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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

À descoberta dos Açores (III)

24.05.23, Almerinda

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O sétimo dia nos Açores foi o da ida em semi-rígido ao Corvo, mas antes de embarcarmos fiz uma pequena volta na proximidade do hotel. Chovia um pouco. Flores, melros, outras aves, um gato debaixo da grande árvore junto ao hotel, piscinas naturais. O Francisco e outros trabalhadores da empresa que gere os semi-rígidos levaram-nos até ao cais de embarque. Devidamente equipados com os coletes salva-vidas, lá nos acomodámos nas duas embarcações. Primeiro, a volta junto à costa norte para desfrutarmos da beleza das cascatas, das grutas, da água de um azul deslumbrante e depois cerca de trinta minutos até ao Corvo, numa viagem bastante serena.

O Corvo, a ilha negra, é a mais pequena ilha do arquipélago e tem cerca de 400 habitantes. Mal tínhamos chegado à ilha, surge no ar e passa sobre nós um bimotor da SATA que aterra no aeródromo, que tem apenas 870 metros de comprimento. Para além do musgão que já tínhamos visto nas Flores e que tem a característica de absorver a humidade, o chorão é invasivo e a azurina vidali é endémica da ilha e não pode ser colhida. Lembrei-me logo da minha amiga Manuela Rosa que, se ali estivesse, logo a teria desenhado e aguarelado no seu caderno de desenhos. A ilha é muito ventosa e tem logo à chegada três moinhos de vento, que têm uma fechadura especial em madeira, um dos ex libris da ilha. Para mim, esta foi a ilha dos gatos. Avistámos logo um que miava enquanto caminhava sobre um muro, tentando caçar algum rato sem sucesso. Mas logo que nos viu sentados no restaurante para o almoço, não mais nos deixou enquanto não lhe déssemos algum petisco. Muito fotografado e acarinhado, demos-lhe o nome de Vasco. Mais tarde, enquanto corríamos a ilha, ainda avistámos outros gatos e cães. Digna de registo a visita à Igreja da Senhora dos Milagres que deve o seu nome a um episódio em que os corvinos rechaçaram os piratas, o qual aparece num vitral no interior da igreja e num painel de azulejos da autoria de José Ruy, numa encosta virada ao mar. Vento, muito vento – tal como víramos nas Flores, muitos telhados das casas com pedras para impedir que as telhas voem – e nevoeiro. Enquanto o primeiro grupo não conseguiu ver o caldeirão do Corvo, o nosso grupo teve a sorte de o ver por alguns momentos, sempre que o nevoeiro era empurrado pelo vento. Antes de regressarmos aos barcos que nos levariam de volta à ilha das Flores, ainda passámos a correr por uma casa antiga, infelizmente em ruínas, pela Casa do Tempo que integra o Ecomuseu do Corvo e visitámos a oficina de um artesão especializado em fazer as típicas fechaduras em madeira do Corvo. O regresso no semi-rígido já não foi tão suave como a viagem da manhã e, apesar da concentração de aves nalguns momentos da viagem que podia augurar a sorte de observarmos cetáceos, a verdade é que as baleias não se deixaram ver.

A despedida não podia ser melhor. Depois do jantar tivemos um grupo folclórico das Flores que nos encantou e nos tirou do sofá, convidando-nos a dançar com eles. Uma simpatia.

O último dia não teve história. Foi o dia da despedida das ilhas. O dia do último olhar pelas belezas naturais, sempre que levantávamos voo ou aterrávamos, porque foi um dia inteiro entre aeroportos, controlos de segurança e lembranças de última hora. Das Flores à Horta. Da Horta a Ponta Delgada, com a imensa sorte para os que estavam sentados do lado do avião que passou bem perto do Piquinho e que conseguiram ainda tirar uma fotografia. Grata ao Zé Capelo por o ter conseguido. De Ponta Delgada até Lisboa, o nosso destino final, antes do transfere de autocarro até Amora.

Releio este meu texto e quase me parece uma acta! Ui, tantas actas que tenho feito ao longo da minha vida. Mas não, é somente um registo para de vez em quando relembrar aqueles dias, talvez olhando ao mesmo tempo as fotografias que tirei. Sentimos sempre vontade de ter auxiliares de memória que nos avivem estes momentos maravilhosos de uma viagem incrível que anseia por um regresso, mas com mais tempo em cada ilha.

Seguir-se-á uma releitura de “Como um Marinheiro eu Partirei”, mas desta vez acompanhado das canções de Jacques Brel.

Senti necessidade de ir ao encontro de João de Melo e li a sua “Crónica do Princípio e da Água” em “Um Olhar Português” editado em 1991, nos 20 anos do Círculo de Leitores e com excelentes fotografias de Jorge Barros.

Quando fizemos a travessia entre ilhas, pensei muitas vezes no “Mau Tempo no Canal” de Vitorino Nemésio que nunca li. No entanto, mau tempo foi coisa que nunca tivemos.

Quando passámos por Porto Pim na Horta, lembrei-me de um livro de Antonio Tabucchi  - “A Mulher de Porto Pim” - que uma amiga me aconselhou.

A descobrir “As Ilhas Desconhecidas” de Raul Brandão, considerado um dos mais belos livros de viagem da literatura portuguesa.

E não esqueci Natália Correia, essa escritora vulcânica como a ilha de S. Miguel onde nasceu há 100 anos.

Este texto reflecte ou tenta reflectir uma ínfima parte de tudo o que vivi nestes dias de Maio de 2023. Muitíssimo não cabe nestas palavras. Se todos os 48 turistas que como eu viveram em conjunto estes oito dias, se dessem a este exercício de fazer um registo escrito da sua memória desta viagem, teríamos 48 textos todos diferentes. Alguém falaria do cartão de cidadão que se meteu numa fenda do balcão do check-in e que obrigou à remoção do balcão num determinado aeroporto. Outro, referiria o medo que teve que a dentadura saltasse com os saltos do semi-rígido na viagem de regresso às Flores. Outro, falaria da vista do arco-íris quando se aproximou da janela do quarto para olhar para a piscina. Outro ainda, queixar-se-ia que o último hotel era muito inferior aos primeiros. Outro, queixar-se-ia que às vezes lhe apetecia ficar de manhã mais um bocadinho na cama… E ainda alguém haveria de dizer que ficou muito feliz por lhe terem feito a surpresa de lhe cantarem os parabéns no seu dia de anos. Já para não falar de quem se constipou e de quem trouxe covid da viagem!

Almerinda Bento

10 a 17 de Maio de 2023

À descoberta dos Açores (II)

23.05.23, Almerinda

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O quarto dia para descobrir a ilha do Pico foi maravilhoso. Tinha a ideia de que devia ser uma ilha pequena, redonda, dominada pelo vulcão e, afinal, é a segunda ilha maior depois de S. Miguel. Chamam-lhe a ilha cinzenta, certamente devido à predominância do basalto. Começámos pela vinha típica desta ilha, classificada património mundial da UNESCO, plantada em currais com 3 a 4 pés de vinha, passando por um moinho de vento típico, de origem flamenga, pintado de vermelho, a cor do dragoeiro muito usado nas casas e nos portões das vinhas. O que mais me impressionou nesta ilha é a força e tenacidade do trabalho árduo dos habitantes que ao longo de séculos conseguiram sobreviver num território de basalto, trazendo terra do Faial em troca da vinha que produziam. Andámos sempre ao longo da ilha no sopé do vulcão, vimos piscinas naturais, entrámos na igreja de S. Mateus, passámos pelo monumento ao pastor e entrámos numa casa de artesanato também conhecida pelas rendas e bordados tradicionais, sendo alguns dos trabalhos de Joana Vasconcelos encomendados às artesãs locais. Tal como no Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, fiquei impressionada com o Museu dos Baleeiros que fica nas Lajes do Pico. A caça à baleia que deixou de ser autorizada em meados dos anos 80, em resultado da adesão de Portugal à CEE/UE foi-nos mostrada num vídeo, logo no início da visita. Actividade duríssima e muito perigosa, teve rostos de muitos homens que nos surgem em determinada altura nas paredes do museu. Impressionante também a beleza da arte de scrimshaw gravada nos gigantescos ossos das baleias. Este museu tem ainda uma simpática biblioteca e vários exemplares de artefactos da vida rural e marítima dos habitantes da ilha do Pico. Seguimos para norte em direcção à Lagoa do Capitão onde as vacas bem nutridas se passeavam livremente e mais pareciam saídas de uma tablete de chocolate Milka. Até patos acasalando vimos naquela magnífica lagoa. A parte final da viagem pelo Pico antes do jantar foi ao longo da costa norte, com paragem no Cachorro, onde deparámos com um gato amarelo espojado no chão para lhe fazermos festas. Aquela zona é linda e aí vi pela primeira vez já algumas hortênsias bem grandes e de várias cores. Ainda se fez uma paragem para uma prova de licores e aguardentes do Pico. Já tenho prenda para o Vítor! Por sugestão da minha amiga Joana que tem casa em Santa Luzia, fizemos uma ida ao Cella Bar, aquele que dizem ser o mais bonito bar da Europa. Com paredes de madeira, tem uma forma que quase nos faz sentir estarmos dentro de uma baleia. Depois do Pico nunca mais ficamos iguais. A nossa guia Eveline, mulher do Pico, emigrante durante vários anos, é bem o símbolo do povo valente que moldou o basalto e a natureza para conseguir viver na ilha. Ao longo do dia, ilustrou muito do que vimos com referências às suas experiências pessoais enquanto criança e jovem. Uma mulher de grande fibra.

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Despedi-me já com saudades do Pico, mas agora segue-se a ilha das Flores e para chegar lá, tivemos de fazer uma escala de muitas horas no aeroporto da Terceira. A maior parte dos e das viajantes meteram-se a caminho, saindo do aeroporto para uma curta volta pela Terceira. 

O hotel Ocidental onde ficámos nas Flores fica muito próximo do aeroporto. Embora nem sempre seja possível ver o Corvo a partir das Flores, a verdade é que conseguimos avistá-lo de avião, quando nos aproximámos para aterrar em Santa Cruz das Flores. A vista do meu quarto, logo pela manhã, com o sol espelhado sobre o mar, é incrível.

“Meus Amores!” é assim que a Carla, a nossa guia permanente ao longo de toda a viagem, se nos dirige, sempre que nos quer fazer um aviso ou dar uma recomendação. A partir de agora, vamos passar a ouvir: “Minha gente!”, mas com sotaque da Terceira. O Francisco, nosso guia nas Flores e no Corvo é florentino, mas, como ele me disse, passou muito tempo na Terceira. É super bem-disposto, brincalhão, enérgico e excelente profissional, o que vai transparecer nos dias em que vamos estar nas Flores e no Corvo. A ilha das Flores que recebeu esse nome devido às muitas flores que a cobrem, nomeadamente as cubres de cor amarela, flor endémica da ilha, é, no entanto, chamada de ilha rosa devido às azáleas que vimos junto à estrada. Nesta altura, encontrámos ao longo da estrada muitos bafos de boi, de cor amarela, mas o verde, os verdes são dominantes: fetos, araucárias, criptomérias ou cedro japonês, a floresta laurissilva que já tínhamos visto na Madeira… É verdade que não conseguimos ver as lagoas, porque o nevoeiro era intenso, mas mesmo com aquela névoa a ilha é extraordinária. Os miradouros da Ponta Ruiva e de Ponta Delgada com vistas para as respectivas fajãs foram motivo para inúmeras fotografias. Encontrámos um cãozinho preto que só queria mimos e uma senhora que vivia sozinha a tratar da horta. No almoço na Fajã Grande tivemos a grande surpresa gastronómica. Fartos de ouvir que o arroz doce é muito popular nas ilhas, a verdade é que até àquela altura tínhamos sempre tido salada de frutas por sobremesa e eis senão quando, ao esperarmos por mais uma taça de salada de frutas nos apareceu uma tacinha de arroz doce. Foi uma festa! Seguimos até à ponta de onde se avista o ilhéu de Monchique, a parte mais ocidental da Europa e na Ponta da Fajã deslumbrámo-nos com a cascata do Poço do Bacalhau. De seguida, a partir do Miradouro do Portal avistámos a Fajãzinha, motivo, quem sabe mais tarde, para uma aguarela… Na vila das Lajes das Flores entrámos na igreja de Nossa Senhora do Rosário. No exterior, um monumento de homenagem aos jovens da ilha das Flores que morreram na guerra colonial. A repetição de vários apelidos certamente significa a triste perda de vidas de pessoas da mesma família.

 

À descoberta dos Açores (I)

22.05.23, Almerinda

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“De qual das ilhas gostaste mais?” é uma pergunta clássica quando se vem dos Açores e quase tão clássica como “dos livros que leste este ano, qual o melhor?” Geralmente ou não se responde, ou as adversativas interpõem-se e tornam a resposta uma amálgama vaga e imprecisa.

É impossível hierarquizar, porque é tudo muito belo, diverso e esmagador. E tal como nos livros, há aquela passagem, ou aquela personagem especiais que ficam na memória e que tornam o livro inesquecível. Eu já tinha feito uma viagem a S. Miguel, num fim-de-semana de vendaval com uma borrasca centrada em Povoação que transformou as ruas de Ponta Delgada em rios, que deitou ao chão as figuras do presépio nas Furnas, que barrou com troncos de árvores as estradas e não deixou visitar as famosas lagoas, mas que ainda me deixou ir a Rabo de Peixe. E alguns anos mais tarde, num 8 de Março, fui à Terceira, a ilha esmeralda, que corri ao longo de toda a costa num carro conduzido por uma açoriana “fitipaldi” e cuja impressão final foi de espanto pela beleza da ilha, pelos “impérios”, pelos Biscoitos e pelo melhor peixe que já comi na minha vida.

Desta vez, foram 5 ilhas em 7 dias. Uma verdadeira loucura, “um aperitivo” para mais tarde voltar com mais vagar, como disse a Alda, a mentora e organizadora destes dias inesquecíveis.

Começámos pelo Faial, aquela a que chamam a ilha azul porque nesta ilha as hortênsias, que neste momento ainda não estão floridas, têm uma cor azul intensa. Ficámos hospedados no hotel Horta, não muito longe do porto e do nosso quarto avista-se o Pico. Logo que se chega ao aeroporto, o Pico impõe-se-nos de imediato e iremos habituar-nos que é sempre diferente, visto as nuvens que o rodeiam constantemente mudarem de posição cobrindo-o ou não parcialmente, experiência semelhante à que tive em 2013 a partir do meu quarto com vista para o monte Gilé em Moçambique. E porque valia a pena aproveitar o resto do dia, fomos a pé do hotel até à marina da Horta para ver a parede com as inúmeras pinturas dos velejadores que chegam e de seguida entrámos no café Sport, conhecido como Peter´s, completamente cheio e sem nenhuma mesa livre. Para além do famoso gin que aí é servido, fui à loja contígua onde descobri uma pérola que foi a cereja no cimo desta viagem pelas ilhas: o livro de Nuno Costa Santos “Como um Marinheiro eu partirei – uma viagem com Jacques Brel”, cuja leitura terminei já nas Flores, no dia 15 de Maio. Ainda passámos por um jardim com dragoeiros seculares e árvores muito altas. A guia desta ilha recordou-nos que o primeiro presidente da República, Manuel de Arriaga Brum da Silveira, era natural da cidade da Horta.

O dia seguinte foi para explorar a ilha. O tempo esteve sempre excelente e permitiu-nos ter uma belíssima visibilidade para desfrutar do verde, do azul do mar, da visão do Pico, da Caldeira no centro da ilha vulcânica, das piscinas naturais do Varadouro e também da encosta cinzenta à medida que nos aproximamos da ponta dos Capelinhos, o tal vulcão que esteve activo durante treze meses, começando a sua actividade em 1957 e terminando em 1958. Foi muito interessante e competente a visita no Centro Interpretativo do Vulcão dos Capelinhos. Mais de metade da população foi então obrigada a emigrar, tendo até alguns habitantes de outras ilhas aproveitado a facilidade dada aos faialenses para tentar melhorar a sua situação, sobretudo em terras norte americanas. Como iria sentir nas restantes ilhas, há uma calma imensa, tudo está muito limpo, vêem-se poucas pessoas nas ruas e raramente se viam crianças. A nossa guia no Faial – Ilídia – explicou que as crianças estavam nas escolas, corroborando a minha opinião do tempo excessivo que as crianças portuguesas passam dentro das escolas. Vaquinhas sim, isso aos montes. Aliás, parece que há 3 vacas por habitante. Ao final do dia, depois de termos ido ao mercado da Horta para comprar uns souvenirs e umas bananinhas, que ainda precisam de amadurecer, deparei-me com um cartaz do Bloco. Seguimos já com as malas na camioneta para o cais da Horta para seguir de barco para a Madalena no Pico, onde ficámos no hotel Caravelas.

O Pico ficou pois como o poiso seguinte, mas na manhã do terceiro dia da viagem metemo-nos no barco a caminho de S. Jorge, a ilha das fajãs, ou ilha castanha, de que tanto me fala a Elisabete. O que eu menos gostei neste dia foram as viagens de barco, sobretudo a de regresso ao Pico ao fim do dia, que me pareceu interminável. Quando se olha para o mapa, parece que a distância entre a Madalena e as Velas é pequena, mas a verdade é que pelo menos uma hora e meia foi o que levámos a fazer em cada uma das viagens. A manhã foi praticamente passada numa queijaria que faz os famosos queijos de 12 quilos de S. Jorge, produto obrigatório nas compras dos turistas aficionados pelo saboroso queijo. As encostas cobertas de vegetação da ilha, as pastagens com as vaquinhas, as falésias e arribas são deveras surpreendentes e as vistas para as fajãs inesquecíveis. Ricardo, o guia em S. Jorge, era um rapaz muito prestável e simpático, mas de todos os guias desta viagem, o menos experiente. Daí que eu própria tenha aproveitado menos de S. Jorge comparativamente com as restantes ilhas. Velas, Urzelina, fajã do Ouvidor, fajã dos Cubres foram algumas a que se consegue aceder através de estradas secundárias em que por vezes só passa um carro de cada vez. Terminámos o dia no parque natural das Sete Fontes, onde tive a oportunidade de ver uma família de treze patos a correr atrás da mãe pata, galos, ouvir as aves e o coaxar das rãs que nunca se deixaram ver. Depois de ver as fotografias feitas pela Isabel, percebi que apenas percorri uma parte deste parque natural e que muito ficou por descobrir. Talvez por me sentir cansada e cheia do almoço, ao jantar fiquei-me por um chá. Depois foi a viagem de barco de regresso ao Pico.

O País debaixo da minha pele, Memórias de Amor e Guerra, 2010

07.05.23, Almerinda

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O País debaixo da minha Pele, Gioconda Belli, 2010

Este livro de “memórias de amor e guerra” é um testemunho vibrante de uma mulher – desde a infância até ao ano 2000 – que muito cedo se emancipou, que conheceu “a alegria de abandonar o «eu» para abraçar o «nós»” e que escreveu “estas memórias em defesa dessa felicidade pela qual a vida e até a morte valem a pena”, como escreve na introdução ao livro. Apesar das vicissitudes, é um testemunho de esperança pois “O importante, percebo agora, não é ver cumpridos todos os sonhos, mas sim continuar, teimosamente, a sonhá-los.” (pág. 421).

Gioconda Belli foi activista da Frente Sandinista de Libertação da Nicarágua. Proveniente de uma família da burguesia nicaraguense, a sua família era, no entanto, opositora à ditadura de Somoza que vigorou entre 1934 e 1979. De personalidade forte e apaixonada, desde nova quis tornar-se independente o que a levou a casar-se muito jovem e a trabalhar. Mas, ao longo da vida percebeu que ser independente é uma realização difícil e, como nunca se acomodou, não temeu fazer cortes com o “sossego” e com as expectativas que a sociedade reserva para as mulheres. Apaixonada e rebelde, não temeu afrontar a família, o marido, os camaradas de luta, os amantes, a sociedade. Por isso se apaixonou perdidamente, escreveu poesia sem amarras, participou em acções de grande perigo, discordou de orientações políticas da FSLN sempre que achava que estavam erradas, questionou o machismo dentro da organização e ao mais alto nível da liderança e no seio de outros países que, advogando a libertação de homens e mulheres, as subalternizavam ou apagavam… Nos anos 70, a revolução e a poesia irromperam na sua vida em oposição à ditadura e a um casamento sem chama. “Tinha criado asas. Sentia-me capaz de voar sozinha.” (pág. 76) Muito sincera neste seu testemunho de vida, não deixa de referir a sua ingenuidade, os momentos de desalento, os sentimentos de culpa quando tem de fazer escolhas definitivas e dolorosas.

Como refere logo a abrir a Introdução “Duas coisas que não escolhi determinaram a minha vida: o país onde nasci e o sexo com que vim ao mundo”. A lupa de género com que analisa inúmeras situações da sua vida é extremamente interessante, tanto mais que ela viveu no período da guerrilha papéis que a puseram ao mais alto nível do perigo e da responsabilidade. Sendo poeta, intelectual e mulher, conseguiu ter uma posição privilegiada que lhe permitiu mover-se de forma insuspeita em certos meios. Mas, após a revolução e no interior da organização, aparecia apagada atrás do chefe, uma subalterna, uma funcionária, não poucas vezes perfeitamente consciente de que se deixava apagar e anular submetida à paixão pelo chefe.

A narrativa é-nos apresentada sem ordem cronológica em dois momentos da vida da autora. Na Nicarágua, no exílio no México e na Costa Rica ao longo dos anos 70 e 80, período em que milita na FSLN e a partir dos finais dos anos 80 e 90 quando, casada com um cidadão norte-americano, vive alternadamente nos EUA e na Nicarágua. Para nos permitir uma melhor compreensão da sua narrativa, Gioconda Belli apresenta uma breve cronologia da história da Nicarágua desde a chegada de Cristóvão Colombo ao território da América Central em 1502, o período da longa ditadura somozista, vitória da FSLN em 1979 até à sua derrota nas eleições de 1990 e a chegada de Violeta Chamorro ao poder. Território estratégico sempre debaixo da cobiça dos governos dos EUA, a Nicarágua é sujeita a uma ofensiva feroz do governo de Donald Reagan com manobras militares provocatórias e sanções económicas duríssimas que minaram uma revolução politicamente frágil e cheia de debilidades sociais, em que a pobreza, o analfabetismo e as necessidades básicas eram profundas. A felicidade colectiva dos primeiros momentos precisava de ver respondidas tarefas gigantescas. Mas a improvisação, a ingenuidade e impreparação dos guerrilheiros, também eles minados por divisões, não conseguiram lograr que a revolução sandinista resistisse por muito tempo. Gioconda Belli não deixa de referir a imensa solidariedade internacional de muitos intelectuais de todo o mundo à causa nicaraguense, quer durante a luta contra a ditadura, quer já no período da revolução vitoriosa e o extraordinário empenho militante e voluntário da juventude da Nicarágua nas acções de alfabetização e nas campanhas do café.  

Este livro apaixonante, traduzido por Rui Pires Cabral, chegou-me às mãos por oferta de uma amiga cuja sobrinha, através da venda deste livro, angariou fundos para ir fazer voluntariado numa escola para crianças desfavorecidas na Colômbia. Nunca tinha ouvido falar de Gioconda Belli; aliás, nunca tinha lido nenhum autor nicaraguense e só através deste livro fiquei a saber que Gioconda Belli tem recebido inúmeros prémios literários pela sua obra poética e pelos romances.

Estas memórias terminam no ano 2000, quando Gioconda Belli vivia entre o seu país amado, a Nicarágua, e os Estados Unidos da América, o país do seu último marido. Neste ano de 2023, Gioconda Belli vive actualmente em Espanha, tendo aceitado a oferta do presidente Gabriel Boric do Chile para se naturalizar chilena. Com efeito, ela e mais de trezentos cidadãos da Nicarágua têm sido perseguidos e perderam a nacionalidade ao longo dos últimos cinco anos, na sequência da repressão e silenciamento de todas as vozes dissidentes, por um governo dirigido por Daniel Ortega, antigo combatente e dirigente sandinista que como ela ajudaram a derrubar a ditadura de Somoza. As voltas que o mundo dá!

6 de Maio de 2023

Almerinda Bento