A Hora do Lobo, César A. Afonso
A Hora do Lobo, César Afonso, 2019
A leitura deste livro resultou de um novo desafio que lancei este ano lectivo na Universidade Sénior do Seixal, de se criar um Círculo de Leitura com a periodicidade mensal, que permita divulgar livros, autores e falar sobre livros e leituras. Um espaço de partilha para quem gosta de ler. Olinda Barreira, uma das frequentadoras do Círculo sugeriu “A Hora do Lobo”, de César Afonso, seu conterrâneo, com quem teremos a possibilidade de conversar na sessão de final deste mês de Março.
Logo na nota que abre este livro, o autor, num regresso a Montesinho, num Natal de 2015, dirige-se aos leitores dizendo que decidiu escrever sobre as suas memórias de infância, num tempo em que a sua terra Natal ainda estava povoada de gente valente, com vidas difíceis, agora praticamente despovoada e desolada. É pois um livro de memórias, para que não caiam no esquecimento pessoas que o marcaram, pessoas simples mas cheias de carácter, pessoas por quem sente imensa gratidão porque o ajudaram a ser a pessoa que é hoje.
“Naquele tempo a sabedoria não se encontrava nos livros. Ela passava de boca em boca, contada aos serões da lareira, atrás do arado que esventrava a terra puxado por uma junta de vacas, na verdasca* que dominava o rebanho de gado, enfim, no sacho ao ombro que se transformava na única companhia das longas caminhadas pelas encostas e vales.
Aprendia-se a olhar o céu azul, a interpretar a forma e a cor das nuvens, a intensidade do sol, a forma e posição da lua, a sentir os ventos do norte a rasgar os cabelos, a ouvir o canto dos pássaros da alvorada ao crepúsculo, a distinguir o zumbido das vespas e das abelhas, a seguir o canto das zirras*, a descobrir o canto do cuco e da boubela*, o perfume das ervas e dos animais, a respirar o sabor da terra nas trovoadas de Junho, a reconhecer o cheiro da esteva e da giesta. Esta era a sabedoria da terra, um imenso despertar dos sentidos, a verdadeira forma de nos fazer existir nas múltiplas dimensões do corpo. Aquilo que nos tornava eternos enquanto a vida permanece.
Foi por essa essência que os nossos avós amaram aquelas montanhas e os fizeram acreditar que ali haveriam de chegar ao futuro. Foi por esse futuro que viram os seus filhos partir e lhes educaram os netos. Foi por esse futuro que ficaram à espera de que um dia regressassem para lhe devolver a esperança. É por esse futuro que escrevemos para que a memória dos que lutaram não se esfume nas planícies do tempo.” (pág. 80)
O livro é constituído por contos breves. São episódios em diferentes momentos da meninice de Afonso que, por algum motivo, se tornaram significativos. A criança que cedo se vê afastada dos pais por estes terem sido obrigados a emigrar para França, e que fica à guarda da avó Ludovina, uma mulher especial. As dores do afastamento da aldeia e da avó, quando termina a primária e vai para o ciclo preparatório em Vinhais. As saudades da liberdade do campo, dos animais, das noites da aldeia à volta da lareira, das conversas, das histórias assustadoras e hilariantes, As visitas da avó em dias de feira e, como mesmo distante, ela continuava a educá-lo e a ser uma referência, pois, para ele, “a avó era a mulher mais sábia que ele conhecia” (pág. 43). O descobrir na escola as diferenças no tratamento se se tratasse de crianças oriundas da vila ou da aldeia, se eram filhos de pobres ou de gente mais abastada. As primeiras leituras, a biblioteca itinerante da Gulbenkian. As brincadeiras. As más recordações de uma professora que só conseguia infundir medos das suas aulas de Português. Contudo, para ele, “a vida do ciclo foi uma experiência inesquecível” (pág. 40).
Também a revolução de Abril não deixou de ser referida neste livro de contos. Numa zona tão esquecida pelos diferentes poderes ao longo do tempo, as campanhas de dinamização cultural e desportiva que então ocorreram também em Trás-os-Montes mexeram profundamente com as pessoas e também com o jovem Afonso que pela primeira vez viu as paredes da terra pintadas com as siglas e os símbolos dos partidos: “Foi como se tivessem pintado a Primavera dentro do peito das pessoas” (pág. 59). Lá fora, os pais emigrados na Suíça, apenas tinham as notícias filtradas pela comunicação social que apontavam para a iminência de uma guerra civil e receavam pela integridade física dos filhos.
Terras de Trás-os-Montes marcadas pela emigração sobretudo para França, pela devoção religiosa, pelo pagamento de promessas em agradecimento aos que conseguiram voltar sãos e salvos do “inferno da guerra”, pelos dias de romaria e da matança, pelas saídas à noite para jogar snooker e fumar uns cigarros, pela dureza do trabalho no campo, nos dias gelados ou nos dias de calor inclemente, pelo contrabando e pelo receio dos carabineiros junto à fronteira da Galiza. O autor dá grande destaque às figuras femininas, pela sua força – a avó Ludovina, a dona da casa para onde vai viver em Vinhais, a mãe – e também transmite uma imagem quase santificada da mulher que cuida e cria os filhos sozinha, porque o marido está emigrado, veiculando uma visão muito tradicional do papel da mulher em casa e na sociedade, que fica muito patente através da seguinte transcrição: “Mulher que se preze mal entre em qualquer cozinha sintoniza-se com os afazeres que ali estiverem em curso. É um código feminino bem presente entre as transmontanas. Sentar-se e cruzar os braços era sinal de que não prestava para gerir uma casa e nenhum homem lhe queria pegar. (pág. 93).
E depois há aquelas figuras singulares, como há em todas as terras, nem sempre acarinhadas, tantas vezes ostracizadas pela desumanidade dos seus conterrâneos, como o Careto, vendedor de sardinhas, que um dia entregou a Afonso uma sardinha esculpida numa pedra de xisto. Para além do avô Delfim, também importante na memória do autor, noutros capítulos/contos deste livro surgem outras personagens típicas da aldeia como o ti Alfredo, o gaiteiro, o poeta de Nuzedo que era cego e que o fez ver um outro mundo “o mundo da interioridade”(pág. 35), as brincadeiras e aventuras do Afonso e do primo, o fogueteiro, o pastor Celestino que, com a ajuda dos dois cães Nero e Pinto, conseguiu pôr a salvo a maior parte do enorme rebanho de ovelhas, ou o Tonho salvo pelos rapazes de se afogar no Carriço.
Além de ser um livro que nos dá o retrato de uma época e de uma região sempre votada ao abandono pelo poder, com que muitos transmontanos ou habitantes do interior certamente se identificarão, é rico em regionalismos e vocabulário que me obrigou com frequência a recorrer ao dicionário da língua portuguesa.
22 de Março de 2023
Almerinda Bento
*verdasca – vara pequena e flexível; chibata
*zirra – pássaro também conhecido por zirro, ou pedreiro ou zilro
*boubela – poupa