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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Retrato de Corpo e Alma, Luís Alpico

29.10.24, Almerinda

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“Retrato de Corpo e Alma”, Luís Alpico, 2023

“Retrato de Corpo e Alma” (Momentos da Vida Trasmontana) é um livro constituído por um conjunto de vinte contos escritos por Luís Alpico, tendo a edição sido patrocinada pela Câmara Municipal de Vila Pouca de Aguiar, sendo o autor natural de Tresminas que pertence a esse concelho. De acordo com as palavras do autor, este é um “retrato do ambiente que se respirava no concelho de Vila Pouca de Aguiar nos anos 50, 60 e 70 do século XX.”

O autor usa uma linguagem muito cuidada, empregando um vocabulário rico e diversificado. Os temas são muito diversos e praticamente todos os textos retratam tipos específicos que são nomeados como figuras que desempenharam uma determinada actividade ou função, constituindo memórias que o autor considerou relevantes para trazer para este “Retrato de Corpo e Alma”. Temos pastores, caçadores, mineiros, agricultores, cantoneiros, uma padeira, uma professora e outras profissões, constituindo uma paleta de gente essencialmente pobre ou com bastantes dificuldades económicas. São geralmente personagens com vidas sofridas e muito difíceis de trabalho e privação.

Sendo um livro datado, pois é um retrato de uma época anterior ao 25 de Abril, um dos contos “Empregados ou Patrões”, no entanto, reflecte as mudanças na vida dos mineiros das minas do Campo de Jalles com esta data libertadora, fruto das lutas desses trabalhadores por reivindicações fundamentais, como a luta por horários e ordenados justos, por transportes, banhos e leite. Depois há temas eternos: a solidão, a desertificação, a segregação de quem é frágil ou diferente, os medos que resultam da ignorância, o alcoolismo, entre outros.

Há histórias engraçadas, como aquela em que o nome do rapaz é trocado pelo padrinho no dia em que foi fazer o registo do afilhado e transformou Arnaldo em Raul, ou da viúva que receava que o fantasma do marido a viesse importunar; o drama das crianças que só estudavam até à 4ª classe, porque os pais precisavam delas para trabalhar; ou histórias que mostram a índole torpe de algumas pessoas, nomeadamente como quem tem o poder e a justiça na mão os usa para seu proveito e para subjugar os fracos.

Neste pequeno apanhado não refiro todos os contos do livro de Luís Alpico, mas de entre todos, foi “Em Fecunda Cadeia” aquele que mais apreciei, pois é uma reflexão do autor sobre o poder das memórias e das tradições que permanecem, num mundo que se transforma e que vai perdendo referências.

Agradeço ao professor António Luís este seu trabalho de escrita cuidada e de registo de uma memória que o marcou, assim como a muitos conterrâneos duma geração que vai dando espaço a jovens que não conheceram a realidade aqui descrita.

Outubro 2024

Almerinda Bento

 

 

Fahrenheit 451, Ray Bradbury

14.10.24, Almerinda

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“Fahrenheit 451”, Ray Bradbury, 1953

Vi o filme “Fahrenheit 451” duas ou três vezes. Como será o livro? Tão impressionante como foi o filme quando o vi? Estas algumas das perguntas que formulei mal comecei a leitura. Esta edição, com um prefácio de Jaime Nogueira Pinto, abre com um “AVISO: Se tem a sorte de estar a ler Fahrenheit 451 pela primeira vez e ainda não viu o filme, deixe este prefácio para o fim.” Não era o meu caso! Por isso comecei pelo prefácio, onde JNP escreve sobre a importância das leituras na sua vida, para além da valorização desta obra em particular. Anotei algumas frases significativas, entre elas “Esta destruição dos livros é semelhante a um Apocalipse” (p. 14) ou “Os livros são perigosos e levam a pensar e a julgar criticamente”(p. 15).

O livro, com a tradução de Casimiro da Piedade, começa assim: “Era um prazer pôr fogo às coisas” (p. 23). Fahrenheit 451 passa-se num tempo em que “ninguém tem tempo para os outros” (p. 46), onde é fundamental as pessoas não terem tempo para pensar, em que é proibido conduzir devagar ou mesmo andar a pé pela rua, onde quem faz perguntas é considerado anti-social, onde as pessoas não se apercebem de coisas tão simples como a relva ou o orvalho, onde as crianças são um enfado, em que não há memória e nem existe a ideia de felicidade. Aliás, o mundo está em guerra, mas as pessoas estão de tal forma alheadas, que isso lhes é indiferente. As casas são à prova de fogo, têm as paredes revestidas com grandes ecrãs com personagens consideradas “família” e onde não há livros. Se os há, eles serão queimados. Para isso existem os bombeiros, para queimar livros, que ardem à temperatura de 451 graus Fahrenheit.

Guy Montag, bombeiro há dez anos, é um dia confrontado com uma pergunta que Clarisse, a jovem vizinha, lhe faz: “Alguma vez leu os livros que queimou?” (p. 28). Dias mais tarde, numa acção em casa de uma senhora denunciada por ser possuidora de livros, impressiona-o a senhora não querer deixar os livros e imolar-se com eles.

Clarisse percebera que Montag era recuperável, que não era como os outros. Com efeito, sempre que há tirania, há resistência e um dia o bombeiro que queimava livros irá juntar-se a outros homens que tiveram de fugir para sobreviver. Nesta sociedade distópica em que os sentimentos não existem, os focos de resistência são “acampamentos móveis”, pessoas que guardaram livros nas suas cabeças “aonde ninguém consegue aceder facilmente. Somos todos bocados e pedaços de história, literatura e direito internacional” (p. 194). “Vagabundos por fora, bibliotecas por dentro” (p. 195).

Quais fénix renascidas, num mundo arrasado pela guerra, o papel daqueles homens era poder ajudar alguém com a “carga” que transportavam. E usar o tempo que tinham. “Para tudo há um momento. Sim. Tempo para destruir e tempo para edificar. Sim. Tempo para calar e tempo para falar. Sim, tudo isso. Mas que mais? Que mais? “ (p. 208)

Gosto de livros que nos interrogam, que nos fazem reflectir e este, estando o autor longe de imaginar o peso das redes sociais na formação do pensamento, na difusão de (in)verdades nos dias de hoje, é profundamente actual. Não sei se fará parte da lista do Plano Nacional de Leitura, mas seria bom que fizesse, pois reflecte uma preocupação de Ray Bradbury na época (anos 50 do século passado) sobre “o modo como a televisão estava a destruir “o nosso interesse pela leitura e pela literatura e a transformar as pessoas em imbecis” (It is about people being turned into morons by TV”) (p. 15).

1 de Outubro de 2024

As Inseparáveis, Simone de Beauvoir

13.10.24, Almerinda

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As Inseparáveis, Simone de Beauvoir, 1954

Quando no ano passado li “A Força da Idade” de Simone de Beauvoir, lamentei já mal recordar “Memórias de uma Menina Bem-Comportada” que lera há muitos e muitos anos e que na altura teve um grande impacto no meu desenvolvimento. Aí, logo no início, se referia várias vezes a grande amiga Zaza e a enorme influência que essa amizade tinha tido na sua juventude e ao longo da vida. “As Inseparáveis” é um romance que vai ressuscitar essa amizade profunda entre Élisabeth Lacoin (Zaza) e Simone de Beauvoir. Para isso, em “As Inseparáveis” a autora cria duas personagens: Andrée que é Zaza e Sylvie/Simone, a narradora.

Conheceram-se com nove anos, numa escola de freiras católicas. Se antes de passarem a ser colegas de carteira, Sylvie não tinha amizades com ninguém em particular, “Todas as crianças que conhecia aborreciam-me” (p. 16), Andrée vai ser para ela uma revelação. Rebelde, confiante, frontal, independente (vai sozinha da escola para casa), habilidosa e muito inteligente, Sylvie vai nutrir pela colega uma amizade profunda, a tal ponto que, quando as férias as separam, confessa que “viver sem ela não era viver” (p. 22). Mas incapaz de revelar essa paixão, só para si própria confessava que “nos livros, as pessoas fazem declarações de amor, de ódio, têm coragem de dizer o que lhes vai na alma; porque é que isso não é possível na vida real?” (p. 29) e só bastante mais tarde lhe revelou que o que a ligava à amiga era muito mais do que estima.

No entanto, a narradora, ao aprofundar a sua convivência com a colega e com a família, vai descobrir insuspeitos aspectos da vida de Andrée, que sempre lhe parecera uma rapariga insubmissa e diferente do comum das jovens que conhecia. Filha de uma família numerosa, profundamente religiosa, tradicional, classista, conservadora, o destino que lhe estava previamente traçado, era o de não ter direito à escolha, de se moldar ao que a sociedade queria dela enquanto mulher, de reprimir desejos, de pôr a família em primeiro lugar e de seguir um destino igual ao da sua mãe, também ela castrada por uma mãe autoritária. A narradora descobre que a casa e a família de Andrée não passam de uma prisão; que os casamentos são arranjados, pois “um casamento por amor é considerado suspeito” (p. 84); que a alternativa ao casamento é o convento e que, afinal, a amiga é profundamente infeliz “Não tenho um minuto livre” (p. 79).

Em “As Inseparáveis” Andrée é a personagem central, sendo o papel da narradora o de desvendar a personalidade da amiga e em consequência, traçar o retrato de uma época, incidindo a atenção sobre a vida das mulheres e das raparigas de uma determinada classe social. Simone de Beauvoir tinha 46 anos quando escreveu este romance e o seu pensamento sobre a condição feminina estava amadurecido e já publicara “O Segundo Sexo” e “Os Mandarins”. Sendo “As Inseparáveis” um romance e não um ensaio filosófico, ele denuncia, contudo e de forma clara, a visão de um sector conservador e poderoso da sociedade francesa, o peso da ideologia da Igreja na construção do conceito de pecado ligado à sexualidade e aos sentimentos; os preconceitos de classe e de raça que discriminam pessoas e as tornam personae non gratae, ou, por exemplo, os medos daquele sector privilegiado da sociedade, de que o sufrágio feminino viesse beneficiar os inimigos da Igreja.

Na contracapa desta bela edição da Quetzal, com tradução de Sandra Silva, pode ler-se na sinopse, que o livro contém “um posfácio da filha adoptiva de Simone de Beauvoir – Sylvie Le Bon de Beauvoir – em que é feito um relato factual e cronológico desta amizade, da vida e do contexto familiar de Zaza, e um conjunto de cartas e de fotografias, As Inseparáveis é um livro de grande valor literário e documental e uma peça importante no conhecimento da vida e obra de Simone de Beauvoir”.

9 de Outubro de 2024

Almerinda Bento

 

O Fernando e os livros

06.10.24, Almerinda

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Estava à espera do autocarro para o comboio quando vi o Fernando a sair do autocarro do outro lado da rua. Acenei-lhe e  ele atravessou a rua para vir falar-me. Há alguns meses que não nos víamos. 

Cumprimentamo-nos e ele mostra-me o que traz na mão.  - Almerinda, venho da feira da bagageira do Barreiro. Veja o que comprei: Jorge Amado, não podia perder. Olhe como está em bom estado e paguei 1euro por ele. Veja bem, um euro!

Todos os fins de semana, o Fernando corre as feiras da bagageira à procura de pechinchas livrescas. Conhecia-o há anos, mas só de vista. Conheci-o melhor nas minhas aulas de Inglês no passado ano e como assíduo participante no Círculo de Leitura da Unisseixal.  Aí percebi que era um leitor compulsivo, apaixonado por Saramago e outros grandes nomes da literatura universal.

Depois disse-me que tinha cinco livros na mesinha de cabeceira à procura da sua vez. E entre eles Os Cus de Judas. Passámos a falar do livro, de António Lobo Antunes, do horror da guerra e das marcas da guerra nos homens que fizeram a guerra nas colónias. E ele disse-me que também ele tinha estado em Angola, no cu de Judas, como Lobo Antunes.

Depois lembrei-me daquela vez em que nos confiou, numa sessão do nosso círculo de leitores, que na tropa, enquanto todos jogavam, ele lia e encontrava na leitura o espaço de evasão duma guerra injusta e sem sentido. 

Pois é.  A literatura salva mesmo. 

5 de Setembro de 2024