As meninas proibidas de Cabul. Jenny Nordberg
“As Meninas Proibidas de Cabul”, Jenny Nordberg, 2014
Jenny Nordberg, jornalista sueca premiada, conhecida pelos seus trabalhos de investigação, escreveu este seu “As Meninas proibidas de Cabul” entre 2009 e 2014, que ela classifica logo a abrir como “um relato subjectivo”. Com o subtítulo “A tradição secreta de resistência e luta das meninas afegãs”, este trabalho foi considerado Livro do Ano pela Publishers Weekly.
Neste meu texto sobre o livro, faço-o recordando aquela mulher afegã de burka que, em Outubro de 2000, no edifício das Nações Unidas em Nova York, perante dezenas de activistas feministas da Marcha Mundial das Mulheres, fez um relato emocionado sobre a opressão das suas irmãs do Afeganistão; recordando os milhares de mulheres e homens que em 2021 tentavam desesperadamente fugir do horror do regime totalitário dos talibãs; recordando a iraniana Narges Mohammadi, jornalista e activista dos direitos humanos, galardoada este ano com o Prémio Nobel da Paz, que afirmou “continuarei no Irão e continuarei o meu activismo, mesmo se passar o resto da minha vida na prisão”.
À medida que vamos lendo “As meninas proibidas de Cabul” é a palavra “resistência” que nos ocorre. O centro deste livro são os bacha posh, raparigas cujos pais transformam em rapazes, para colmatar a situação das famílias que não conseguem gerar filhos varões. Na sociedade afegã não ter filhos rapazes constitui um problema, uma falha do casal, algo que gera desconfiança social e mal-estar no seio da família. Assim e até à puberdade, a rapariga veste-se como um rapaz e tem uma liberdade que não teria se fosse rapariga, podendo brincar na rua, fazer compras e acompanhar com outros rapazes. A autora vai conhecer vários bacha posh e para isso desloca-se a zonas recônditas do país, não se limitando a Cabul: Mehran, o “filho” de 6 anos de Azita; Zahra de 15 anos que não quer perder a sua liberdade e voltar a ser rapariga; Sakina que aos 12 anos fez a transição, não sem que isso não lhe tivesse gerado confusão; Shukria, a enfermeira, com um profundo sentimento de falhanço na vida, visto não querer voltar à sua condição de mulher, mas ter sido obrigada a casar; Nader que nunca quis casar e que treina raparigas em futebol e na arte do tae kwon do. “É melhor viver à margem da sociedade do que viver escravizada, prega Nader às suas aprendizes.” (p.256)
Neste trabalho de campo como jornalista, a autora conhece Azita, mãe de Mehran e de mais três filhas, que casara contra sua vontade com um primo analfabeto. Azita, que usufruíra de formação devido à sua situação social privilegiada, torna-se membro da câmara baixa do Parlamento em Cabul em 2005. O Afeganistão é uma realidade complexa em que coexistem e conflituam vários grupos de entre os quais os pachto (islamitas sunitas) se consideram os verdadeiros afegãos, foi palco de “experiências” (soviética e americana) que em nada ajudaram o povo afegão a sair da guerra, do desemprego, da pobreza e da corrupção, ao mesmo tempo que a influência dos talibã se foi consolidando e impondo definitivamente em Agosto de 2021. A realidade dos bacha posh, não sendo raridade nem pontual, tem um estatuto de clandestinidade sobretudo para os estrangeiros, mas Jenny Nordberg conseguiu conhecê-la fruto da solidariedade feminina, fazendo uso das estruturas informais e porque conseguiu ganhar a confiança de mulheres como Setareh – a tradutora – também ela com uma experiência de bacha posh a quem no final do livro mostra a sua profunda gratidão. “Tem sido a minha guarda-costas e a minha negociadora e a minha pesquisadora e a minha amiga, a quem em troca eu ensinei coisas de que nenhuma mulher decente devia falar. Mas como vários dos bacha posh, teve um pai progressista que confiou nela, que a deixou trabalhar e viajar comigo para o desconhecido. Arriscou a vida por mim, e eu guardarei para sempre os seus segredos. // Se o Afeganistão voltar a guinar para o conservadorismo, todas as Setarehs, todas as Mehrans, todas as Azitas e todas as raparigas que recusam as normas serão as primeiras a sofrer.” (p. 349)
Sabemos que a guinada para o conservadorismo, para o fechamento e opressão do povo afegão, sobretudo das mulheres, se aprofundou no Verão de 2021. Mas mesmo em 2001, quando momentaneamente o poder dos talibã caiu, fora de Cabul era a lei dos talibã que imperava. Numa sociedade patriarcal com uma estrita separação dos sexos como é a sociedade afegã, em que as mulheres são meros seres reprodutores, assexuais, com uma esperança média de vida de 44 anos dos quais grande parte são na condição de gravidez, em que 18 000 mulheres morrem por ano por complicações de parto, em que o divórcio é praticamente impossível, uma mulher que leia ou escreva ou que tenha a mínima veleidade de liberdade corre o risco de a sua reputação ficar manchada. “Azita adora dançar, mas não o faz com muita frequência. Para uma mulher, a dança enquadra-se na mesma categoria que a poesia – equivale a sonho, que pode inspirar pensamentos a respeito de temas proibidos, como o amor e o desejo. Uma mulher que lê, escreve e recita poesia é uma mulher que talvez albergue ideias estranhas sobre amor e romance e seja, portanto, uma potencial prostituta.” (p. 104) A família é ou pode ser a pior ameaça para uma jovem afegã, pois são os pais que impõem um marido, não lhes dando o direito à escolha. Na sociedade afegã a mulher ou é filha, ou esposa, ou viúva, nunca divorciada. Daí que para muitos bacha posh que Jenny Nordberg entrevistou, o período em que viveram como rapazes foi o melhor e mais feliz período das suas vidas. Transcrevo a dedicatória do livro: ”Para todas as raparigas que perceberam que, de calças, conseguiam correr mais depressa e trepar mais alto”.
Apesar da dureza do livro, das vidas aí descritas, do pessimismo, das derrotas, do sentimento de falhanço que muitas das entrevistadas reflectem, a autora deixa uma visão optimista do futuro, que passa por os homens evoluírem de modo a libertarem as suas filhas, as suas mulheres e, no fundo, libertarem-se a si próprios.
Se este livro tivesse sido escrito a partir de 2021, teria Jenny Nordberg a mesma perspectiva optimista sobre a libertação das mulheres e meninas afegãs?
27 de Dezembro de 2023