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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

As meninas proibidas de Cabul. Jenny Nordberg

31.12.23, Almerinda

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“As Meninas Proibidas de Cabul”, Jenny Nordberg, 2014

Jenny Nordberg, jornalista sueca premiada, conhecida pelos seus trabalhos de investigação, escreveu este seu “As Meninas proibidas de Cabul” entre 2009 e 2014, que ela classifica logo a abrir como “um relato subjectivo”. Com o subtítulo “A tradição secreta de resistência e luta das meninas afegãs”, este trabalho foi considerado Livro do Ano pela Publishers Weekly.

Neste meu texto sobre o livro, faço-o recordando aquela mulher afegã de burka que, em Outubro de 2000, no edifício das Nações Unidas em Nova York, perante dezenas de activistas feministas da Marcha Mundial das Mulheres, fez um relato emocionado sobre a opressão das suas irmãs do Afeganistão; recordando os milhares de mulheres e homens que em 2021 tentavam desesperadamente fugir do horror do regime totalitário dos talibãs; recordando a iraniana Narges Mohammadi, jornalista e activista dos direitos humanos, galardoada este ano com o Prémio Nobel da Paz, que afirmou “continuarei no Irão e continuarei o meu activismo, mesmo se passar o resto da minha vida na prisão”.

À medida que vamos lendo “As meninas proibidas de Cabul” é a palavra “resistência” que nos ocorre. O centro deste livro são os bacha posh, raparigas cujos pais transformam em rapazes, para colmatar a situação das famílias que não conseguem gerar filhos varões. Na sociedade afegã não ter filhos rapazes constitui um problema, uma falha do casal, algo que gera desconfiança social e mal-estar no seio da família. Assim e até à puberdade, a rapariga veste-se como um rapaz e tem uma liberdade que não teria se fosse rapariga, podendo brincar na rua, fazer compras e acompanhar com outros rapazes. A autora vai conhecer vários bacha posh e para isso desloca-se a zonas recônditas do país, não se limitando a Cabul: Mehran, o “filho” de 6 anos de Azita; Zahra de 15 anos que não quer perder a sua liberdade e voltar a ser rapariga; Sakina que aos 12 anos fez a transição, não sem que isso não lhe tivesse gerado confusão; Shukria, a enfermeira, com um profundo sentimento de falhanço na vida, visto não querer voltar à sua condição de mulher, mas ter sido obrigada a casar; Nader que nunca quis casar e que treina raparigas em futebol e na arte do tae kwon do. “É melhor viver à margem da sociedade do que viver escravizada, prega Nader às suas aprendizes.” (p.256)

Neste trabalho de campo como jornalista, a autora conhece Azita, mãe de Mehran e de mais três filhas, que casara contra sua vontade com um primo analfabeto. Azita, que usufruíra de formação devido à sua situação social privilegiada, torna-se membro da câmara baixa do Parlamento em Cabul em 2005. O Afeganistão é uma realidade complexa em que coexistem e conflituam vários grupos de entre os quais os pachto (islamitas sunitas) se consideram os verdadeiros afegãos, foi palco de “experiências” (soviética e americana) que em nada ajudaram o povo afegão a sair da guerra, do desemprego, da pobreza e da corrupção, ao mesmo tempo que a influência dos talibã se foi consolidando e impondo definitivamente em Agosto de 2021. A realidade dos bacha posh, não sendo raridade nem pontual, tem um estatuto de clandestinidade sobretudo para os estrangeiros, mas Jenny Nordberg conseguiu conhecê-la fruto da solidariedade feminina, fazendo uso das estruturas informais e porque conseguiu ganhar a confiança de mulheres como Setareh – a tradutora – também ela com uma experiência de bacha posh a quem no final do livro mostra a sua profunda gratidão. “Tem sido a minha guarda-costas e a minha negociadora e a minha pesquisadora e a minha amiga, a quem em troca eu ensinei coisas de que nenhuma mulher decente devia falar. Mas como vários dos bacha posh, teve um pai progressista que confiou nela, que a deixou trabalhar e viajar comigo para o desconhecido. Arriscou a vida por mim, e eu guardarei para sempre os seus segredos. // Se o Afeganistão voltar a guinar para o conservadorismo, todas as Setarehs, todas as Mehrans, todas as Azitas e todas as raparigas que recusam as normas serão as primeiras a sofrer.” (p. 349)

Sabemos que a guinada para o conservadorismo, para o fechamento e opressão do povo afegão, sobretudo das mulheres, se aprofundou no Verão de 2021. Mas mesmo em 2001, quando momentaneamente o poder dos talibã caiu, fora de Cabul era a lei dos talibã que imperava. Numa sociedade patriarcal com uma estrita separação dos sexos como é a sociedade afegã, em que as mulheres são meros seres reprodutores, assexuais, com uma esperança média de vida de 44 anos dos quais grande parte são na condição de gravidez, em que 18 000 mulheres morrem por ano por complicações de parto, em que o divórcio é praticamente impossível, uma mulher que leia ou escreva ou que tenha a mínima veleidade de liberdade corre o risco de a sua reputação ficar manchada. “Azita adora dançar, mas não o faz com muita frequência. Para uma mulher, a dança enquadra-se na mesma categoria que a poesia – equivale a sonho, que pode inspirar pensamentos a respeito de temas proibidos, como o amor e o desejo. Uma mulher que lê, escreve e recita poesia é uma mulher que talvez albergue ideias estranhas sobre amor e romance e seja, portanto, uma potencial prostituta.” (p. 104) A família é ou pode ser a pior ameaça para uma jovem afegã, pois são os pais que impõem um marido, não lhes dando o direito à escolha. Na sociedade afegã a mulher ou é filha, ou esposa, ou viúva, nunca divorciada. Daí que para muitos bacha posh que Jenny Nordberg entrevistou, o período em que viveram como rapazes foi o melhor e mais feliz período das suas vidas. Transcrevo a dedicatória do livro: ”Para todas as raparigas que perceberam que, de calças, conseguiam correr mais depressa e trepar mais alto”.

Apesar da dureza do livro, das vidas aí descritas, do pessimismo, das derrotas, do sentimento de falhanço que muitas das entrevistadas reflectem, a autora deixa uma visão optimista do futuro, que passa por os homens evoluírem de modo a libertarem as suas filhas, as suas mulheres e, no fundo, libertarem-se a si próprios.

Se este livro tivesse sido escrito a partir de 2021, teria Jenny Nordberg a mesma perspectiva optimista sobre a libertação das mulheres e meninas afegãs?

27 de Dezembro de 2023

Mais um ano a viajar

28.12.23, Almerinda

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Junto em cima da mesa os 21 livros que me fizeram viajar ao longo deste ano. Não é muito diferente o número de livros que empilho este ano, se o comparar com os dos outros anos. O ritmo de leitura continua razoável e aceitável e fico satisfeita. Mas na pilha faltam dois: um que me foi emprestado - "A Hora do Lobo" - e o outro que o Vítor me deu  - "Se os Gatos desaparecessem" - e que não consigo encontrar na confusão e desarrumação, quando já não há prateleiras que cheguem para acomodar tanto livro. Será que o emprestei?

Apresento-os. Mas para quem quiser saber o que escrevi sobre eles, basta pesquisar neste meu blogue.

"Um dia chegarei a Sagres" de Nélida Piñon 

"Na cozinha, à noite, perdia-me em conjeturas, de como chegar um dia a Sagres, a pé ou de barco." 

"Misericórdia" de Lídia Jorge

"Não há mais nada que seja só meu, nem o meu corpo, nem o meu espírito"

"A Hora do Lobo" de César Afonso

"Na infância não havia tempo, não havia limites, apenas um mundo inteiro para descobrir ao sair da porta"

"As Coisas que faltam" de Rita da Nova

" ...o maravilhoso mundo da maternidade."

"O País debaixo da minha Pele" de Gioconda Belli

"... escrevo estas memórias em defesa dessa felicidade pela qual a vida e até a morte valem a pena."

"O Hóspede de Job" de José Cardoso Pires

"Na véspera, as mulheres tinham marchado sobre a Vila e, todas em coro, apresentaram-se na Câmara. Pediam pão para casa, trabalho para os maridos."

"Como um Marinheiro eu partirei" de Nuno Costa Santos

"A adolescência é poder ser eterno por um instante" 

"Diário de um Médico no Combate à Pandemia" de Gustavo Carona 

"A coesão, a união, a solidariedade à volta de uma causa atingiram níveis nunca antes sentidos por ninguém"

"Galileu em Pádua" de Alessandro De Angelis

"A Inquisição e a censura estão a regressar"

"Silêncio na Casa do Barulho" de Margarida Carpinteiro

"As crianças compreenderam que as pessoas grandes também apanham quando não obedecem."

 "Maria Antonieta" de Stefan Zweig

"Quando, enfim, a chamam diante do tribunal, é uma velha de cabelos brancos que sai dessa longa noite e que avança para a luz do dia, a que já não está habituada."

"As Primas" de Aurora Venturini

"Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais."

 "Memória de Elefante" de António Lobo Antunes

"Fizera da vida uma camisola-de-forças em que se lhe tornava impossível mover-se..."

"Rebeldia" de Cristina Carvalho

"Afinal, todos vivemos com as nossas janelas. Umas abertas, outras sempre fechadas."

"Crónica do Rei-Poeta Al-Mu'Tamid" de Ana Cristina Silva

"Nasci com vocação para poeta, mas o destino quis que eu administrasse um reino."

"Se os Gatos desaparecessem do Mundo" de Genki Kawamura

"Só percebemos o que são as coisas realmente importantes quando as perdemos."

"Levantado do Chão" de José Saramago 

"De mulheres nem vale a pena falar, tão constante é o seu fado de parideiras e animais de carga."

"Gente de Dublin" de James Joyce

"Só o trabalho, sem brincadeira, faz de Jack um rapaz estúpido."

"Sol de Inverno" de Elisa Saraiva 

"...por momentos ninguém saiu do carro. Estavam a encontrar as forças necessárias para enfrentar a casa abandonada e as recordaçõpes feitas de lágrimas e dores."

"Caro Professor Germain" de Albert Camus

"A miséria é uma fortaleza sem ponte levadiça."

"As Meninas Proibidas de Cabul" de Jenny Nordberg

"No Afeganistão temos de matar tudo o que há dentro de nós para nos adaptarmos à sociedade . É a única maniera de sobreviver."

Estão pois nomeados os 21 lidos em 2023.

Escritos por 10 mulheres e 11 homens.

12 autores portugueses e 9 estrangeiros.

7 destes livros foram escritos no século passado e 14 já neste. 

Quero tentar manter estes equilíbrios nas escolhas das minhas leituras futuras.

Tenho tanto livro por ler. Tanto livro que vai ficar por ser lido porque o tempo de vida é finito. Mas sei quais vão ser os próximos: o mais recente romance biográfico de Cristina Carvalho "Paula Rego - a Luz e a Sombra uma Forma de Olhar" e "Capitães da Areia" de Jorge Amado, o livro escolhido pelo Círculo de Leitura da UNISSEIXAL, para a sessão de Janeiro.

Bom Ano. Boas Leituras.

28 de Dezembro de 2023

Em teu Ventre, José Luís Peixoto

24.12.23, Almerinda

 

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Hoje, em véspera de dia de Natal, recordo aqui este livro que terminei há precisamente 7 anos. Lembrando a minha mãe e as mães que por todo o mundo sempre põem os outros (filhos, marido) à frente de tudo e muitas vezes se esquecem de si. 

"Em teu Ventre”, José Luís Peixoto, 2015
Este romance de José Luís Peixoto decorre em Fátima, no ano de 1917, entre Maio e Outubro. É um livro centrado em Lúcia e em todo o ambiente que se viveu naquela terra desde que a jovem pastora de nove anos afirmou ter visto uma aparição. Lúcia é uma criança do campo que não sabe ler, mas que com a imaginação própria da sua idade faz diálogos com os objectos e com o que a natureza lhe dá. Educada no seio de uma família religiosa, com uma mãe austera que não admite mentiras nem é muito sensível às brincadeiras das crianças, com um pai mais amigo da taberna do que de casa, tem duas irmãs mais velhas e um irmão prestes a ser recrutado para a guerra em França. As suas brincadeiras com os dois primos também pastores – Jacinta e Francisco – entrelaçam-se com o trabalho no campo e com o cuidar dos animais à sua guarda.
É um livro que perturba porque faz o retrato de um Portugal rural, atrasado, analfabeto, religioso, subserviente. A pobreza tem como contrapartida a caridade como forma de expiação para os pecadores. O analfabetismo e a religião são os ingredientes que moldam as consciências das pessoas no Portugal rural e atrasado de há um século. Os detentores do poder são além do administrador do concelho a Igreja, que tem como missão a subjugação e o condicionamento das pessoas pelo temor, pela culpa e pela interiorização do pecado.
E depois há as mães: a mãe de Lúcia, a mãe do autor, a mãe de Cristo, as mães que estão sempre presentes, mesmo quando não estão, as mães que cuidam, que choram, que trabalham, que não descansam, que acreditam no milagre da cura do filho, que rezam para que o filho seja poupado à guerra, as mães que desculpam as bebedeiras dos maridos, as mães que são as últimas a sentar-se à mesa e a comer porque primeiro é para o marido e os filhos…

(“Todas as pessoas têm direito a descanso, menos as mães. Para cada tarefa, profissão ou encargo há direito a uma folga, menos para as mães. Se alguma mãe demonstrar a mínima fadiga de ser mãe, haverá logo uma besta, ignorante de limpar baba e de parir, que se oferecerá para a pôr em causa. Não é mãe, não sabe ser mãe, não foi feita para ser mãe, dirá. Mas, se todas as pessoas têm direito a descanso, será que as mães não são pessoas? A culpa é nossa. Sim, a culpa é das mães. Deixámos que fossem os filhos a definir-nos.”)

E quem se lembra das mães que antes de serem mães foram meninas?
(“Duvido que sejas capaz de me imaginar com dez anos. Já fui nova, sabias? Quando nasceste, em setembro, eu tinha trinta e dois anos feitos em junho. Talvez consigas suspeitar o que foi para mim ter-te com trinta e dois anos, até acredito nisso. Lembro-me de estares na minha barriga, nos últimos meses era um barrigão, mas tu não és capaz de me imaginar com dez anos, duvido. Não sou essa menina que imaginas quando tentas imaginar-me com dez anos. Fui uma menina que nunca conhecerás.”)

A mãe de Lúcia é forte, austera, receia que as revelações de Lúcia tragam castigos divinos porque para ela são mentiras, não passam de imaginação da filha. O prior acompanha a mãe de Lúcia na descrença das palavras da pequena pastora, mas logo uma outra Maria (da Capelinha), impelida na crença da salvação do filho e focada no desígnio da construção de uma capelinha junto ao local da aparição, movimenta a aldeia e pressiona Lúcia a garantir da veracidade das aparições. Neste jogo do esconde e do empurra, a pobre Lúcia sente-se perdida, confusa, chora, ausenta-se, quer que a deixem em paz, entristece-se, sente-se um joguete. É um joguete. E por que não “construir uma estância rentável, comparável à que existe em Lourdes?”
José Luís Peixoto usa de grande sensibilidade no tratamento desta ocorrência que passou à categoria de milagre e que tem sido analisada de vários ângulos, embora seja corrente e se tenha estabelecido como local de peregrinação e de culto por parte de pessoas crentes provenientes de todo o mundo. O autor não impõe a sua visão, antes nos dá a liberdade de pensar e fazer um juízo sobre como e por que surgiu Fátima e o culto a ela associado.

Dezembro de 2016
Almerinda Bento