O Meu Pai Voava, Tânia Ganho
“O Meu Pai Voava”, Tânia Ganho, 2024
Um livro incrível que me lembrou “Morreste-me” de José Luís Peixoto, que eu li depois da morte do meu pai. “O Meu Pai Voava” despertou em mim memórias de um momento particularmente difícil da minha vida quando confrontada com o fim, com a perda definitiva de alguém que se ama. O fim de um tempo.
O meu pai não voava, mas tinha um desgosto que era o de não ter podido voar; queria ser piloto. Nascido numa aldeia, contava-nos divertido que um dia, em criança, estava na sala de aula e ouviu um som lá fora e saiu disparado a correr para ver o que era aquilo que voava no céu! O fascínio pelos aviões levaram-no mais tarde à paixão pelo aeromodelismo, tendo sido campeão nacional e ibérico em diversas modalidades, tendo feito equipa com Júlio Isidro e outros grandes aeromodelistas. Torneiro mecânico, minucioso, perfeccionista, teve a fotografia como outro dos seus hobbies, fazendo da casa de banho o seu estúdio de revelação! A ida à Expo 98, todas as manhãs, aproveitando o passe que lhe oferecemos e que ele visitou de lés-a-lés, foi talvez um dos últimos grandes prazeres da sua vida. Para nós, a degenerescência ao longo de nove anos pela doença de Parkinson foi algo de muito doloroso, para a qual ninguém está preparado. “Deixou de sorrir com os olhos.” (pág. 30) assim sintetiza a autora/filha a imagem do pai numa fase avançada da doença.
Trago estas recordações aqui, porque elas irromperam à medida que ia lendo o maravilhoso livro de Tânia Ganho que, como ela refere logo no início, o escreveu para o pai e para a mãe, assim fazendo o luto. É uma homenagem ao pai e acaba também por ser uma homenagem à mãe, a pessoa que esteve sempre presente para suprir os despistanços de alguém sempre tão fora do mundo.
O facto de a autora ser tradutora não é alheio ao rigor no uso das palavras, tendo em conta o seu peso, o seu significado. De facto, como a mudança da preposição “entre nós ” em vez de “em nós” (pág. 9) faz toda a diferença; “mergulhar” em vez de “afundar-me no silêncio”(pág. 9) ou “barras de protecção” em vez de “grades” (pág. 21). Em dado passo, a autora remete essa sua característica de rigor com a linguagem para a influência que o lado científico do pai exerceu sobre ela.
São capítulos curtos, que nos permitem conhecer a vida da família, as rotinas, as conversas à mesa, os assuntos que não eram tabu, a relação dela com o pai enquanto menina, jovem adolescente e quando o pai já estava doente no lar. Os remorsos, o sentimento de culpa, a dificuldade de gerir a incomunicabilidade gerada pela doença. É também um retrato de grande amor e proximidade com o filho que a acompanha ao longo do livro em momentos marcantes.
Um livro muito corajoso e muito belo. Até o formato se ajusta a um livro tão particular, a que não faltam fotografias de “um pai que voava". Uma homenagem ao pai.
“Havia todo um mundo que se encerrava naquele dia e eu precisava do meu pai para enfrentar o resto da vida. Era como se, deixando de ser a menina do papá, fosse obrigada a crescer, a ser adulta, e eu não queria ser adulta. Já o era há muitos anos, e já o perdera há muito tempo, mas a finitude do caixão, do corpo frio, de mãos entrelaçadas no peito, fez-me sentir que uma parte de mim morrera. A menina.” (pág. 69)
19 de Setembro de 2024