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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

O Meu Pai Voava, Tânia Ganho

22.09.24, Almerinda

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“O Meu Pai Voava”, Tânia Ganho, 2024

Um livro incrível que me lembrou “Morreste-me” de José Luís Peixoto, que eu li depois da morte do meu pai. “O Meu Pai Voava” despertou em mim memórias de um momento particularmente difícil da minha vida quando confrontada com o fim, com a perda definitiva de alguém que se ama. O fim de um tempo.

O meu pai não voava, mas tinha um desgosto que era o de não ter podido voar; queria ser piloto. Nascido numa aldeia, contava-nos divertido que um dia, em criança, estava na sala de aula e ouviu um som lá fora e saiu disparado a correr para ver o que era aquilo que voava no céu! O fascínio pelos aviões levaram-no mais tarde à paixão pelo aeromodelismo, tendo sido campeão nacional e ibérico em diversas modalidades, tendo feito equipa com Júlio Isidro e outros grandes aeromodelistas. Torneiro mecânico, minucioso, perfeccionista, teve a fotografia como outro dos seus hobbies, fazendo da casa de banho o seu estúdio de revelação! A ida à Expo 98, todas as manhãs, aproveitando o passe que lhe oferecemos e que ele visitou de lés-a-lés, foi talvez um dos últimos grandes prazeres da sua vida. Para nós, a degenerescência ao longo de nove anos pela doença de Parkinson foi algo de muito doloroso, para a qual ninguém está preparado. “Deixou de sorrir com os olhos.” (pág. 30) assim sintetiza a autora/filha a imagem do pai numa fase avançada da doença.

Trago estas recordações aqui, porque elas irromperam à medida que ia lendo o maravilhoso livro de Tânia Ganho que, como ela refere logo no início, o escreveu para o pai e para a mãe, assim fazendo o luto. É uma homenagem ao pai e acaba também por ser uma homenagem à mãe, a pessoa que esteve sempre presente para suprir os despistanços de alguém sempre tão fora do mundo.

O facto de a autora ser tradutora não é alheio ao rigor no uso das palavras, tendo em conta o seu peso, o seu significado. De facto, como a mudança da preposição “entre nós ” em vez de “em nós” (pág. 9) faz toda a diferença; “mergulhar” em vez de “afundar-me no silêncio”(pág. 9)  ou “barras de protecção” em vez de “grades” (pág. 21). Em dado passo, a autora remete essa sua característica de rigor com a linguagem para a influência que o lado científico do pai exerceu sobre ela.

São capítulos curtos, que nos permitem conhecer a vida da família, as rotinas, as conversas à mesa, os assuntos que não eram tabu, a relação dela com o pai enquanto menina, jovem adolescente e quando o pai já estava doente no lar. Os remorsos, o sentimento de culpa, a dificuldade de gerir a incomunicabilidade gerada pela doença. É também um retrato de grande amor e proximidade com o filho que a acompanha ao longo do livro em momentos marcantes.

Um livro muito corajoso e muito belo. Até o formato se ajusta a um livro tão particular, a que não faltam fotografias de “um pai que voava". Uma homenagem ao pai.

“Havia todo um mundo que se encerrava naquele dia e eu precisava do meu pai para enfrentar o resto da vida. Era como se, deixando de ser a menina do papá, fosse obrigada a crescer, a ser adulta, e eu não queria ser adulta. Já o era há muitos anos, e já o perdera há muito tempo, mas a finitude do caixão, do corpo frio, de mãos entrelaçadas no peito, fez-me sentir que uma parte de mim morrera. A menina.” (pág. 69)

19 de Setembro de 2024

A Boa Sorte, Rosa Montero

20.09.24, Almerinda

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“A Boa Sorte”, Rosa Montero, 2020

Depois de “Os Cus de Judas” de António Lobo Antunes, acho que não podia ter feito melhor escolha. Para além de gostar da escrita de Rosa Montero, do que ela escreve e de como o faz, “A Boa Sorte” tem todos os ingredientes para ajudar a sair do tom depressivo de Lobo Antunes. “A Boa Sorte” é um livro positivo, optimista e é, além disso, cheio de suspense e com um encadeamento que daria um excelente filme.

Por coincidência, Rosa Montero usa inúmeras vezes a expressão “cu de Judas”, para falar de Pozonegro, o lugar escolhido pela personagem principal – Pablo Hernando – para se afastar do seu presente e, sobretudo, para tentar fugir ao seu passado. Pablo, de 54 anos, é um arquitecto famoso, que vive para a profissão, rico, meticuloso, “um animal de hábitos” (pág. 26), viúvo há sete anos e que um dia, no auge da sua carreira profissional, compra uma casa num lugar improvável, desliga o telemóvel e o computador e fica incontactável para o mundo. Mas a verdade é que não é possível fugir do passado, porque o passado é como um fantasma que está sempre presente. No microcosmo que é Pozonegro e o prédio onde Pablo mora, está lá o mundo todo: a bondade e a maldade, a velhice e a vontade de viver, a alegria e a frustração, a violência e a solidão, a inveja e a solidariedade, a cobardia e a coragem.

As personagens criadas pela autora, que nos surgem como narradoras a falar na primeira pessoa, ou pela voz de um narrador que as retrata, não são lineares, antes têm os sentimentos e as contradições que fazem delas personagens muito reais e muito concretas, moldadas pela vida. Há neste livro várias histórias de abandono, até mesmo a da “Cadela” encontrada junto ao corpo da mãe morta. A violência não surge como um acto banal, mas como um fenómeno com raízes fundas numa sociedade violenta e egoísta, mas a perspectiva do livro é a da crença na mudança e na bondade humana. E Raluca, a jovem romena vizinha e colega de trabalho no hipermercado “o alegre paraíso do consumo” (pág. 28) é esse ímã de bondade, de solidariedade, de ingenuidade, é essa pessoa que se considera afortunada e a quem “a boa sorte” sempre tem acompanhado.

Para além do retrato minucioso das personagens, dos diálogos verosímeis, das situações inesperadas, Rosa Montero põe-nos a reflectir sobre a violência que está mesmo no andar de cima e que fingimos não ouvir nem ver, sobre a vida que nos afasta de quem mais amamos, sobre a falta de comunicação entre as pessoas, sobre a solidão na velhice, sobre os medos de podermos fracassar de novo, sobre os monstros sociais que se agigantam nos nossos dias em sociedades falsamente saudáveis. É, por isso, um romance que não se limita a contar (bem) uma história, mas que nos obriga a pensar, mesmo que a leitura em determinados momentos seja vertiginosa.

Como se pode ler na sinopse: “A Boa Sorte” espelha, sobretudo, um profundo amor à vida. No fim de contas, depois de cada perda, pode haver um recomeço. Porque a sorte só é boa se assim o decidirmos.”

16 de Setembro de 2024

Os Cus de Judas, António Lobo Antunes

18.09.24, Almerinda

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“Os Cus de Judas”, António Lobo Antunes, 1979

Há precisamente um ano, andava eu a ler “Memória de Elefante” jurei a mim própria que tinha de ultrapassar a ideia feita/preconceito de que é muito difícil ler António Lobo Antunes, embora sobre as suas crónicas o consenso seja altamente favorável. A verdade é que fui acumulando livros deste autor que me iam sendo oferecidos, e como tinha de começar por uma ponta, decidi-me entrar na obra de A. Lobo Antunes, por ordem cronológica. Depois de “A Memória de Elefante”, passei a “Os Cus de Judas”, o segundo livro do autor.

Este livro que ele dedica ao amigo Daniel Sampaio, começa com a profunda ironia de um narrador que nos fala da sua infância muito ligada aos animais do Jardim Zoológico, dado viver perto do Jardim e portanto não ser alheio aos sons dos animais e às suas características. Mas, de todo aquele mundo de animais, a sua maior e mais agradável memória prende-se com o rinque de patinagem e a elegância do professor preto “rodeado de meninas de saias curtas e botas brancas”(pág. 9). Em contraponto a estas memórias ruidosas, luminosas e felizes, a casa das tias na Barata Salgueiro cheirava a mofo e a velho e os reparos que lhe faziam sobre a sua magreza, apenas viam a tropa como salvação para vir a tornar-se um homem. Até que chegou esse dia em que “a tribo” se foi despedir dele no dia em que embarcou para Angola.

O resto do livro, ao longo de 23 capítulos de A a Z, é a memória da guerra, desde a chegada a Luanda, de onde seguiam para “os cus de Judas” os lugares para onde eram mandados para morrer, “em nome de ideais veementes e imbecis, em dois anos de angústia, de insegurança e de morte” (pág. 26). Esse longo relato de memórias, de flashes da sua experiência nesses “cus de Judas” é feito pelo narrador a uma mulher com quem está num bar ao fim da tarde e prolonga-se até ao amanhecer do dia seguinte no apartamento do narrador. Ácido, irónico, contundente, sarcástico, traz consigo a realidade da repressão, da PIDE, do salazarismo, da violência fascista, da Mocidade Portuguesa, das senhoras do Movimento Nacional Feminino, da União Nacional. O medo da morte, a solidão, o desamparo, a angústia são os sentimentos possíveis naquele absurdo para onde foram lançados um milhão e quinhentos mil homens que passaram por África. Os homens que deixaram as mulheres grávidas, que só souberam da notícia do nascimento das filhas e filhos por aerograma, que regressaram tristes e carregados de silêncios.

“Trazemos o sangue limpo, Isabel: as análises não acusam os negros a abrirem a cova para o tiro da PIDE, nem o homem enforcado pelo inspector na Chiquita, nem a perna do Fernando no balde dos pensos, nem os ossos do tipo de Mangando no telhado de zinco. Trazemos o sangue tão limpo como o dos generais nos gabinetes com ar condicionado de Luanda, deslocando pontos coloridos no mapa de Angola, tão limpo como o dos cavalheiros que enriqueciam traficando helicópteros e armas em Lisboa, a guerra é nos cus de Judas, entende, e não nesta cidade colonial que desesperadamente odeio, a guerra são pontos coloridos no mapa de Angola e as populações humilhadas, transidas de fome no arame, os cubos de gelo pelo rabo acima, a inaudita profundidade dos calendários imóveis” (pág. 188).

O regresso a Lisboa, à cidade feliz da sua infância, das lembranças dos animais do Jardim Zoológico e do professor negro que ensinava as meninas a patinar, é o regresso a uma cidade que o acolhe com indiferença, tal como as tias que ao vê-lo “envergando um fato de antes da guerra que me boiava na cintura” (pág. 195), apenas conseguem mostrar o seu desagrado:

 “ – Estás mais magro. Sempre esperei que a tropa te tornasse um homem, mas contigo não há nada a fazer.” (pág. 196)

Impossível ficar indiferente ao que foi a guerra colonial, contada com a crueza de quem a viveu e que decidiu trazê-la a público, através de uma escrita dura e elaborada. Impossível ficar indiferente.

9 de Setembro de 2024