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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Rebeldia, Cristina Carvalho

31.08.23, Almerinda

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“Rebeldia”, Cristina Carvalho, 2017

 

Acabo de ler “Rebeldia” de Cristina Carvalho e penso: quantas Leninhas existem? Quantas vezes não nos sentimos como a Leninha? Até que ponto não nos revemos também na Leninha, por muito que isso nos custe aceitar?

Tirei poucas notas à medida que fui lendo, mas sublinhei e vivi muito este livro. Só conhecia a escrita de Cristina Carvalho de alguns romances biográficos, diferentes deste romance da vida de uma mulher que desde jovem ambiciona outros horizontes que a afastem da vida sem graça da infância e da Pensão Popular dos seus pais. “Sou uma mulher de repentes e de vontades e de cheiros e de apetites, uns dias mais do que outros, é certo, mas sem nunca abandonar estes repentes que, por vezes, fazem com que eu chegue a cambalear de emoções” (pág. 78) diz/escreve a narradora Leninha a certa altura do romance. A felicidade pode estar naquela vista para o rio lá ao fundo, com os reflexos da luz do sol e os barcos a passar, podem ser aqueles olhos azuis, Blue Eyes, mesmo sabendo que são fugazes e mentirosos.  

É a história de uma mulher que sonha, mas que acaba por ter uma vida sofrida, de violências e de desamor, feita de tentativas, recaídas, ausências, silêncios, fugas, mentiras, culpas, desculpas. É um livro duro, sobre a violência das amarras de um casamento de que tenta fugir, como que enredada numa teia de aranha.

É um livro sobre a(s) violência(s), difícil de esquecer, de tal modo está bem escrito, com tanta subtileza.

 

31 de Agosto de 2023

Almerinda Bento

Memória de Elefante, António Lobo Antunes

29.08.23, Almerinda

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Memória de Elefante, António Lobo Antunes, 1979

Um dos muitos livros que pensei que ainda não tinha lido, mas a verdade é que o folheio e descubro anotações, marcas de leitura antiga. A memória apagou-se; não tenho memória de elefante… mas reparo que, quer as anotações, quer os sublinhados não passaram um quarto do livro, pelo que não o devo ter concluído na altura. Na badana desta edição do Círculo de Leitores, leio que este foi o primeiro romance de António Lobo Antunes.

O narrador é um psiquiatra “vazio de tudo” (pág. 76) a viver um período negro na sua vida. A juntar ao total desprazer pelo sítio onde trabalha ”a inumana máquina concentracionária do hospital” (pág. 49), pelas pessoas com quem trabalha, é crítico do sistema que gera a doença mental e também crítico da própria psiquiatria ”aqui estou eu a colaborar não colaborando com a continuação disto, com a pavorosa máquina doente da Saúde Mental trituradora no ovo dos germenzinhos de liberdade que em nós nascem sob a forma canhestra de um protesto inquieto, pactuando mediante o meu silêncio, o ordenado que recebo, a carreira que me oferece; como resistir por dentro, quase sem ajuda, à inércia eficaz e mole da psiquiatria institucional, inventora da grande linha branca de separar a «normalidade» da «loucura»? (pág. 46). O narrador não consegue suportar a solidão pelo fim recente do casamento que o afastou das filhas e da mulher, que no entanto continua a amar, “Desde que se separara da mulher perdera lastro e sentido” (pág. 92). As lembranças persistentes da guerra de África onde combateu perseguem-no como uma sombra: “Como sempre que se recordava de Angola, um roldão de lembranças em desordem subiu-lhe das tripas à cabeça na veemência das lágrimas contidas” (pág. 40) ou “Porque será que continuamente me recordo do inferno, interrogou-se ele: por de lá não ter escapado ainda ou por o haver substituído por outra qualidade de tortura”? (pág. 128)

Era através da ironia que procurava esconder a ternura de que se envergonha e o afecto que o apavora. Só mesmo a mulher o conseguia compreender. “Fizera da vida uma camisola-de-forças em que se lhe tornava impossível mover-se, atado pelas correias do desgosto de si próprio e do isolamento que o impregnava de uma amarga tristeza sem manhãs.” (pág. 106).

Este é também um romance de Lisboa, das ruas por onde o psiquiatra conduz na sua deslocação ao dentista e à sessão de análise de grupo ao fim do dia de trabalho, dos restaurantes “manjedouras” onde ainda se fumava, antes de se dirigir pela marginal a caminho do seu apartamento no Monte Estoril “uma ilha estrangeira a que se achava incapaz de se adaptar, longe dos ruídos e dos cheiros da sua floresta natal.” (pág. 162)

Agora que o termino, penso que percebo por que não o li até ao fim, numa altura em que teria pouco mais de trinta anos. É deveras um livro pesado, carregado de angústia e solidão, profundamente pessimista,  com uma escrita densa e carregada de metáforas nem sempre fáceis ou acessíveis e com uma estrutura de períodos longos, que obrigam a que frequentemente se volte atrás para se apanhar o fio à meada da ideia principal. A capa desta edição de Dezembro de 1984 (a décima) representa um fragmento de uma pintura surrealista de Rudolf Hauner «A Arca de Ulisses» e está em perfeita sintonia com o tema do livro.

Recordo aqui uma longa entrevista feita por Cristina Margato a António Lobo Antunes, publicada em finais de 2016 no «Expresso» em que, tal com acontece com o narrador protagonista de “Memória de Elefante”, António Lobo Antunes diz que “Não me é fácil viver comigo. Parece que estou sempre em guerra civil.” e refere que “Todos os livros são autobiográficos. Acabamos por só falar daquilo que, no fundo, conhecemos.” Nessa entrevista e sobre “Memória de Elefante”, o autor refere: “Depois, o primeiro livro ninguém o queria publicar.”(…) “Memória de Elefante”, com todas as ingenuidades que tem, já teve trinta e tal edições. Uma vez chegou-me uma edição e eu ia almoçar… Pus-me a folheá-la e espantei-me. O livro não tem nada que ver com o que faço agora. O que me surpreendeu foi a força do livro. Quer dizer… se eu fosse editor pensava: “Este miúdo vai escrever coisas do caraças.” Mas é um livro desequilibrado, cheio de defeitos, começa como a história familiar e acaba como uma saga.”

28 de Agosto de 2023

Almerinda Bento

As Primas, Aurora Venturini

22.08.23, Almerinda

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As Primas, Aurora Venturini, 2007

Aurora Venturini foi uma escritora argentina que, aos 85 anos, depois de uma carreira com mais de trinta livros pouco divulgados, acabou por ter os holofotes do reconhecimento literário com este “As Primas” com o qual recebeu o Premio Nueva Novela (Argentina) e o Premio Otras Voces (Espanha). Impossível ficar-se indiferente e mesmo perplexo ao ler este livro, como aliás aconteceu com Mariana Enríquez, que escreve o prólogo ao romance e que foi uma das pessoas que trabalhou em 2007 na pré-selecção das obras a concurso ao Prémio Nueva Novela. Tudo saía fora da norma, até o facto de o original ter sido escrito numa máquina de escrever e de os erros ortográficos terem sido corrigidos com corrector líquido.

Um livro delirante mas muito sério, em que não se consegue deixar de rir pelo insólito e crueza das descrições. Vai ser difícil esquecer este livro e Yuna, a narradora, as primas Petra e Carina, a irmã Betina, as tias Nené e Ingrazia e a mãe “professora de ponteiro e bata branca, muito severa, mas ensinava bem…” (pág. 21). Um livro de e com mulheres, mas onde não falta o vizinho, o professor e outros personagens do sexo masculino.

Mas foquemo-nos em Yuna. Logo no início, Yuna diz da sua família “Não éramos comuns, ou seja, não éramos normais.” (pág. 22). Sempre que algo acontecia na sua vida que a emocionava, transpunha esses sentimentos para cartões e mais tarde para telas, uma terapia que a apaziguava. O professor de Belas Artes aposta nela. Ele diz que ela é “a menina da gravata”pela parecença com “a jovenzinha melancólica de Modigliani” (pág. 79) e não a considera uma deficiente, mas sim uma “artista plástica ensimesmada” (pág. 37). Ela luta com as palavras, com a sua dificuldade ao nível da linguagem verbal e, quando escreve, não usa pontos nem vírgulas nem maiúsculas. “Já disse que dentro da minha psique conhecia detalhes e formas, que era muito diferente da tonta de fora que falava sem ponto nem vírgula porque se punha ponto ou vírgula perdia a palavra falada. Às vezes punha ponto ou vírgula para respirar mas convinha-me comunicar de viva voz rapidamente para que me entendessem e evitar lacunas silenciosas que revelassem a minha incapacidade de comunicação verbal porque ao ouvir os barulhos dentro da minha cabeça e o fluir sibilante das palavras ficava confusa e boquiaberta a pensar que existiam palavras gordas e palavras magras, palavras negras e brancas, palavras loucas e criteriosas, palavras que dormiam nos dicionários e que ninguém usava. Aqui por exemplo usei vírgulas. E pontos.” (pág. 64). Explica-se quando dialoga com o/a leitor/a, pede-lhe desculpa quando se repete e faz ironia com isso: “… não repetirei para não cansar quem tiver oportunidade de me ler e digo repetindo a quem tiver oportunidade de me ler e paciência ao mesmo tempo porque eu própria me ouço e se as palavras que escrevo são tão cansativamente patetas como as que digo de mim para mim, quem terminar esta melopeia absurda amaldiçoar-me-á pelo tempo que perdeu comigo sem poder negar que não conseguiu pôr-me de lado porque encontrou entre as minhas estúpidas amarguras de amor e morte muitas das que ele próprio viveu, ou ela caso se trate de uma senhora.” (pág. 74). E algumas páginas mais à frente “Já não vou dizer que me cansam os pontos finais e as vírgulas porque senão pareço ridícula e os bons leitores que simpatizarem comigo deixarão de me ler.” (pág. 89). Sempre que usa uma nova palavra que descobriu no dicionário, põe a palavra dicionário entre parêntesis ou então (idem), esclarecendo “que idem significa dicionário mas por ser um vocábulo mais curto convém-me mais e como nunca fico com nada pendente digo que esse vocábulo corresponde às minhas averiguações da cultura do dicionário que me ajuda a sair da minha deficiência herdada.” (pág. 121). E quando há uma palavra que ela não encontra no dicionário, é à prima Petra que recorre.

Este é também um romance sobre os corpos e sobre os tabús dos corpos disformes ou não. Neste romance há pipis, pénis, maminhas, puns, chichi, vómito, sangrar, nojo, aborto, preservativo, violação, gravidez. Na sua linguagem directa e simples, Yuna desconstrói o mundo dos adultos, dos ditos normais, da sociedade organizada e dos psicólogos. “Eu cresci com má opinião do casamento e da família organizada. Jurei não casar. Jurei viver para pintar. Jurei muitas coisas até que me apercebi de que jurar era pecado e nunca mais jurei.” (pág. 50).

Yuna é um caso de superação, de alguém que, conhecendo as suas limitações, não deixa de tentar ultrapassá-las. Pelas palavras e pela arte.

Sentia-me acabada de nascer, consegui equilibrar-me, expor. Viajar.

Apaguei. Apaguei. Apaguei tudo.

Uma enorme melancolia invadiu as minhas pinturas e valorizou-as porque as pessoas quando se vêem refletidas na dor conseguem consolar-se um pouco.” (pág. 203).

 

Um livro desconcertante, que consegue oferecer-nos o poder extraordinário da Literatura e da Arte. Escrito por uma jovem de 85 anos!

21 de Agosto de 2023

Almerinda Bento

 

 

Maria Antonieta, Stefan Zweig

19.08.23, Almerinda

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Maria Antonieta, Stefan Zweig, 1932

Quando há um ano li “Maria Stuart” decidi que queria ler “Maria Antonieta” uma das diversas biografias que o incansável Stefan Zweig escreveu ao longo da vida. Tal como “Maria Stuart”, “Maria Antonieta” é o resultado de um profundo trabalho de pesquisa, aliado a uma escrita irrepreensível e a uma reflexão pessoal sobre a personagem, a história e todo o ambiente na Europa e na corte francesa nos finais do século XVIII. Esta edição do Círculo de Leitores foi traduzida por Alice Ogando, tal como acontecera na biografia de “Maria Stuart”.

Maria Antonieta é uma personagem trágica, usada na infância como moeda para alianças entre famílias reais através de um casamento de conveniência, sem possibilidade de brincar e crescer num ambiente que não fosse regido pela etiqueta e pelas intrigas, fascinada pelo papel que lhe é atribuído, apesar de nem ela nem o jovem marido Luís XVI estarem à altura desse papel – ele mole e indeciso, ela fútil e superficial. São vinte anos de vida estouvada, com gastos exorbitantes e sem limites que geram uma reviravolta na atitude do povo que deixa de lhe ter o respeito e a estima que antes tivera, para a odiar, caluniar e desprezar. Quando o povo desperta, já é tarde demais para a rainha e para a os nobres que viviam na órbita desta jovem rainha que nuca quis ouvir os conselhos da sua mãe Maria Teresa, a imperatriz da Áustria. Aliás, ninguém tinha a noção da amplitude da revolta popular, uma verdadeira revolução. A rainha fica sozinha, todos os amigos desaparecem, excepto Hans Axel von Fersen, o único que tudo fez até ao fim para tentar salvá-la da justiça popular. Após a tomada da Bastilha a 14 de Julho, os acontecimentos precipitam-se e a roda da História nunca mais sorrirá a Luís XVI e a Maria Antonieta. Acaba Trianon, o palácio da evasão e da futilidade da rainha, a última noite em Versailles será a 5 de Outubro, para nunca mais voltarem. Numa viagem de seis horas para Paris, seguidos pela multidão em fúria, vão ficar presos nas Tulherias, desabitadas há mais de cem anos, desde os tempos de Luis XIV. A tentativa de fuga para Varennes, a constituição da Comuna a 10 de Agosto de 1792, o aprisionamento dos reis no Templo e a abolição da realeza com a decapitação do rei são a sequência de um momento histórico decisivo para a França e com reflexos na Europa. Maria Antonieta está completamente só, “todos a abandonaram” (pág. 370); inclusivamente, o imperador Francisco, sobrinho de Maria Antonieta não mexe uma palha para a ajudar. Só mesmo o embaixador Mercy e Fersen, tentam, no exterior, impedir que Maria Antonieta suba ao cadafalso. Mesmo na Conciergerie “a antecâmara da morte” (pág. 399), onde os carcereiros estabelecem relações de simpatia e amizade com a presa, o medo das represálias da Comuna e da Junta de Salvação Pública falam mais forte.

A mudança na vida de Maria Antonieta operou uma transformação radical na sua atitude e é essa capacidade da escrita que torna este livro tão extraordinário e a personagem de Maria Antonieta tão dramática. “Desde a tomada da Bastilha até ao cadafalso, não cessa de se sentir completamente senhora dos seus direitos” (pág. 211) e, tal como me surpreendeu a descrição da morte de Maria Stuart, nesta biografia, a fibra de uma mulher que quis morrer com dignidade sem dar quaisquer trunfos aos que a acossaram e traíram e aos que a julgaram, mesmo sem terem documentos comprovativos, torna as últimas páginas deste livro verdadeiramente inesquecíveis. “ «Quando te resolves a ser quem és?», escrevia-lhe vinte anos antes, Maria Teresa, desesperada. Agora, a dois passos da morte, começa a encontrar em si mesma essa grandeza que só possuía exteriormente. Quando lhe perguntaram o seu nome, responde em voz alta e clara: «Maria Antonieta de Áustria Lorena, trinta e oito anos, viúva do rei de França.»” (pág. 417) Como num filme, Stefan Zweig é exímio na descrição da atitude e dos sentimentos da rainha e na descrição de toda a envolvência no percurso desde a cela na Conciergerie até ao cadafalso na Praça da Revolução, hoje Praça da Concórdia.

18 de Agosto de 2023

Almerinda Bento

Nota: Ao ler este livro sobre a rainha Maria Antonieta, não pude deixar de me lembrar da minha leitura de “As Luzes de Leonor” de Maria Teresa Horta. Lembro-me que D. Leonor de Almeida Portugal, 4ª Marquesa de Alorna estava em França, em Marselha e que partiu para Paris, porque queria viver de perto a revolução francesa que a fascina e atemoriza, porque a questiona sobre o mundo em que sempre viveu. Vai conhecer mulheres fascinantes, mulheres do povo que falam em liberdade e igualdade, em direitos. São tempos de grandes questionamentos, mas que a atraem imenso e nessa altura conhece Olympe de Gouges.

Leonor associa Paris à Roma incendiada por Nero. Sente-se deslocada entre os revolucionários e as amazonas, mas não quer partir. As mulheres encabeçam o cerco a Versalhes. Leonor não toma posição sobre a revolução e considera que nada será como dantes; é uma mera testemunha e regressa a Marselha.

O Jardim sem Limites, Lídia Jorge

03.08.23, Almerinda

Um texto que escrevi há 9 anos quando ainda não tinha blog.

O Jardim sem Limites, Lídia Jorge, 1995
Desde “Contrato Sentimental” (2009) que não lia nada de Lídia Jorge e decidi-me por “O Jardim sem Limites”, um livro herdado da minha irmã Isabel.
Trata-se de uma 1ª edição que tem a vantagem de ter uma capa desenhada por Gracinda Candeias que se percebe perfeita à medida que se vai entrando na narrativa. A cidade de Lisboa, num quente verão de 1988 e a Casa da Arara, casa de hóspedes de Julieta Lanuit são os cenários em que se mexem as personagens. Todas se mexem, excepto Leonardo – o Static Man – em processo de autosuperação, de modo a conseguir atingir o máximo de imobilidade voluntária.
A Remington no quarto da cama gigante é a observadora privilegiada, a ouvinte e aquela que transporta para o papel os factos e as interacções que se desenrolam de forma ruidosa entre os transumantes que se hospedam naquela casa inundada por uma enxurrada. Ouve, observa, capta, mas não intervem. Limita-se a estar. Há um esquema, como se fosse uma árvore que se espraia pela parede com datas, personagens, siglas, factos que se vão desenrolando ou que param de forma abrupta. Tal como o reporter Falcão, Gamito ou Paulina vão criando um enredo – um story board – imaginário a partir de imagens reais que montam, cortam e colam de acordo com um esquema que vão construindo, também aqui eles são muitas vezes surpreendidos por uma realidade que é bem mais forte e decisiva do que todos os esquemas que tinham anteriormente arquitectado.
A Remington capta os quotidianos de diversos jovens que decidiram em determinado período das suas vidas abandonar o percurso que a sociedade e os familiares tinham pensado para eles/as e que acabam por se encontrar naquele primeiro piso da Casa da Arara. O que os liga é esse desapego à vida que corre lá fora, na corrida diária para os empregos ou na rotina dos dias da grande cidade. Percebe-se que o “normal” daqueles/as filhos de família teria sido não aquela marginalidade voluntária mas sim seguirem um caminho dito sem problemas nem dificuldades. Mas eles/as quiseram ser diferentes, únicos, independentes, fizeram escolhas e assumiram o risco de ultrapassar os limites. Mesmo quando tanto aspiram a ser únicos e diferentes, os ícones e artistas consagrados da música e do cinema moldam-nos/as e “colam-se” a estes/as jovens.
Este é também um livro sobre a solidão das pessoas, a luta pela sobrevivência, as marcas para a vida deixadas pela luta de resistência ao salazarismo, o mundo subterrâneo do crime e da charlatanice. Lídia Jorge leva-nos com este livro a recordar o grande incêndio do Chiado, a lembrar os artistas que encontramos nas ruas da Baixa, os turistas que enxameiam a cidade e os homens da esquadra americana que aportam a Lisboa em exercícios militares junto à costa.
Um livro muito interessante, em que frequentemente nos pomos a imaginar e a construir mentalmente a sequência daquelas vidas, como se também nós fôssemos a Remington; nos emocionamos com os seus fracassos e tragédias, nos rimos com algumas cenas caricatas e bem humoradas ou ficamos perplexos com desenvolvimentos inesperados . Um livro que sendo datado é intemporal e retrata a condição humana naquilo que ela é de tão diversa, insatisfeita, contraditória e surpreendente.
2 de agosto de 14