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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Se os Gatos desaparecessem do Mundo, Genki Kawamura

13.09.23, Almerinda

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“Se os Gatos desaparecessem do Mundo”, Genki Kawamura, 2012

É sempre com alguma apreensão que começo a ler um livro de um autor japonês… talvez um preconceito desde que li um livro de Murakami há já alguns anos. A minha relação com aquele mundo um bocado estranho em que aparecem poços e pessoas sabe-se lá de onde, leva-me a estar com um pé atrás sempre que leio autores japoneses. Mas, a minha paixão por gatos é por demais conhecida e, de vez em quando, lá me oferecem mais um livro com gatos.

Afinal, um livro despretensioso e simples que é uma alegoria sobre coisas sérias, como o sentido profundo da vida. Um jovem carteiro, confrontado com a iminência da morte a qualquer momento, tenta através de um pacto com o Diabo, adiar o fim, eliminando coisas do seu quotidiano. O que é dispensável? Na verdade, “o mundo está basicamente atulhado de inutilidades” (pág.19) e o romance tem reflexões sobre o valor ou os reflexos nas nossas vidas de objectos como os telemóveis, ou os relógios, ou o cinema… porque, se nos facilitam a vida também nos aprisionaram e retiraram capacidade de dar valor a outros aspectos da vida muito mais importantes. “Quando os seres humanos inventaram o telemóvel, inventaram também a ansiedade de não o termos nas mãos.” (pág. 34)

“Se os gatos desaparecessem do Mundo” é um romance sobre o amor, sobre a família, sobre as perdas, sobre o perdão. O jovem carteiro que vive com o gato Repolho como única companhia, descobre através das suas memórias de infância e das palavras da mãe, que morrera havia quatro anos, “Só percebemos o que são as coisas realmente importantes quando as perdemos” (pág.75) que a família não é algo que exista, mas sim algo que se constrói: “Nós «fazemos» a família” (pág. 111). Perante a proposta de os gatos desaparecerem do mundo, de modo a acrescentar mais um dia à vida do carteiro, rompe-se o pacto com o Diabo. O Repolho, como antes o Alface, tinham sido os elos que davam consistência à sua relação com os pais, a família que em certo momento deixou de existir como tal. De novo, as palavras sábias da mãe: “Para ganharmos alguma coisa, temos de perder alguma coisa” (pág. 32), quando em troca de ganhar mais um dia, vai ter de perder o seu querido gato.

“Se os gatos desaparecessem do Mundo” é uma longa carta, a primeira e a última que o carteiro escreve ao pai de quem se afastara, como se de um testamento se tratasse. Transcrevo aqui este parágrafo, pensando na possível reacção do pai quando receber a carta do filho: “Antigamente, antes dos telemóveis e do correio eletrónico, teria escrito uma carta. As pessoas imaginavam que as suas cartas chegavam ao seu ente querido e perguntavam a si mesmas como ele ou ela reagiria. Depois, ficariam ansiosamente à espera de uma carta com a resposta, verificando a caixa de correio todos os dias. Os presentes também são assim. Não é a coisa em si que conta, mas aquilo que pode significar para a pessoa a quem a damos, e é a expressão dessa pessoa e a felicidade que terá ao receber o presente que temos em mente quando o escolhemos. (pág. 54).

Por fim, para todos os amantes de gatos, todos os que se afeiçoam aos gatos durante o breve tempo das suas vidas quando comparado com as dos humanos, a mãe do carteiro costumava sempre dizer isto sobre os gatos: “Podemos pensar que somos donos de gatos, mas não é assim que as coisas são. Eles permitem-nos simplesmente o prazer da sua companhia.” (pág. 118).

 

13 de Setembro de 2023

 

 

 

 

“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”, Ana Cristina Silva

09.09.23, Almerinda

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“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”, Ana Cristina Silva, 2010

Sei que o próximo livro de Ana Cristina Silva está prestes a sair, mas antes disso quis ler este livro que comprei há tempos a um amigo alfarrabista. Estava autografado, tinha sublinhados e anotações, a que acrescentei os meus próprios sublinhados, o que prova como um livro é apropriado e lido diferentemente por cada leitor. Mais uma personagem – Al-Mu’tamid – que Ana Cristina Silva estudou, pesquisou e nos dá um retrato complexo e interessante.

Al-Mu’tamid foi uma personagem que eu desconhecia em absoluto e a leitura deste livro permitiu-me conhecer, não só este emir que viveu no final do século XI, mas também um pouco da história do chamado Al-Andalus, ou seja, a região do sul de Espanha, o sul do Alentejo e Algarve, quando essas regiões estavam divididas em taifas que eram governadas por reis mouros. Al-Mu’tamid nasceu em Beja, foi governador em Silves e governou Sevilha após a morte do pai. Ao contrário do pai, cujo objectivo quase exclusivo foi combater e fazer guerra, Al-Mu’tamid tinha outras intenções que passavam por uma governação menos ligada à guerra e em que a poesia, a cultura e a filosofia teriam um maior peso. As disputas e rivalidades entre os emires das taifas, as investidas dos cristãos a norte e as ambições dos almorávidas de Marrocos descontentes com o fraco apego dos emires aos ensinamentos de Alá precipitaram o o fim de Al-Mu’tamid  e o fim do reino Al-Andalus.

Esta “Crónica” constituída por vários capítulos cujos títulos são versos de diversos poemas de Al-Mu’tamid é, não só o relato da vida do rei-poeta, mas uma longa reflexão sobre um destino que ele não quis, num período de profunda convulsão social e política que transformou a Península Ibérica. “A verdade é que nem como emir me distingui” … “Nasci com vocação para poeta, mas o destino quis que eu administrasse um reino” (pág. 32). A função de governante não se ajustava ao seu perfil. O seu ideal era celebrar a beleza através da poesia e a paz com que sonhava teve de ser adiada indefinidamente pelas circunstâncias. Fora os momentos descontraídos e de felicidade da sua juventude, em que a arte e o prazer andaram de mãos dadas, o seu destino obrigou-o a seguir um caminho que não quis e a viver com os fantasmas do pai a quem queria agradar e dos filhos pelas suas mortes.

Para além do remorso e do luto por mortes que não conseguiu evitar e por outras que protagonizou, viveu de perto a intriga da corte, a falsidade e a traição dos cortesãos. Se o povo, espoliado e cansado da guerra acolheu com júbilo as ideias fanáticas do emir de Marrocos quando este desembarcou com os seus exércitos para derrubar o reino Al-Andalus, - a “glorificação da jihad fazia-se em prejuízo de chamamentos mais lúcidos, mas unia o povo num propósito. A guerra santa era um abrigo seguro para a miséria dos mais pobres.” (pág. 140 - Al-Mu’tamid também encontrou em Marrocos, como prisioneiro, gente que o olhava com “uma certa reverência misturada com compaixão” (pág. 156). De tantos quantos viveram com Al-Mu’tamid, foi Itimad o maior amor da sua vida e quem o acompanhou até ao fim, estando os seus túmulos em Aghmât, num mausoléu construído pelo filho Arrazi.

“Crónica do Rei-Poeta Al-Mu’Tamid”é uma história sobre o poder, sobre as consequências devastadoras das guerras, sobre o remorso, sobre a solidão e sobre o amor. E também sobre o fanatismo religioso que continua a subjugar povos nos dias de hoje, com base em ideias e pressupostos primários saídos da cabeça de fanáticos sem escrúpulos.

 

8 de Setembro de 2023

Almerinda Bento