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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Como um Marinheiro eu Partirei Uma Viagem com Jacques Brel, Nuno Costa Santos

25.06.23, Almerinda

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“Como um Marinheiro eu Partirei – Uma Viagem com Jacques Brel”, Nuno Costa Santos, 2023

Uma verdadeira revelação este livro. Chegada à Horta, na ilha do Faial, a caminho da marina, encontrei na montra da loja que fica ao lado do Café Sport Peter este livro, acabado de ser publicado. Não só porque era o primeiro dia de um passeio que iria incluir cinco ilhas do arquipélago dos Açores, mas porque sou da geração que ouviu e conhecia muitas das canções de Jacques Brel, aquele livro era irresistível. Comecei a lê-lo logo no primeiro dia da viagem e terminei-o dias depois já na ilha das Flores e com a intenção de o reler no continente a ouvir os poemas de Brel com alguns versos traduzidos ao longo da narrativa.

Há uma grande ternura na escrita desta história de um homem com um talento gigante, que um dia decidiu cortar radicalmente com uma vida pública em que os holofotes e a fama estavam no auge. Tal como uma relação que termina e em que as pessoas se afastam, a sua relação de amor com o público terminou, tendo o palco e os aplausos sido substituídos pelo mar. Brel foi “um homem de instintos e decisões inequívocas” (pág.33), alguém que não aceitava sentimentos pela metade, que “viveu do modo que quis, como quis, com quem quis.” (pág.143). Uma personagem complexa, impossível de ser caracterizada ou catalogada.

Esta “viagem com Jacques Brel”, como surge no título do livro de Nuno Costa Santos, é uma biografia de Brel, em que as vidas do biografado e do biógrafo se entrelaçam, se cruzam, tanto mais que “o ímpeto da comparação é inevitável” (pág.25). O narrador, logo no início da narrativa mostra a sua intenção de querer partir como um marinheiro, acompanhar Brel na sua viagem por mar até às ilhas Marquesas, onde se encontra sepultado Paul Gauguin. Estabelece diálogos e semelhanças com o poeta, fala das suas mágoas por ser um pai distante e ausente, mostra o desconforto quando vivendo no continente se sentia como um emigrante.

A estrutura desta “viagem” segue um roteiro com capítulos curtos em que as vidas de Brel e do narrador vão surgindo. Os títulos dos capítulos são como que o guião dessa viagem com algumas personagens decisivas. Sérgio Paixão, açoriano e autor do blogue “O Canto de Brel” é decisivo na construção desta biografia, pelo profundo conhecimento da obra de Brel e da passagem do poeta pela ilha do Faial no ano de 1974. De entre tantas mulheres e homens que passaram pela vida de Brel, uma referência especial a Jojo, o maior amigo e confidente de Brel, “o homem da sua vida”(pág. 93) e Delphine, a prostituta que “desconhecia que Jacques era o artista que actuava para plateias cheias de fãs à procura nas suas canções de um aconchego para as suas mazelas sentimentais.” (pág.62). O dr. Decq Mota, uma das amizades desinteressadas mas verdadeiras, que o tratou no curto período em que Brel passou pela ilha. Dinarte Branco, o actor que aceitou sem hesitação o convite para fazer o papel de Brel numa apresentação no Teatro Micaelense, o pescador Genuíno Madruga e o mestre na arte de scrimshaw Othan Rosa da Silveira.

O último capítulo “Estrelas Inacessíveis” é uma reflexão sobre o valor da amizade. Aquelas amizades que ocorreram num período tão curto da vida de Brel nos poucos dias em que ele esteve na ilha do Faial, foram momentos, acontecimentos, não planeados, desinteressados, afinal o que de melhor há num mundo tantas vezes dominado pela superficialidade das relações movidas por interesses não genuínos.

Um livro maravilhoso que irei sempre associar a Brel, à energia das suas canções e à maravilhosa viagem que fiz ao arquipélago açoriano. Depois de ter visitado a ilha do Faial e a região onde ocorreu a erupção do vulcão dos Capelinhos, torna-se inesquecível o diálogo imaginário entre os Capelinhos e Brel, dois vulcões em repouso.

24 de Junho de 2023

 

O Hóspede de Job, José Cardoso Pires

08.06.23, Almerinda

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O Hóspede de Job”, José Cardoso Pires, 1963

 

Quando em 2022 li “Integrado Marginal” de Bruno Vieira Amaral, uma completa e excelente biografia sobre José Cardoso Pires, senti necessidade de ler ou reler alguns livros deste autor. Na altura, soube que “O Hóspede de Job” dedicado à memória do irmão “Nheca” que morreu durante o serviço militar em 1953, só em 1963 teve a sua edição final, embora tenha começado a ser escrito dez anos antes. O livro foi bem acolhido pela crítica, tendo em 1964 ganho o Prémio Camilo Castelo Branco.

Numa clara crítica à NATO e aos senhores da guerra, ao serviço militar que precisa dos jovens camponeses, operários e trabalhadores para sobreviver, o livro saiu no tempo da guerra colonial e das lutas estudantis que antecederam a revolução de Abril. “O Hóspede de Job” é, nas palavras de José Cardoso Pires, escritas no posfácio de Novembro de 1963, “uma história de proveito e exemplo – um romance, no sentido tradicional do termo, destinado unicamente a ilustrar uma legenda, uma moral ou um clima humano, para lá de qualquer imediatismo de tempo e de lugar histórico.”

É o tempo da fome e da repressão no Alentejo. O trabalho é mal pago e disputado pelos “ranchos de fora” que já partiram mal acabaram as ceifas “ os gaibéus e os ratinhos, em direcção ao norte, outros, os algarvios, em direcção ao sul. E todos eles insultados, à despedida, pelos olhares que os alentejanos lhes deitavam” (pág. 24). Para a GNR, que é chamada sempre que há revolta, só há uma conclusão dita à boca pequena. “Temos política”. “Na véspera, as mulheres tinham marchado sobre a Vila e, todas em coro, apresentaram-se na Câmara. Pediam pão para casa, trabalho para os maridos.” (pág. 25).

Os sonhos de uma vida melhor que os livrem da miséria e da doença podem estar em Lisboa em cima de um andaime, ou nas fábricas do Barreiro com as suas chaminés, ou na venda de um pedaço de ferro de uma granada que já tenha explodido. Velhos, crianças, velhas, jovens, homens, mulheres todos participam nesta luta pela sobrevivência, vigiados pela guarda sempre que os direitos dos senhores da terra são questionados. Para o capitão americano que coordena os exercícios militares “Este pequeno país é uma verdadeira praia a todo o comprimento, como podes verificar por um bom mapa. Basta que te diga que, de norte a sul, são mais de quinhentas milhas de costa e de areia fina como não conheço outra que se lhe compare, nem sequer na Itália. A vida é barata e tranquila, e os portugueses, embora tristes, são acolhedores.” (pág. 169). Assim descreve ele este país, na carta que escreve para a mulher, no Michigan. Mas o sonho das praias irresistíveis pode ficar toldado por duas simples palavras numa parede na estrada ou mesmo do hotel: “Go home!”

“O Hóspede de Job” permite-nos, através de uma linguagem rigorosa e clara, acompanhar diferentes personagens que criam um ambiente em tudo contrastante com o país das praias ininterruptas a que se referia o oficial americano da barbicha.

 

8 de Junho de 2023

 

 

As Mulheres do meu País (I)

07.06.23, Almerinda

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Hoje e ao longo dos próximos 15 meses vou iniciar uma viagem incrível com Maria Lamas.

O jornal "Público" teve a brilhante ideia de publicar "As Mulheres do meu País", uma obra revolucionária cujo primeiro fascículo saiu há precisamente 75 anos, a que se seguiram os restantes catorze fascículos. 

"De bloco de notas e máquina fotográfica, Maria Lamas percorreu o país de Norte a Sul durante três anos. Ouviu as mulheres e fotografou-as." A disciplina na recolha de dados e na escrita é explicada desta forma pela neta de Maria Lamas: "A minha avó saía de Lisboa com dinheiro para quinze dias, papel, lápis e uma máquina Kodak em direcção aos diferentes pontos do país onde, como jornalista, interrogava, observava, fotografava, não só as mulheres que eram o seu objecto de estudo como as suas famílias, anotando sempre os elementos de geografia física e humana que as enquadravam. Ao fim desses quinze dias, regressava a Lisboa, passava todos os seus apontamentos a limpo, entregava o trabalho na tipografia onde se fazia a primeira impressão e revia as provas desse fascículo."

Vai ser uma viagem emocionante, feita por uma mulher extraordinária, que ousou no seu tempo opôr-se não só à ditadura, mas também a uma visão deturpada e frágil de mulher. Maria Lamas foi o contrário de tudo isso.