelas famílias. Apesar dos avisos dos colegas mais velhos e do pedido da mãe para que regressasse a casa, quando se sabia que o exército ia voltar e que ninguém sairia vivo do ginásio, ele ficou e foi martirizado apesar de se ter rendido. “Os miúdos desta fotografia não estão deitados ao lado uns dos outros por os seus corpos terem sido alinhados assim depois de mortos. É porque iam a andar em fila. Iam a andar em linha reta, com os dois braços no ar, exatamente como nós lhes tínhamos dito para fazer” (pág. 145).

E o que resta para quem sobreviveu? “Há memórias que nunca saram. Em vez de se esbaterem com a passagem do tempo, essas recordações tornam-se a única coisa que sobra quando tudo o resto se corrói” (pág. 145). Sentimentos de vergonha, de culpa, alcoolismo, suicídios, doença mental, os sonos cheios de pesadelos, sequelas “iguais às que sofriam as vítimas de envenenamento radioativo” (pág. 217). “Ser a última sobrevivente teria sido a coisa mais assustadora que poderia acontecer-lhe” (pág. 97) são palavras de Eun-sook. Uma das raparigas da equipa que trabalhou no ginásio a lavar os cadáveres e que nos aparece no capítulo intitulado “A Revisora” é também uma das protagonistas que exige armas, para que as mulheres não fiquem atrás das milícias civis constituídas por homens. Apesar do desequilíbrio de forças, o sentimento que reinava era o de resistir até ao fim mesmo sabendo que era a morte o que os/as esperava. Não tinham medo, como afirma Jin-su, o narrador do capítulo “O Prisioneiro”, chefe da milícia e estudante na universidade para ser professor primário “… eu sentia uma coisa qualquer a correr-me nas veias, uma coisa tão avassaladora como qualquer exército. Consciência. Consciência, a coisa mais assustadora que existe no mundo.” (pág. 125).

O último capítulo “A mãe do rapaz” é profundamente pungente e poético. Passaram 30 anos depois do massacre e o relato da mãe de Dong-ho é o relato das mães e dos pais daquelas crianças e daqueles jovens que morreram ou daqueles cujos corpos nunca foram encontrados. Vivem/sobrevivem das memórias. Resistem. Continuam a resistir e a viver com a culpa.   

Este é daqueles livros que dificilmente se esquecem. Aquela tragédia não é caso único ou isolado, infelizmente. Nem é coisa do passado. Vivemos actualmente tempos de guerra e extrema violência. A ausência de humanidade (o que quer que ”humanidade” signifique!), o uso das torturas mais brutais ou sofisticadas para arrancar depoimentos falsos continuam a existir hoje e a brutalidade são-nos servidos diariamente pelos media, numa banalização e normalização confrangedoras. A certa altura Jin-su pergunta-se/-nos: “Serão os seres humanos fundamentalmente cruéis? Será a experiência da crueldade a única coisa que partilhamos enquanto espécie? (…) Aconteceu em Gwangju, tal como aconteceu na ilha de Jeju, em Kwantung e em Nanjing, na Bósnia e em todo o continente americano quando ainda era conhecido por Novo Mundo, com uma brutalidade tão uniforme que parece estar impressa no nosso código genético.” (págs. 145 e 146)

Um livro duro, mas indispensável.

25 de Novembro de 2024

 

Um Cão no Meio do Caminho, Isabela Figueiredo

26.11.24, Almerinda

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“Um Cão no Meio do Caminho”, Isabela Figueiredo, 2022

A escrita de Isabela Figueiredo não me desilude. Depois de “A Gorda” e de “Caderno de Memórias Coloniais”, este, que é o mais recente romance da autora, tem a fluidez e a sinceridade de um romance do quotidiano, das pessoas concretas e nem sempre visibilizadas. Logo a começar o romance, a autora aguça o interesse para a leitura do que virá a seguir: “Quando conheci a minha vizinha do lado a minha vida mudou” (pág. 19) e termina com “ninguém entra na nossa vida por acaso” (pág. 292).

Um romance sobre a solidão, as solidões. Será a solidão uma escolha ou antes fruto de alguma coisa que correu mal? As famílias que se desentenderam? Uma paixão não correspondida? Uma mágoa que não se apagou? José Viriato e Beatriz são dois recolectores: do lixo dos outros, dos “despojos de consumo excessivo” (pág. 45), de cenas, imagens, detalhes captados em fotografias. Cada um com o seu percurso. Ele escolheu viver a sua liberdade, sem conta bancária nem patrões, fazendo o seu próprio horário ao avesso do dos outros; ela enclausurou-se, rodeou-se das suas lembranças, era misteriosa, com a alcunha de “Matadora” para os vizinhos que viam nela uma personagem de filme policial. Se a avó Josefa a viver em Mafra era a única familiar de José Viriato, os cães – Nossa Senhora e Revoltado – livres como ele, eram os seus companheiros e a sua “prioridade” (pág. 87). Beatriz não tinha qualquer familiar e a única amiga que tivera – Nani – há muito falecera.

Estamos no final da segunda década de 2000, antes da pandemia, o contexto que se vive no mundo e na Margem Sul, onde vivem, é-nos recordado: a violência no Brasil de Bolsonaro, a revolta dos coletes amarelos em França, o surgimento de um partido de extrema-direita em Portugal, as incursões racistas da polícia no Bairro da Jamaica. Observador atento aos pormenores, “às miudezas” (pág. 72), sentado no Café Colina, José Viriato atenta no envelhecimento das pessoas e na triste realidade de que “destratar os velhos se tornara costumeiro” (pág. 76) o que lhe traz sentimentos de culpa, ele também pouco atento e nada presente na vida da avó, “alguém na prateleira” (pág. 78), a viver sozinha em Mafra.

As suas histórias que estes dois solitários vão partilhar um com o outro vão-nos sendo desvendadas em flashbacks e igualmente esses episódios das suas vidas vêm agarrados à história, aos tempos a seguir à revolução, as eleições presidenciais, os retornados, os anos 80 e a droga. E se o passado foi decisivo para o que eles são na actualidade, o título do terceiro e último capítulo do romance – “O passado acabou” – é o apaziguamento de duas pessoas que conseguiram ultrapassar a sua solidão, apoiando-se, sem deixarem de ser livres e independentes.

Uma bela história de superação. E de esperança. Nada escrevi aqui sobre Cristo, o primeiro cão de José Viriato e sobre a relação entre eles, tão importante em momentos difíceis no desenrolar da sua adolescência. Fico-me por algumas citações: “Ele não era a minha sombra, mas uma parte de mim” (pág. 153), “Os cães eram a única prisão na qual queria viver” (pág. 239), “O Cristo e o lenço da minha mãe foram a única bagagem que carreguei para casa da minha avó.” (pág. 203).

7 de Novembro de 2024

Almerinda Bento