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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Silêncio na Casa do Barulho, Margarida Carpinteiro

21.07.23, Almerinda

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Silêncio na Casa do Barulho, Margarida Carpinteiro, 1986

Este é um daqueles livros “fininhos” que acabam às vezes por ficar espalmados no meio de outros mais volumosos e demasiado tempo esquecidos sem serem lidos. “Silêncio na Casa do Barulho” é o terceiro livro desta escritora, que é mais conhecida do público pelo seu trabalho como actriz de teatro e de televisão. Para mim, este é o primeiro livro que leio de Margarida Carpinteiro.

Lisboa do início dos anos 50 do século passado, pela referência ao enterro do general Óscar Carmona. A Lisboa operária, um bairro de gente pobre, de gente que trabalha. Sente-se que as pessoas são tristes; são felizes quando sonham (Licas e Sanefa). Para os mais pobres há a “sopa do Sidónio” cujo nome resistiu e se manteve durante o tempo de Salazar. As fábricas que se construíram – a dos Tabacos e a das Armas – atraíram à cidade homens, que até então nunca tinham calçado sapatos. Cheira a pobreza. As mulheres têm muitos filhos, trabalham sem descanso, fazem a comida, abortam, as bofetadas e os sopapos são a linguagem com os filhos quando fazem alguma coisa mal feita. Os miúdos fazem gazeta na escola e sabem que a fábrica é o castigo certo para quem não consegue ter sucesso na escola. “Pensas que és fina como a de cá de baixo?” (pág. 38) E quando o marido da Adelina Padeira é preso depois da greve na fábrica dos Tabacos, “as crianças compreenderam que as pessoas grandes também apanham quando não obedecem” (pág. 57).

Os casamentos e os funerais são os momentos sociais que quebram o cinzento dos dias, para além das histórias que se contam à soleira da porta nas noites quentes de Verão. A PIDE é uma ave negra poisada num carro preto. Como a PIDE, a Igreja também vigia e pune quando o rebanho se tresmalha. A farsa das eleições é montada e o cenário é feito de homens de escuro, tristes, que deitam “um papel branco e dobradinho dentro de uma caixa de madeira” (pág. 90). E “porque não estava lá nenhuma mulher?”… “ficaram a fazer o almoço.” (pág. 91).

Um livro muito bem escrito, muito visual, embora muitas vezes a autora faça uso de uma técnica narrativa não explícita que implica uma maior atenção e reflexão por parte do/a leitora/a. Além disso, é muito marcado pela oralidade; faltam as vírgulas que são dispensáveis.

Tenho de verificar se não terei mais nenhum livro “delgadinho” de Margarida Carpinteiro escondido no meio de dois livros de lombada gorda e anafada.

18 de Julho de 2023

 

 

 

Galileu em Pádua, Alessandro De Angelis

20.07.23, Almerinda

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Galileu em Pádua, Alessandro De Angelis, 2021

Alessandro De Angelis é cientista, professor em Pádua e Lisboa e escreveu, entre outros, ensaios sobre a obra de Galileu. Este “Galileu em Pádua” conta “em forma romanceada os dezoito anos passados por Galileu em Pádua”, aqueles que Galileu considerou “os dezoito melhores anos da minha vida”. Na Premissa do livro, o autor revela que consultou vasta documentação e, sobretudo, correspondência que Galileu recebeu e que guardou, sendo o resultado um trabalho rigoroso do ponto de vista histórico, com personagens que existiram, embora o autor tenha feito “suposições – tanto quanto possível plausíveis – no que respeita à esfera das relações pessoais, das quais Galileu fala com parcimónia.” Com tradução de Bárbara Villalobos, este livro tem revisão científica de Carlos Fiolhais.

Galileu viera de Pisa onde foi leitor. Em Pádua onde chegou em 1592 com 28 anos, era já um homem com muita fama tendo sido escolhido para a cátedra de Matemática. A sua aula inaugural foi um sucesso e ao longo dos 18 anos na Universidade de Pádua, as suas aulas vão ser seguidas por alunos juristas e de outras disciplinas, impressionados pelo seu saber e pela capacidade de manter a atenção e o interesse. O ordenado era reduzido e Galileu precisava consolidar prestígio e reconhecimento, pois precisava de ganhar dinheiro para fazer face às dívidas contraídas pela família com o dote da sua irmã mais velha.

Galileu viveu numa época em que fervilhava o pensamento novo, o espírito de descoberta e da procura de respostas a fenómenos ainda não explicados. A teoria de Ptolomeu de a Terra ser o centro do Universo tinha começado a ser posta em causa cinquenta anos antes pela teoria heliocêntrica de Copérnico que antevira a rotação da Terra e por outros homens da ciência como Kepler, mas estas ideias circulavam através da troca de correspondência, ainda sem serem publicadas ou divulgadas abertamente, pois punham em causa a doutrina da Igreja. Através do Tribunal do Santo Ofício, a Igreja exercia o seu poder pelo terror e pela influência que tinha sobre a chusma ignorante. Giordano Bruno tinha sido queimado vivo e o amigo frei Tommaso Campanella foi preso por heresia e só conseguiu escapar à morte porque se fez passar por louco. Galileu apaixonado pela geometria, pela mecânica, pela observação das marés e pela astronomia, observa, partilha ideias, questiona, constrói instrumentos como o “compasso geométrico e militar” e mais tarde o “cannocchiale” que vai aperfeiçoar cada vez mais com ajuda dos vidreiros venezianos, e lhe vai permitir observar a Lua, as estrelas, a Via Láctea, Saturno e os seus satélites.

Num ambiente de rivalidade entre o doge da república veneziana, o papado de Roma e o ducado da Toscana, Galileu é denunciado ao Santo Ofício porque “em vez de santificar a fé, se dedica à libertinagem e à fornicação, e acrescente-se que pratica horóscopos e exercita a arte da divinação.” (pág. 160). No entanto, devido à intervenção de Venier, reitor da Universidade de Pádua, não foi dado seguimento para Roma à denúncia feita pelo amanuense de Galileu. O destaque que Galileu dá aos Médici e ao príncipe Cosme, ou seja, a Florença, através dos louvores e da dedicatória sobre as “Estrelas Mediceias” gera um afastamento de alguns dos seus grandes amigos e companheiros, que lamentam a ingratidão demonstrada por Galileu quando dedica a publicação desta tão importante descoberta a Florença e se esquece de Pádua e do doge de Veneza que sempre lhe deram todo o apoio ao longo daqueles 18 anos.

Foram anos de trabalho aturado na preparação das suas aulas, de acompanhamento dos seus alunos, de descobertas e teorização, de grandes amizades com Sagredo e Venier, de cumplicidades, de mulheres, de afamados vinhos italianos que terminaram repentinamente. Foi também em Pádua que teve duas filhas e um filho do seu relacionamento com uma jovem que conhecera em Veneza e com a qual nunca casou. Galileu prepara a sua despedida de Pádua, a que nunca mais voltará, regressando à sua Toscana natal.

Este livro é só sobre “os dezoito melhores anos” dos 77 anos de vida de Galileu Galilei, conhecido pela defesa da teoria heliocêntrica até ao fim dos seus dias, nunca se retratando como a Inquisição queria.

16 de Julho de 2023

 

Diário de um Médico no Combate à Pandemia, Gustavo Carona

17.07.23, Almerinda

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Diário de um Médico no Combate à Pandemia, Gustavo Carona, 2021

Passados que são 3 anos que nos vimos confrontados com uma pandemia terrível, achei interessante ler este livro da autoria de um jovem médico que ficámos a conhecer da televisão e da rádio e cujo discurso saía um pouco do registo rotineiro. O livro tem um subtítulo – A missão mais difícil da minha vida – que atesta bem a gravidade do período que vivemos enquanto não havia medicamentos nem vacina, embora este médico intensivista revele na introdução que antes da pandemia já tinha feito 13 missões humanitárias em países onde ninguém quer ir, tratados como “esgotos da humanidade” (pág. 50), tal é a adversidade da vida daqueles povos.

O livro tem dois tempos. O primeiro tem a ver com o período da 1ª vaga, 2º e 3º vagas e é um diário, como tantas pessoas fizeram nessa altura sobretudo no período em que estiveram confinadas, mas este é o diário de um médico a trabalhar em UCI, ou seja, alguém que esteve bem no olho do furacão; e depois um segundo tempo escrito no primeiro trimestre de 2021, sendo uma reflexão sobre os textos escritos ao longo da pandemia.

Gosto de ler estes livros-testemunho, que nos põem em relação com situações muito específicas e que não correspondem ao comum das nossas vidas “normais” ou “padrão”, o que quer que isso seja! Neste caso, um jovem médico que totalmente se revela, expondo os seus sentimentos, os seus medos, as suas dores espirituais e físicas. Forte e frágil, crítico e abnegado, consegue com o seu exemplo dar-nos um retrato muito fiel da dureza e muitas vezes da solidão e incompreensão de quantos aguentaram o Serviço Nacional de Saúde, como a única âncora a que nos podíamos agarrar num período de incerteza, medo, confusão e cansaço extremos.

O livro começa justamente com a intervenção que Gustavo Carona fez no dia 26 de Janeiro de 2020 numa sessão no palácio de Belém, no âmbito do Grupo de Reflexão sobre o Futuro de Portugal, quatro dias antes de a OMS ter declarado “o surto pelo coronavírus uma emergência de saúde pública de preocupação internacional, o mais alto nível de alarme”. Na sua intervenção de quatro minutos, frente a frente com o presidente da República, com o título “ A minha visão da saúde em Portugal”, referia a sua profissão como aquela “onde há mais burnout” (pág. 27) e referia “A perversão dos privados. Onde se deixa de ser doente e se passa a ser cliente.” (pág. 28). Poucos dias depois, a OMS anunciava que a doença causada pelo SARS-CoV2 seria designada por covid-19. Gustavo Carona, médico intensivista num hospital público do Norte, onde a pandemia teve um grande impacto logo na fase inicial da doença, estava longe de imaginar como os meses que se iam seguir iriam comprovar com toda a justeza aquilo que já se sentia entre os profissionais do SNS.

Ao lermos este diário relembramos o que foram aqueles meses, o que sabíamos através da comunicação social, como estava a evoluir a pandemia no nosso país e lá fora, quando ficámos todos vulneráveis a um vírus, que inicialmente desvalorizámos porque achávamos que era uma coisa lá longe na China, que não iria cá chegar. Na sua reflexão crítica sobre um ano de pandemia, Gustavo Carona escreve “As pessoas esquecem-se rápido” (pág. 268) e é bem verdade. Mas as fronteiras fecharam, as máscaras e o gel que inicialmente foram um negócio rapidamente passaram a ser rotinas, as charlatanices naturalistas e os falsos profetas pulularam, os negacionistas e os relativistas abundaram nas redes sociais e, ao mesmo tempo que se investia na ciência para a descoberta de um tratamento e uma vacina, nunca como então a ciência foi posta em causa. Sendo ele um de muitos e muitas que no SNS fizeram os impossíveis, a estranheza que era chegar ao hospital sem ninguém nas urgências, porque tudo estava focado no combate à covid, leva-o ao longo do livro a afligir-se pelas outras intervenções médicas que se adiaram, pelas cirurgias que não se fizeram e por todas as outras patologias que se “esqueceram”, ao mesmo tempo que pensava no desemprego, na saúde mental, e naqueles outros tantos países onde fizera missões humanitárias e que estavam completamente desprotegidos.).

Ao mesmo tempo que relata casos que o marcaram para a vida nas suas missões no Sudão do Sul, no Iémen e noutros países, transmite-nos o que foi esta sua experiência em Portugal, no hospital, nos primeiros contactos com doentes covid, a primeira pessoa que teve alta na sua UCI, a ternura de uma colega enfermeira a falar com uma doente de 21 anos, os telefonemas para os familiares com boas ou más notícias, as videochamadas – “As primeiras de que me lembro sabiam a Euromilhões, porque correspondiam ao ponto em que o doente já estava melhor e capaz de interagir em frente ao telefone e comunicar com o seu familiar.” (pág. 77) – os números com que éramos diariamente bombardeados em contraponto às caras, aos nomes e às histórias de vida dos doentes que trataram. Ao longo do livro, Gustavo usa repetidamente o adjectivo “bonito”, para falar do SNS, do espírito de equipa, da abnegação dos colegas que puseram os outros à frente de si e das suas famílias, dos gestos de gratidão que receberam … Quero aqui lembrar uma entrada do diário de Novembro de 2020, com o título “Ricardo Quaresma”, em que lhe agradece por ter usado tão sabiamente a sua posição de grande desportista para ajudar o esforço que o SNS e os seus profissionais estavam a usar no combate à pandemia. E com o passar do tempo veio o cansaço das pessoas, o baixar a guarda, a 2ª vaga, a primeira pessoa vacinada e a extraordinária experiência da vacinação em massa e a terrível 3ª vaga que pôs Portugal no topo do ranking dos piores.

Quem não se lembra da desumanidade que foi a morte de George Floyd? Ou o desastre imenso no porto de Beirute no Líbano, em Agosto de 2020 e o espectáculo da notícia, com consequências dramáticas para um país a necessitar de uma ajuda gigantesca. Mas passada a notícia e decorridos alguns dias, não mais se irá falar disso, porque já não é espectacular! Esta reflexão percorre todo o livro, feito por alguém que precisou de parar, de pedir ajuda psicológica, mesmo confessando que o fez tardiamente porque tinha vergonha, que sofreu burnout, dores físicas intensas que só passavam quando deitado…

Um livro em que o autor tem a humildade de confessar a sua ignorância e arrogância em certos momentos, mas em que se descobre um ser humano muito bonito, com uma dedicação inexcedível aos outros e uma paixão pela sua profissão e pelo SNS.

Longa vida, com saúde para Gustavo Carona.

6 de Julho de 2023