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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Levantado do Chão, José Saramago

08.10.23, Almerinda

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Levantado do Chão”, José Saramago, 1980

Este foi dos primeiros livros que li de José Saramago, há bastantes anos e numa altura em que não costumava fazer pequenos textos sobre as minhas leituras. Agora, que estou em vésperas de participar no Roteiro “Levantado do Chão” promovido pela Fundação José Saramago senti necessidade de reler esta obra que, na altura, me provocou uma grande emoção, não só pela forma como o Alentejo é retratado, mas também pelas semelhanças da família Mau-Tempo com a família do meu marido.

Lê-se este livro e é impossível ficar-se indiferente à mestria no manejo da língua, à riqueza vocabular e à análise social e das classes, com o foco no Alentejo ao longo do século passado. Na contracapa da edição (13ª) que tenho, pode ler-se “Um escritor é um homem como os outros: sonha. E o meu sonho foi de poder dizer deste livro, quando o terminasse: «Isto é o Alentejo»”.

A família Mau-Tempo é a protagonista maior. Várias gerações desde Domingos e Sara da Conceição até Maria Adelaide, sem esquecer o avô João Mau-Tempo que viveu a tortura da estátua e o isolamento em Caxias. Todos de olho azul. Da monarquia passou-se à República mas sem mudanças para a vida do povo, até que chegou o 25 de Abril e a Reforma Agrária. A paisagem é o Alentejo, a ceifa das searas, o tirar a cortiça, o trabalho nos arrozais, ou na vinha. Os homens e as mulheres que só dispõem da sua força de trabalho, sujeitos ao poder assente em 3 pilares: o latifúndio (Lamberto, Norberto…) a igreja (o padre Agamedes) e a guarda (sargento Armamento, inspector Paveia…). A luta contra as máquinas, pelos trinta e três escudos, por trabalho, pela jornada das oito horas e quarenta escudos de salário. A luta pela dignidade, contra a fome e prepotência. O povo, as formigas, a canzoada, quando não é tratada como carneirada. E também os milhanos que do céu tudo observam e que, como as formigas, são as testemunhas de tudo o que acontece no latifúndio.

Luta é resistência e sendo este “um livro sobre o Alentejo”, a epígrafe de “Levantado do Chão” dedica-o “À memória de Germano Vidigal e José Adelino dos Santos, assassinados.” Germano Santos Vidigal “o homem que caiu e foi levantado irá morrer sem dizer uma palavra que seja.”(p. 169)… “Que pálido está este homem, nem parece o mesmo, a cara inchada, os lábios rebentados, e os olhos, coitados dos olhos, nem se vêem entre os papos, tão diferente de quando chegou…” (p. 173) “Está morto José Adelino dos Santos, apanhou com uma bala na cabeça e primeiro nem acreditou, sacudiu a cabeça como se lhe tivesse mordido um bicho, mas depois compreendeu, Ah malandros que me mataram , e caiu de costas, desamparado, não tinha ali a mulher que o ajudasse, fez-lhe o sangue uma almofada vermelha, muito obrigada.” (p. 314).

A narrativa é densa, o narrador escreve, divaga, reflecte, antecipa acontecimentos futuros, dialoga com o leitor, não poupa nas palavras, ironiza. Como escreve na pág. 310 “São exageros no narrador”. “Todos os dias têm a sua história, um só minuto levaria anos a contar, o mínimo gesto, o descasque miudinho duma palavra, duma sílaba, dum som, para já não falar dos pensamentos, que é coisa de muito estofo, pensar no que se pensa, ou pensou, ou está pensando, e que pensamento é esse que pensa o outro pensamento, não acabaríamos nunca mais.” (p. 59). “Não foi a conversa por diante, nem já interessava, porquanto pôde o narrador dizer quanto queria, é o seu privilégio…” (p. 279). E vai-nos contando o que se passa lá fora e que vai chegando ao Alentejo: a República, a guerra, o atentado a Salazar, a emigração para a França, o general Delgado e a fraude eleitoral, a fuga de Peniche, o Santa Maria, a índia e o fim do império, a guerra colonial, o assalto ao quartel de Beja e finalmente o 25 de Abril e o primeiro 1º de Maio. Para o povo o trabalho quando o havia, duríssimo e mal pago, a resistência, organização e luta. No terreno, os capatazes e a guarda asseguram que o poder do latifúndio e da ditadura não são beliscados. “O feitor é o chicote que mete na ordem a canzoada. É um cão escolhido entre os cães para morder os cães.” … “uma espécie de mula humana, uma aberração, um judas, o que traiu os seus semelhantes a troco de mais poder e de algum pão de sobra.” (p.72).

A escrita de Saramago não esquece o mau viver das mulheres, o come e cala, “De mulheres nem vale a pena falar, tão constante é o seu fado de parideiras e animais de carga.” (p.125), mas os tempos mudam e elas também querem lutar ao lado dos seus companheiros “Gracinda Mau-Tempo também quis vir, já não há quem segure as mulheres, isto pensam os mais velhos e antigos, mas não dizem nada…” (p.310).

Muito mais e melhor se poderá dizer e escrever sobre este romance extraordinário, uma verdadeira lição de história, de resistência duríssima contra um poder ditatorial em que o Latifúndio, a Igreja e o Governo estavam de braço dado, mas contra o qual o povo lutou para se levantar do chão.

 

8 de Outubro de 2023

(25 anos depois do dia em que foi anunciado o prémio Nobel da Literatura de 1998 atribuído a José Saramago)

 

Almerinda Bento  

Tia Maria do Carmo

04.10.23, Almerinda

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Hoje a Tia Maria do Carmo faria 100 anos.

Era Tia do coração. Quando os meus pais vieram viver para Lisboa, recém- casados e com pouco dinheiro, no final dos anos 40 do século passado, tiveram que repartir a casa com outro casal: o casal Soares. Já nessa altura o dinheiro era pouco para arrendar uma casa e o casal Soares, oriundo do mesmo concelho dos meus pais ofereceu-se para partilhar casa com o jovem casal Bento. Só que a senhoria não aceitava essa situação e a Maria do Carmo explicou que aqueles jovens não eram estranhos, pois a Etelvina era sua mana.

Não se vê logo que somos parecidas! ?

A verdade é que não eram nada parecidas, mas a senhoria fez de conta que acreditava e lá aceitou. Foi assim que elas passaram a ser manas (eram amicíssimas, certamente muito mais amigas do que muitas irmãs) e a minha irmã Isabel, eu e mais tarde a Gracinha passámos a tratá-la por tia Maria do Carmo.

Uma mulher doce, doce, duma generosidade e alegria que manteve ao longo da vida. Nunca teve filhos, mas nós, tal como os sobrinhos, éramos tratados e amados como filhos. Claro que quando deixou de viver em Lisboa e já viúva as nossas visitas eram mais espaçadas, mas eram sempre momentos únicos de imensa alegria quando a visitávamos na sua casa na Chaínça. Mais tarde na Barquinha, já só eu cá estava para a visitar e depois no lar onde faleceu em 2020 com 97 anos.

Adorava contar-nos histórias em que a Bel e eu éramos protagonistas, quando pequeninas e ainda a viver com eles e era com muita saudade que as contava como que a fazer reviver os meus pais e a minha irmã, então já desaparecidos. Não se cansava de as repetir e sentia-se a alegria em reviver esses momentos em que foi tão feliz.

As minhas palavras são pobres para falar de uma pessoa tão querida, que foi tão importante nas nossas vidas e hoje, que completaria 100 anos, quero desta forma tão singela enviar-lhe um abraço, aquele abraço sempre tão apertado com que a saudávamos e nos despedíamos sempre que a visitávamos. 

Se há pessoas boas no mundo, a Tia Maria do Carmo está entre elas. 

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Estas fotografias são do Verão de 2014, quando ela vivia na Barquinha. 

4 de Outubro de 2023