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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Desobediente, Biografia de Maria Teresa Horta, 2024

25.08.24, Almerinda

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“A Desobediente – Biografia de Maria Teresa Horta”, Patrícia Reis, 2024

Antes de tudo, Patrícia Reis adverte o/a leitor/a que “esta não é uma biografia imparcial” (p. 17) nem é “uma radiografia” (p. 17) e que lhe “foi muito difícil terminar esta biografia” (p. 13). Ligam biografada e biógrafa o facto de serem amigas, jornalistas e a tristeza e a solidão de Maria Teresa Horta, desde a morte do marido, não ter deixado de, até certo ponto, contaminar a feitura deste livro.

Cada uma das cinco partes de que é feito “A Desobediente” tem, a encimar os diferentes capítulos que as constituem, os nomes de cinco das muitas obras de Maria Teresa Horta: “Espelho Inicial”, “Estranhezas”, “Anunciações”, “Jardim de Inverno” e “Poesis”.

A primeira parte – “Espelho Inicial” – que se ocupa da infância, da adolescência, da sua paixão por Luís de Barros e das escolhas de Maria Teresa Horta até ao nascimento do seu único filho, é o período estruturante de todo o resto da sua vida. Fala da mãe, da avó Camila sua grande aliada, do pai, do sentimento de desamor, de solidão e abandono, a percepção dos preconceitos em relação às mulheres e a intrepidez que desde sempre assume na escrita. A sua personalidade nos meios onde se move tem a marca da luta pela liberdade que então não existia em Portugal. Apaixonada pela escrita, pela poesia e também pelo cinema, para além de sócia de um cineclube, faz parte da direcção do cineclube ABC o que era inédito na altura. A censura, as intervenções da PIDE e o ódio visceral de Moreira Baptista secretário da Informação por Maria Teresa Horta são episódios num país que nega direitos básicos, que vicia as eleições e que manda assassinar Humberto Delgado, para além de torturar todos os que se opunham ao regime. No entanto, é também nesta altura que ela começa a entrar em contacto com escritores e a receber apoios e incentivos dos seus pares.

“Minha Senhora de Mim” foi uma pedra no charco na literatura feita até então por mulheres e de tal forma incomodou o poder, que a violenta agressão feita a Maria Teresa Horta por um grupo de legionários, iria motivar a criação de “Novas Cartas Portuguesas”. Jornalistas e também amigas de Maria Teresa Horta, Maria Velho da Costa e Maria Isabel Barreno decidem ao longo de nove meses escrever uma obra ímpar que vai abalar concepções sobre as mulheres, sobre a política e até sobre a própria criação literária. Uma sociedade podre e cheia de contradições não podia ficar indiferente àquela obra que é apreendida ao fim de três dias de ter sido publicada. Natália Correia, Maria Lamas, José Gomes Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues e tantos outros, para além de todos os apoios internacionais com destaque para Simone de Beauvoir e Marguerite Duras vão ser alguns dos nomes que acompanharam a onda de extraordinária solidariedade para com as três escritoras e que ficou conhecido como o processo das Três Marias que terminou com a sua absolvição no dia 7 de Maio de 1974.

A revolução aconteceu, mas as contradições criadas com as reivindicações das mulheres e com as reivindicações feministas não deixaram de existir por uma revolução democrática ter acontecido. Havia no Portugal acabado de chegar à democracia muita incompreensão e insensibilidade sobre as reivindicações específicas das mulheres, nomeadamente a questão do aborto, um tabú, a par de tudo o que tivesse a ver com os corpos das mulheres. Tema tão caro a Maria Teresa Horta, mulher assumidamente feminista, e que está no coração da sua poesia, desde sempre. Aliás, e como a biografia sobre Maria Teresa Horta abundantemente refere, nem o 25 de Abril trouxe maior visibilidade à obra da poetisa, nem lhe granjeou grande popularidade. Ser feminista não traz popularidade nem simpatia, mesmo no seio da esquerda. E então quanto à direita, nem se fala.  

Se a obra de Maria Teresa Horta está largamente divulgada, traduzida e estudada em todo o mundo, nomeadamente “Novas Cartas Portuguesas”, com destaque no Brasil, os prémios e o reconhecimento em Portugal vieram, embora tardiamente. A quarta parte da biografia dá destaque a algumas das suas obras e ao romance “As Luzes de Leonor – A Marquesa de Alorna, uma sedutora de anjos, poetas e heróis”, a que dedicou treze anos de intenso trabalho, uma verdadeira “devoção”, em que “Leonor e Teresa se confundem”. (pág. 357) Insubmissa, desobediente, coerente, Maria Teresa Horta recusa receber o prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus das mãos do então primeiro-ministro Passos Coelho (2011).

A última parte da biografia começa com a morte inesperada de Luís de Barros, poucos meses antes da pandemia. A perda e a solidão são imensas, depois de uma vida de paixão intensa pelo marido ao longo de 56 anos. Maria Teresa Horta sabe que a salvação está na poesia e decide dedicar mais um livro ao marido, desta vez com o título “Paixão”. Embora mais limitada ao espaço da casa, continua sempre a escrever e sempre atenta ao mundo e à política. Mesmo a terminar a biografia, transcrevo este período que é significativo sobre esta mulher extraordinária: “O modo como está o mundo também te diz muito sobre o modo como está a vida das mulheres. Imagine-se as mulheres da Ucrânia, as atrocidades que sofrem, os devaneios pelos quais têm passado. As notícias são importantes por isso, para conseguirmos medir a pulsação das coisas”. (pág. 404)

É sempre com muito respeito e humildade que escrevo sobre livros que li e que me merecem consideração para fazer uma apreciação, como registo que gosto de partilhar. Este livro, entre outros, é um deles. Antes do mais pela consideração que me merece uma mulher feminista que toda a vida assumiu a liberdade e que nunca virou costas às dificuldades e às suas convicções mais profundas, numa postura de coragem e de coerência num mundo tão adverso à frontalidade e ao feminismo. E claro, também pela coragem da autora e pelo trabalho de grande fôlego e valor que é o de biografar uma mulher com uma vida tão rica e tão inspiradora. Parabéns. Muito obrigada às duas.

 

22 de Agosto de 2024

 

 

 

 

Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, 1951

05.08.24, Almerinda

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Memórias de Adriano, Marguerite Yourcenar, 1951

Este era um livro que há muitos anos aguardava a sua vez de ser lido e nomeado como “livro da vida” por vários amigos. De Yourcenar apenas tinha lido “A Obra ao Negro” e uma interessante biografia da vida e obra desta autora, editada pela ASA. Mas a verdade é que ia adiando a leitura até que chegou a sua vez. Costuma-se dizer que há livros que devem ser lidos na altura certa e eu achei que estava na altura de o fazer, mas confesso que há muito que não demorava tanto tempo a terminar um livro. Julho passou e só em Agosto consegui terminá-lo. É verdade que as condições psicológicas e físicas, quando não são as melhores, nos retiram o interesse por aquilo que adoramos fazer.

Depois deste intróito, que não é nenhuma confissão, só a partir de certa altura comecei a engrenar com o livro e tenho de reconhecer que é uma obra de grande envergadura. Pensar que Marguerite Yourcenar teve um processo de trinta anos de gestação desta obra, que escreveu, deitou fora, abandonou e, por fim, num trabalho frenético a concluiu entre 1947 e 1950, tendo finalmente sido publicada em 1951, é algo de extraordinário. No final, Marguerite Yourcenar brinda-nos com um conjunto de Apontamentos sobre As Memórias de Adriano, que nos ajudam a perceber e a valorizar esta, que terá sido uma das mais significativas das suas muitas obras literárias. Constituído por seis capítulos com títulos em latim, não posso deixar de referir o facto de esta obra ter sido traduzida para a língua portuguesa por Maria Lamas.

O livro é uma longa carta na primeira pessoa do imperador Adriano dirigida a Marco Aurélio, na sequência da sua visita ao médico Hermógenes, para ser observado. Adriano tem 60 anos e como escreve “ começo a avistar o perfil da minha morte”. Enumera algumas das actividades que já não consegue cumprir, sofre de insónias e dores de cabeça e com esta carta propõe-se-lhe “contar a minha vida. (…) Não espero que os teus dezassete anos compreendam alguma coisa disso. Procuro no entanto instruir-te e também chocar-te.” (pág. 23). Começa por falar da sua infância, do avô, do pai, das suas origens, d’”as minhas primeiras pátrias foram os livros” (p. 34), da sua paixão pela língua e cultura gregas, o que lhe causou alguma desconfiança de entre os membros do Senado. A corte que rodeava Trajano, doente e sem sucessor, estava cheia de inimigos, de traidores e o ambiente que se vivia era de intriga e violência. O próprio Trajano que confiara a Adriano a tarefa de compor os seus discursos, não tinha uma atitude de total confiança naquele a quem dera o anel de sucessão no poder.

Quando Adriano sobe ao poder, o seu desejo era ser justo, clemente, escrupuloso e, sobretudo, estabelecer a paz nos territórios conquistados por Trajano. “Humanitas, Felicitas, Libertas” são as palavras que manda cunhar nas moedas do seu reinado. “ O fim que eu me propunha era uma prudente abolição de leis supérfluas, um pequeno grupo de sábias decisões firmemente promulgadas. Parecia ter chegado o momento de, no interesse da humanidade, revalorizar todas as prescrições antigas” (p. 99). Considerei extraordinária esta medida que é de uma actualidade incrível: “Insisti para que nenhuma rapariga casasse sem o seu próprio consentimento: essa violação legal é tão repugnante como qualquer outra” (p. 102). O sentimento de não pertença a qualquer sítio, mas também de não se sentir isolado onde quer que estivesse, leva-o a sentir-se como um deus, o que “obriga, em suma, a mais virtudes que ser imperador.” (p. 125). “Aos 44 anos, sentia-me sem impaciência, seguro de mim, tão perfeito quanto a minha natureza mo permitia, eterno.” (p. 124).

Casado com Sabina, por quem nunca nutriu qualquer tipo de interesse, o capítulo com o título Saeculum Aureum fala-nos da sua relação devotada com o jovem grego Antínoo, a quem chama de “o meu jovem favorito” e frequentemente “criança” que termina abruptamente com o suicídio de Antínoo, no Egipto. O desgosto daí resultante é devastador e Adriano regressa à sua amada Grécia por pouco tempo, tendo tido contacto com um bispo dos cristãos, reflectindo na sua carta sobre as virtudes e defeitos da seita fundada por Jesus.

A morte do jovem amado Antínoo leva Adriano a desinteressar-se pela vida, mas a guerra com a Judeia vem ao arrepio da sua vontade de paz e reconhece que esta guerra que ele não desejou foi um dos seus fracassos. É também nessa altura que o corpo cansado começa a mostrar as suas fragilidades, acrescido do desespero pelas noites de insónia. No regresso a Roma, deseja encontrar o seu sucessor e preparar a sua morte. Tal como acontecera com Trajano, Adriano não tinha filhos, tendo adoptado Lúcio que morre entretanto e Marco Aurélio para lhe suceder.

O último capítulo – Patientia – é o retrato dos últimos anos de Adriano, um imperador notável que morre aos 62 anos. Um homem poderoso que viveu a doença, a decadência, o desespero e o desejo de pôr termo à vida através do suicídio, mas que finalmente tomou conscientemente a decisão de renunciar a precipitar a sua própria morte.

Marguerite Yourcenar, não sendo uma historiadora, mas sim uma escritora, teve no entanto que ter feito um prodigioso trabalho de investigação histórica para fazer um livro desta envergadura. Recebeu o Prix Femina Vacaresco em 1952 e foi a primeira mulher a ser eleita para a Academia Francesa em 1980, com 77 anos.

3 de Agosto de 2024

Almerinda Bento