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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

A Hora do Lobo, César A. Afonso

23.03.23, Almerinda

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A Hora do Lobo, César Afonso, 2019

A leitura deste livro resultou de um novo desafio que lancei este ano lectivo na Universidade Sénior do Seixal, de se criar um Círculo de Leitura com a periodicidade mensal, que permita divulgar livros, autores e falar sobre livros e leituras. Um espaço de partilha para quem gosta de ler. Olinda Barreira, uma das frequentadoras do Círculo sugeriu “A Hora do Lobo”, de César Afonso, seu conterrâneo, com quem teremos a possibilidade de conversar na sessão de final deste mês de Março.

Logo na nota que abre este livro, o autor, num regresso a Montesinho, num Natal de 2015, dirige-se aos leitores dizendo que decidiu escrever sobre as suas memórias de infância, num tempo em que a sua terra Natal ainda estava povoada de gente valente, com vidas difíceis, agora praticamente despovoada e desolada. É pois um livro de memórias, para que não caiam no esquecimento pessoas que o marcaram, pessoas simples mas cheias de carácter, pessoas por quem sente imensa gratidão porque o ajudaram a ser a pessoa que é hoje.

“Naquele tempo a sabedoria não se encontrava nos livros. Ela passava de boca em boca, contada aos serões da lareira, atrás do arado que esventrava a terra puxado por uma junta de vacas, na verdasca* que dominava o rebanho de gado, enfim, no sacho ao ombro que se transformava na única companhia das longas caminhadas pelas encostas e vales.

Aprendia-se a olhar o céu azul, a interpretar a forma e a cor das nuvens, a intensidade do sol, a forma e posição da lua, a sentir os ventos do norte a rasgar os cabelos, a ouvir o canto dos pássaros da alvorada ao crepúsculo, a distinguir o zumbido das vespas e das abelhas, a seguir o canto das zirras*, a descobrir o canto do cuco e da boubela*, o perfume das ervas e dos animais, a respirar o sabor da terra nas trovoadas de Junho, a reconhecer o cheiro da esteva e da giesta. Esta era a sabedoria da terra, um imenso despertar dos sentidos, a verdadeira forma de nos fazer existir nas múltiplas dimensões do corpo. Aquilo que nos tornava eternos enquanto a vida permanece.

Foi por essa essência que os nossos avós amaram aquelas montanhas e os fizeram acreditar que ali haveriam de chegar ao futuro. Foi por esse futuro que viram os seus filhos partir e lhes educaram os netos. Foi por esse futuro que ficaram à espera de que um dia regressassem para lhe devolver a esperança. É por esse futuro que escrevemos para que a memória dos que lutaram não se esfume nas planícies do tempo.” (pág. 80)

O livro é constituído por contos breves. São episódios em diferentes momentos da meninice de Afonso que, por algum motivo, se tornaram significativos. A criança que cedo se vê afastada dos pais por estes terem sido obrigados a emigrar para França, e que fica à guarda da avó Ludovina, uma mulher especial. As dores do afastamento da aldeia e da avó, quando termina a primária e vai para o ciclo preparatório em Vinhais. As saudades da liberdade do campo, dos animais, das noites da aldeia à volta da lareira, das conversas, das histórias assustadoras e hilariantes, As visitas da avó em dias de feira e, como mesmo distante, ela continuava a educá-lo e a ser uma referência, pois, para ele, “a avó era a mulher mais sábia que ele conhecia” (pág. 43). O descobrir na escola as diferenças no tratamento se se tratasse de crianças oriundas da vila ou da aldeia, se eram filhos de pobres ou de gente mais abastada. As primeiras leituras, a biblioteca itinerante da Gulbenkian. As brincadeiras. As más recordações de uma professora que só conseguia infundir medos das suas aulas de Português. Contudo, para ele, “a vida do ciclo foi uma experiência inesquecível” (pág. 40).

Também a revolução de Abril não deixou de ser referida neste livro de contos. Numa zona tão esquecida pelos diferentes poderes ao longo do tempo, as campanhas de dinamização cultural e desportiva que então ocorreram também em Trás-os-Montes mexeram profundamente com as pessoas e também com o jovem Afonso que pela primeira vez viu as paredes da terra pintadas com as siglas e os símbolos dos partidos: “Foi como se tivessem pintado a Primavera dentro do peito das pessoas” (pág. 59). Lá fora, os pais emigrados na Suíça, apenas tinham as notícias filtradas pela comunicação social que apontavam para a iminência de uma guerra civil e receavam pela integridade física dos filhos.

Terras de Trás-os-Montes marcadas pela emigração sobretudo para França, pela devoção religiosa, pelo pagamento de promessas em agradecimento aos que conseguiram voltar sãos e salvos do “inferno da guerra”, pelos dias de romaria e da matança, pelas saídas à noite para jogar snooker e fumar uns cigarros, pela dureza do trabalho no campo, nos dias gelados ou nos dias de calor inclemente, pelo contrabando e pelo receio dos carabineiros junto à fronteira da Galiza. O autor dá grande destaque às figuras femininas, pela sua força – a avó Ludovina, a dona da casa para onde vai viver em Vinhais, a mãe – e também transmite uma imagem quase santificada da mulher que cuida e cria os filhos sozinha, porque o marido está emigrado, veiculando uma visão muito tradicional do papel da mulher em casa e na sociedade, que fica muito patente através da seguinte transcrição: “Mulher que se preze mal entre em qualquer cozinha sintoniza-se com os afazeres que ali estiverem em curso. É um código feminino bem presente entre as transmontanas. Sentar-se e cruzar os braços era sinal de que não prestava para gerir uma casa e nenhum homem lhe queria pegar. (pág. 93).

E depois há aquelas figuras singulares, como há em todas as terras, nem sempre acarinhadas, tantas vezes ostracizadas pela desumanidade dos seus conterrâneos, como o Careto, vendedor de sardinhas, que um dia entregou a Afonso uma sardinha esculpida numa pedra de xisto. Para além do avô Delfim, também importante na memória do autor, noutros capítulos/contos deste livro surgem outras personagens típicas da aldeia como o ti Alfredo, o gaiteiro, o poeta de Nuzedo que era cego e que o fez ver um outro mundo “o mundo da interioridade”(pág. 35), as brincadeiras e aventuras do Afonso e do primo, o fogueteiro, o pastor Celestino que, com a ajuda dos dois cães Nero e Pinto, conseguiu pôr a salvo a maior parte do enorme rebanho de ovelhas, ou o Tonho salvo pelos rapazes de se afogar no Carriço.

Além de ser um livro que nos dá o retrato de uma época e de uma região sempre votada ao abandono pelo poder, com que muitos transmontanos ou habitantes do interior certamente se identificarão, é rico em regionalismos e vocabulário que me obrigou com frequência a recorrer ao dicionário da língua portuguesa.

22 de Março de 2023

Almerinda Bento

 

*verdasca – vara pequena e flexível; chibata

*zirra – pássaro também conhecido por zirro, ou pedreiro ou zilro

*boubela – poupa

 

 

 

 

 

Misericórdia, Lídia Jorge

05.03.23, Almerinda

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Misericórdia, Lídia Jorge, 2022

Este é um livro que emociona, que comove profundamente, que nos expõe como humanidade, um daqueles livros sobre que tenho dificuldade e até pudor em escrever, talvez usando pinças para não estragar nada. Comovente, por vezes irónico, crítico, nada piegas. Um hino à dignidade, à resistência, à força de vontade para continuar a viver. Um livro maravilhoso e impossível de esquecer.

Maria Alberta Nunes Amado é uma dos setenta residentes no Hotel Paraíso, onde é conhecida por Dona Alberti. Os seus problemas de mobilidade são ultrapassados por diferentes cuidadoras que a transportam no interior da residência, a lavam e vestem, a enfeitam com o colar e os brincos, a acordam, lhe dão os bons dias, a deitam, a esquecem, lhe fazem a higiene sem a ouvir, sem a ver ou lhe responder, lhe fazem as confidências mais íntimas, lhe cantam, lhe afagam as mãos. Tem um gravador Olympus Note Corder DP-20 para onde dita impressões dos dias, das noites, das visitas, do que gosta e não gosta naquela que não é a sua casa, lugar de exílio, e desenha palavras com um pequeno lápis Viarco, usando a mão esquerda e a sua capacidade de extrair dos dias o que sobressai da rotina da instituição que transforma os utentes em peças iguais e sem identidade. Sente saudades das flores que amava no jardim da que foi a sua casa e guarda na bolsa que traz ao peito aquilo que ainda lhe confere algum poder, pertença e intimidade. Pode ser atormentada durante a noite pelo esquecimento do nome de uma capital de um atlas que conhece tão bem, mas resiste a essa entidade que tem vida própria – a noite – que não lhe dá descanso, trazendo-lhe memórias.

O Hotel Paraíso é feito de muitos mundos. Desde a Doutora Noronha que havia sido a estagiária Anita, o senhor Paiva sempre a querer fugir, a Dona Joaninha eternamente apaixonada e que não queria morrer sem saber ler, Lilimunde do Pará com quem Dona Alberti tanto se identifica, a cheirar a bergamota, sobrevivente das máfias da imigração e a viver o seu primeiro amor, o sargento João Almeida que trouxe do exterior um sopro de vida, o senhor Tó alguém que nunca se quis render, Salomé, a “sólida máquina Bosch”, Ali, o marroquino “strong” e “jolie” que acreditou que aqui em Portugal seria respeitado, as senhoras que se sentiam superiores e os homens que persistiam nos seus tiques marialvas. As cuidadoras, os cuidadores chegam e partem. Partem em levas e chegam em levas. Trabalho imigrante, mal pago, precário, indispensável.

A morte era banal no Hotel Paraíso. Os que partem definitivamente, rapidamente são esquecidos e substituídos por novos utentes. Mesmo quando a vontade é desistir e ir, o final de 2019, antes do espectáculo de fogo-de-artifício a partir do terraço do Hotel Paraíso, dá a Dona Alberti uma força para continuar a viver e os telefonemas que faz são o renovar de votos que o Ano do Carro seja um ano de vida e esperança no futuro. “Sinto um entusiasmo pela vida como não sentia há muitos anos” (pág. 408). Os telefonemas foram aos que lhe eram mais caros: ao senhor Frank, vizinho da casa antes do Hotel Paraíso, a Lilimunde, a menina a quem Edu Horvat não soube que deixou uma semente, à Associação da Boa Vontade que tem um voluntário que a visitou e lhe leu dois textos muito importantes e à filha a quem deseja que realize todos os seus sonhos, mesmo que ela Maria Alberta discorde das escolhas da filha.

Infelizmente, o Ano do Carro foi trágico e mortal para muitos dos utentes do Hotel Paraíso, incluindo Dona Alberti tão segura de que a noite não a iria sufocar. E também para Luís Sepúlveda, o autor das duas histórias de “As Rosas de Atacama” que o voluntário da Associação da Boa Vontade lhe lera: a do professor Galvez, “pedagogo da dignidade” e “Cavatori”, que homenageia os cavatori e os/as marmoristas nunca nomeados nas belas estátuas de Carrara.  

Transcrevo o epílogo de “Misericórdia”:

A Maria dos Remédios, minha mãe muito amada, que me pediu que escrevesse esta história.

E a Luís Sepúlveda, meu bom amigo de longa data.

Eles nunca se conheceram, mas estão unidos no tempo das estrelas e cruzam-se no interior destas páginas”

Lídia Jorge

Boliqueime, 15 de Junho de 2022

 

Almerinda Bento

4 de Março de 2023