À descoberta dos Açores (III)
O sétimo dia nos Açores foi o da ida em semi-rígido ao Corvo, mas antes de embarcarmos fiz uma pequena volta na proximidade do hotel. Chovia um pouco. Flores, melros, outras aves, um gato debaixo da grande árvore junto ao hotel, piscinas naturais. O Francisco e outros trabalhadores da empresa que gere os semi-rígidos levaram-nos até ao cais de embarque. Devidamente equipados com os coletes salva-vidas, lá nos acomodámos nas duas embarcações. Primeiro, a volta junto à costa norte para desfrutarmos da beleza das cascatas, das grutas, da água de um azul deslumbrante e depois cerca de trinta minutos até ao Corvo, numa viagem bastante serena.
O Corvo, a ilha negra, é a mais pequena ilha do arquipélago e tem cerca de 400 habitantes. Mal tínhamos chegado à ilha, surge no ar e passa sobre nós um bimotor da SATA que aterra no aeródromo, que tem apenas 870 metros de comprimento. Para além do musgão que já tínhamos visto nas Flores e que tem a característica de absorver a humidade, o chorão é invasivo e a azurina vidali é endémica da ilha e não pode ser colhida. Lembrei-me logo da minha amiga Manuela Rosa que, se ali estivesse, logo a teria desenhado e aguarelado no seu caderno de desenhos. A ilha é muito ventosa e tem logo à chegada três moinhos de vento, que têm uma fechadura especial em madeira, um dos ex libris da ilha. Para mim, esta foi a ilha dos gatos. Avistámos logo um que miava enquanto caminhava sobre um muro, tentando caçar algum rato sem sucesso. Mas logo que nos viu sentados no restaurante para o almoço, não mais nos deixou enquanto não lhe déssemos algum petisco. Muito fotografado e acarinhado, demos-lhe o nome de Vasco. Mais tarde, enquanto corríamos a ilha, ainda avistámos outros gatos e cães. Digna de registo a visita à Igreja da Senhora dos Milagres que deve o seu nome a um episódio em que os corvinos rechaçaram os piratas, o qual aparece num vitral no interior da igreja e num painel de azulejos da autoria de José Ruy, numa encosta virada ao mar. Vento, muito vento – tal como víramos nas Flores, muitos telhados das casas com pedras para impedir que as telhas voem – e nevoeiro. Enquanto o primeiro grupo não conseguiu ver o caldeirão do Corvo, o nosso grupo teve a sorte de o ver por alguns momentos, sempre que o nevoeiro era empurrado pelo vento. Antes de regressarmos aos barcos que nos levariam de volta à ilha das Flores, ainda passámos a correr por uma casa antiga, infelizmente em ruínas, pela Casa do Tempo que integra o Ecomuseu do Corvo e visitámos a oficina de um artesão especializado em fazer as típicas fechaduras em madeira do Corvo. O regresso no semi-rígido já não foi tão suave como a viagem da manhã e, apesar da concentração de aves nalguns momentos da viagem que podia augurar a sorte de observarmos cetáceos, a verdade é que as baleias não se deixaram ver.
A despedida não podia ser melhor. Depois do jantar tivemos um grupo folclórico das Flores que nos encantou e nos tirou do sofá, convidando-nos a dançar com eles. Uma simpatia.
O último dia não teve história. Foi o dia da despedida das ilhas. O dia do último olhar pelas belezas naturais, sempre que levantávamos voo ou aterrávamos, porque foi um dia inteiro entre aeroportos, controlos de segurança e lembranças de última hora. Das Flores à Horta. Da Horta a Ponta Delgada, com a imensa sorte para os que estavam sentados do lado do avião que passou bem perto do Piquinho e que conseguiram ainda tirar uma fotografia. Grata ao Zé Capelo por o ter conseguido. De Ponta Delgada até Lisboa, o nosso destino final, antes do transfere de autocarro até Amora.
Releio este meu texto e quase me parece uma acta! Ui, tantas actas que tenho feito ao longo da minha vida. Mas não, é somente um registo para de vez em quando relembrar aqueles dias, talvez olhando ao mesmo tempo as fotografias que tirei. Sentimos sempre vontade de ter auxiliares de memória que nos avivem estes momentos maravilhosos de uma viagem incrível que anseia por um regresso, mas com mais tempo em cada ilha.
Seguir-se-á uma releitura de “Como um Marinheiro eu Partirei”, mas desta vez acompanhado das canções de Jacques Brel.
Senti necessidade de ir ao encontro de João de Melo e li a sua “Crónica do Princípio e da Água” em “Um Olhar Português” editado em 1991, nos 20 anos do Círculo de Leitores e com excelentes fotografias de Jorge Barros.
Quando fizemos a travessia entre ilhas, pensei muitas vezes no “Mau Tempo no Canal” de Vitorino Nemésio que nunca li. No entanto, mau tempo foi coisa que nunca tivemos.
Quando passámos por Porto Pim na Horta, lembrei-me de um livro de Antonio Tabucchi - “A Mulher de Porto Pim” - que uma amiga me aconselhou.
A descobrir “As Ilhas Desconhecidas” de Raul Brandão, considerado um dos mais belos livros de viagem da literatura portuguesa.
E não esqueci Natália Correia, essa escritora vulcânica como a ilha de S. Miguel onde nasceu há 100 anos.
Este texto reflecte ou tenta reflectir uma ínfima parte de tudo o que vivi nestes dias de Maio de 2023. Muitíssimo não cabe nestas palavras. Se todos os 48 turistas que como eu viveram em conjunto estes oito dias, se dessem a este exercício de fazer um registo escrito da sua memória desta viagem, teríamos 48 textos todos diferentes. Alguém falaria do cartão de cidadão que se meteu numa fenda do balcão do check-in e que obrigou à remoção do balcão num determinado aeroporto. Outro, referiria o medo que teve que a dentadura saltasse com os saltos do semi-rígido na viagem de regresso às Flores. Outro, falaria da vista do arco-íris quando se aproximou da janela do quarto para olhar para a piscina. Outro ainda, queixar-se-ia que o último hotel era muito inferior aos primeiros. Outro, queixar-se-ia que às vezes lhe apetecia ficar de manhã mais um bocadinho na cama… E ainda alguém haveria de dizer que ficou muito feliz por lhe terem feito a surpresa de lhe cantarem os parabéns no seu dia de anos. Já para não falar de quem se constipou e de quem trouxe covid da viagem!
Almerinda Bento
10 a 17 de Maio de 2023