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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Tanta Gente, Mariana - Maria Judite de Carvalho

31.03.24, Almerinda

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“Tanta Gente, Mariana”, Maria Judite de Carvalho, 1959

 Maria Judite de Carvalho é, em minha opinião, uma das grandes escritoras do século XX. Já li vários romances e contos dela e voltei à leitura de “Tanta Gente, Mariana”, depois de este título ter sido escolhido pelo Círculo de Leitura da UNISSEIXAL. Esta obra é a mais conhecida da autora e considerada a mais autobiográfica, na medida em que se aproxima muito da vida da autora que ficou órfã aos 7 anos e foi educada por umas tias.

O título “Tanta Gente, Mariana”, retirado de uma conversa de Mariana com o pai, quando ela era uma jovem de quinze anos, sintetiza bem a solidão da personagem, marca de uma vida, mesmo quando estava rodeada de pessoas e de amigos. “Sou uma velha de 36 anos” (pág. 38), assim se vê Mariana agora que é uma mulher só, sem família, com dificuldades económicas que a roupa coçada evidencia e a enfrentar a certeza de uma morte para breve. No entanto e, apesar do infortúnio, ela consegue agarrar, embora fugazmente, a ideia de esperança, coisa em que nunca antes pensara. “Um mundo é de repente um amontoado de coisas estranhas que vejo pela primeira vez e que existem com uma força inesperada.” (pág. 14) Passa em revista os seus relacionamentos, as suas poucas amizades, os sonhos que não se concretizam, a hipocrisia social que se revela mesmo com “Lúcia, minha amiga de sempre e para sempre”, expressão carregada de ironia, que repete sempre que fala de Lúcia. De forma muito subtil, Maria Judite de Carvalho faz a crítica ao ideal de mulher do Estado Novo no qual Mariana não se encaixa e que leva a que seja despedida do emprego e não convidada para o casamento da “amiga de sempre e para sempre”. Afinal uma mulher divorciada e grávida, de que não se sabe quem é o pai da criança é um estatuto que o puritanismo hipócrita do salazarismo não consegue admitir!

As dezenas de personagens criadas por Maria Judite de Carvalho são maioritariamente femininas. Observadora do quotidiano, trouxe para a sua obra histórias tristes de desamor e de solidão e através da escrita e duma fina ironia conferiu ao privado um carácter político. Baptista-Bastos referiu Maria Judite de Carvalho, no prefácio a um dos seus livros, como “uma ternura magoada” e Agustina Bessa-Luís chamou-lhe “flor discreta”.

“Uma ternura magoada” e uma “flor discreta” merecedora de muito maior divulgação.

 

 

15 de Março de 2024

Almerinda Bento

Paula Rego - a Luz e a Sombra Uma Forma de Olhar , Cristina Carvalho

28.03.24, Almerinda

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“Paula Rego – A Luz e a Sombra Uma Forma de Olhar”, Cristina Carvalho, 2023

Quando lemos os romances biográficos de Cristina Carvalho, sempre sentimos a estreita ligação afectiva entre a narradora e o biografado ou a biografada e às vezes perguntamo-nos se o que estamos a ler se refere à narradora ou à pessoa que é objecto do romance biográfico. É essa profunda ligação e a liberdade que é dada ao leitor, um dos grandes fascínios da escrita de Cristina Carvalho. Ao longo da leitura deste maravilhoso romance, tantas vezes me acorreu se a narradora era Paula Rego ou Cristina Carvalho, porque sinto que as duas personalidades têm muito em comum. Mas isto sou eu, enquanto leitora e enquanto leitora deste “Paula Rego”. Trago aqui o epílogo, em que Cristina Carvalho faz uma reflexão sobre a memória e avisa: “Este curto livro não pretende revelar a intimidade da artista, nem isso seria possível. Também não pretende analisar a estrutura, o ideal ou a imaginação que esteve presente em toda a sua obra, tudo o que se conhece e tudo o que se não conhece. É, precisamente, o deixar à vontade a imaginação de quem observa, tendo por base algumas circunstâncias vivenciais, relacionais, em suma, existenciais.” (pág. 153)

Quero, antes do mais, dizer como gosto da pintura de Paula Rego e como passei a gostar ainda mais depois da grande série que fez sobre o aborto, apoiando com a sua Arte a luta que se travava cá em Portugal pela dignidade e pela liberdade de escolha. As mulheres – “seres mártires ao longo de tantos séculos” (pág. 30) – as suas vidas de sofrimento e a incompreensão a que têm sido votadas estão sempre presentes nas telas de Paula Rego. “São fortes, musculadas, as mulheres que eu pinto. (…) Às vezes eu própria me assusto! São tão feios, tão brutais, tão violentos, esses corpos, que fico a pensar no que acabei de conceber. (…) Mas chego sempre à mesma conclusão: preciso, tenho obrigação de mostrar a toda a gente um sofrimento mais do que silencioso, este sofrimento das mulheres da minha época, de todas as épocas.” (pág. 69). No inesquecível capítulo “Os Uivos do Mar” Cristina Carvalho transporta-nos para as praias da Ericeira onde os abortos aconteciam “sem disfarces” (pág. 62).

O pai, uma das figuras de referência de Paula Rego, cedo percebeu que a filha tinha qualidades que não se coadunavam com a tacanhez de Portugal de Salazar e, em 1952, envia a filha para Londres para estudar na Slade School of Fine Art: “Vais-te embora, que isto não é um país para mulheres!” (pág. 47). Menina, adolescente, mulher que viveu e conviveu toda a vida com medos, com depressões, fez, através da Arte, a cura e a representação das ideias, das memórias da infância com os avós, das histórias tradicionais contadas pela tia Ludgera, da vida comum das pessoas e sobretudo das mulheres.”Os meus quadros representam e apresentam a vida tal qual é: grotesca, disforme, raras vezes amena ou calma” (pág. 134).

Sendo estruturantes os espaços e os diferentes sítios que marcaram a infância e depois a idade adulta de Paula Rego, não admira que este romance biográfico dedique tanta atenção à descrição desses lugares, com especial carinho pela Quinta da Ericeira onde viveu com os avós e mais tarde já casada com Victor Willing, com quem partilhou a antiga adega, amplo espaço transformado em oficina. Mas Londres, que Victor preferia para trabalhar e a que regressaram definitivamente depois de 1976, Paula Rego sentia-a como sua pátria, nem portuguesa nem inglesa. No entanto, o amor pela Ericeira nunca a deixou e ficou registado em muitas das suas telas.

Depois de se ler “Paula Rego – a Luz e a Sombra Uma Forma de Olhar”, sente-se necessidade de revisitar a obra de Paula Rego, de olhar com mais atenção para “A Dança”, de encontrar alguns detalhes como as lagostas, de observar as mulheres e descobrir em muitas o rosto de Lila ou de ver Anthony Rudolph, modelo e amigo de Paula Rego durante um quarto de século, ou imaginar os bonecos e figuras grotescas que se amontoavam no estúdio de Londres. E rever o filme “Paula Rego – Histórias & Segredos” feito pelo filho Nick Willing.

28 de Março de 2024

Almerinda Bento