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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Torto Arado. Itamar Vieira Junior

23.10.22, Almerinda

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“Torto Arado”, Itamar Vieira Júnior , 2018

 

Este foi um daqueles livros que não parei de sublinhar, sublinhar, sublinhar. Um livro verdadeiramente excepcional, poético, poderoso, brutal, que me permitiu viver sentimentos muito fortes, como a raiva, respeito pela coragem das personagens e profunda admiração por um escritor que consegue de forma intensa e admirável assumir a pele de mulheres narradoras.

O exemplar que comprei tinha uma cinta com a indicação dos prémios obtidos por este romance do escritor baiano Itamar Vieira Junior: vencedor do Prémio Leya 2018 atribuído por unanimidade pelo júri, vencedor do Prémio Jabuti e finalista do Prémio Oceanos. Independentemente da sinopse motivadora na contracapa, o livro agarra o leitor desde a primeira página e consegue, ao longo das cerca de trezentas páginas, manter o interesse e a expectativa até ao final. Ao lê-lo, revivi “Beloved” de Toni Morrison e foi com satisfação que o encontrei na lista dos livros sugeridos pelo Plano Nacional de Leitura.

Oficialmente, a escravatura no Brasil terminou em 1888. O romance começa por volta dos finais dos anos vinte do século passado, mas os moradores da fazenda de Água Negra não sabem o que é serem livres. Descendentes de escravos vindos de África, as suas histórias têm um traço comum de errância, procurando um pedaço de terra onde pudessem trabalhar, instalar-se e criar família. Trabalham de domingo a domingo, vivem em casas precárias feitas de lama, não recebem salário e são espoliados dos poucos produtos que conseguem plantar nas suas pequenas roças, para além do armazém que o fazendeiro instalou e a que ficam amarrados, o qual os trabalhadores baptizaram de “um roubo” (p. 106). Os anos passam, as crianças crescem e tornam-se adultas, as leis mudam e o progresso vai chegando, mas para os trabalhadores e moradores da fazenda é “a mesma escravidão de antes fantasiada de liberdade” (p. 234).

Num mundo aparentemente imutável, com uma hierarquia de poder na fazenda em que os capatazes e subalternos reproduzem o poder e a ordem coloniais, os trabalhadores vivem submetidos a práticas religiosas de matriz africana, encontrando aí resposta aos seus males e aos seus medos. Mas a exploração não é só dos fazendeiros relativamente aos trabalhadores, invisíveis e sem quaisquer direitos. O padrão do poder patriarcal vive-se nas famílias. Os homens cobiçam as raparigas mal elas começam a tornar-se mulheres “com os olhares invasivos que nos despetalavam como flores” … “Muitas caíam sob o peso da insistência, não resistiam às abordagens, e com as bênçãos dos pais se uniam com seus corpos ainda em formação. Sucumbiam ao domínio do homem, dos capatazes, dos fazendeiros das cercanias.” (p. 55). “Éramos preparadas desde cedo para gerar novos trabalhadores para os senhores, fosse para as nossas terras de morada ou qualquer outro lugar onde precisassem” (p. 135). Mulheres tratadas como criadas, como receptáculos para a satisfação sexual dos homens, vítimas de violência extrema… Mas, para além de os pais de Bibiana e Belonísia terem uma visão diferente e perceberem que era preciso construir uma escola para os filhos dos trabalhadores, Severo, que vai ser sindicalista e lutar pela emancipação do seu povo, será quem, pela primeira vez, irá abrir novos horizontes e uma perspectiva de mudança e uma nova vida a Bibiana. “Nunca havia conhecido ninguém que me dissesse ser possível uma vida além da fazenda. Achava que ali havia nascido e que ali morreria, como acontecia à maioria das pessoas”. “Queria experimentar a vida, para ver o que poderia nos acontecer” (p. 76).

O desejo de liberdade, o direito à terra, o tomar a palavra e exprimir a revolta de séculos, a luta de resistência e emancipação dos quilombolas são os grandes temas deste maravilhosos romance que nos narra as lutas dos povos de uma fazenda no sertão do Brasil, centrado na personalidade e na coragem das mulheres. Bibiana e Belonísia, inesquecíveis personagens deste livro, apesar de as suas personalidades serem tão diferentes, ficarão, após um acidente que lhes mudará a vida para sempre, ligadas como se de siamesas se tratasse.

A uma semana de um resultado eleitoral decisivo para o futuro do Brasil, este romance é um grito de revolta contra a opressão, a força da coragem e da união quando chega o momento de desobedecer e de mudar. Oxalá o povo brasileiro tenha o discernimento para vencer o obscurantismo, a prepotência e a mentira.

22 de Outubro de 2022

 

 

 

 

 

 

 

As Pequenas Memórias, José Saramago

09.10.22, Almerinda

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As Pequenas Memórias”, José Saramago, 2006 

Há alguns anos que não leio nada de José Saramago, o que significa que quebrei o meu compromisso de ler um livro deste autor todos os anos, para ver se consigo ler toda a sua vasta obra. Assim, peguei n’ ”As Pequenas Memórias”, numa edição da Caminho de 2006, para me redimir do atraso.

Começa com a sua Azinhaga, quando menino. Mas rapidamente as memórias de infância levam-nos a Lisboa, para onde a família foi viver na Primavera de 1924. Em Lisboa e ao longo de 10 anos, ele, os pais e o irmão Francisco que viria a morrer na véspera de Natal de 1924, iriam viver em dez casas diferentes, partilhando casas com outros casais, como os Baratas.

José Saramago tinha tido a ideia de escrever este livro e chamar-lhe “O Livro das Tentações”, mas a acabou por lhe chamar “As Pequenas Memórias”, por serem “ as memórias pequenas de quando fui pequeno, simplesmente” (p. 38) É um pequeno livro, que se lê rapidamente e com prazer, porque é divertido e cheio de graça. Saramago fala dos pais, dos avós paternos e maternos, dos primos, dos vizinhos, dos colegas de escola, das descobertas, dos sonhos, dos medos, das lembranças mais remotas até aproximadamente à idade dos vinte anos.

São recordações de infância, momentos como o assombro da visão da luz da Lua numa madrugada que vai persistir na memória como uma paisagem única e inesquecível, o rio Almonda da sua aldeia, as pessoas marcantes no seu percurso. Escreve sobre as paixonetas de juventude, as descobertas sexuais precoces, as marotices da idade, os desastres que deixam cicatrizes, a descoberta de outros contextos sociais muito diferentes do da sua família que tem de compartilhar uma casa com outras famílias… Enfim, são flashes onde a ingenuidade e a ternura nos remetem para a epígrafe da contracapa do livro – “Deixa-te levar pela criança que foste” – retirada de “O Livro dos Conselhos”.

Explica-nos por que se chama Saramago e não apenas José de Sousa (p. 48) e, embora erradamente por vezes se diga que o seu nascimento foi a 18, de facto, ele nasceu a 16 de Novembro de 1922 (p.51). Apesar dos seus problemas de dislexia “calsse; sacanavense”…,  a verdade é que a sua aprendizagem autónoma da leitura através do “Diário de Notícias” que o pai trazia (p. 98) deixou todos estupefactos. Recorda a escolinha na Morais Soares onde aprendeu a desenhar as primeiras letras numa pedra. “A Toutinegra do Moinho”, o único livro que havia lá em casa (p.99), foi a sua primeira experiência de leitor, embora reconheça não se lembrar de nada do que lá estava, ao contrário de “Maria, a Fada dos Bosques”, um daqueles romances em fascículos então na moda, que eram lidos por uma vizinha à mãe analfabeta e a ele ainda muito criança. Na escola destacou-se na leitura e na escrita e também fez um brilharete com o Francês. Fez dois anos no Liceu Gil Vicente e depois seguiu para a Escola Industrial de Afonso Domingues em Xabregas, porque os recursos dos pais não permitiam um percurso liceal como estava destinado aos meninos com outras posses.

Nestas “As Pequenas Memórias”, Saramago quer tirar do olvido certas pessoas que viveram pouco tempo como o seu irmão Francisco que morreu com 4 anos, ou o primo José Dinis, com quem andava permanentemente à bulha. De forma comovente, os avós maternos estão muito presentes neste livro de memórias. O avô Jerónimo “ um homem sábio, calado, que só abre a boca para dizer o indispensável” (p. 129), pressentiu o fim poucos dias antes de morrer e foi “de árvore em árvore do seu quintal, abraçar os troncos, despedir-se deles, das sombras amigas, dos frutos que não voltará a comer” (p.130). E a avó Josefa a quem ouviu dizer, tinha ela noventa anos, “O mundo é tão bonito e eu tenho tanta pena de morrer” (p. 131). Os avós maternos que, nas noites de frio, iam à pocilga buscar os bacorinhos mais frágeis e os deitavam na sua própria cama.

Este livro é de facto diferente de todos os que li até agora de José Saramago e não quero terminar este meu texto sem transcrever aqui o primeiro poema que ele escreveu, destinado a Ilda Reis com quem casou aos 22 anos. Saramago, que gostava de ir a casa do vizinho Chaves, pintor na Viúva Lamego, pediu-lhe que pintasse este poema num prato de cerâmica em forma de coração para oferecer à sua apaixonada:
Cautela que ninguém ouça

O segredo que te digo:

Dou-te um coração de louça

Porque o meu anda contigo.” (p. 54)

 

Notas:

Terminei este livro, exactamente no dia em que José Saramago, em 1998 recebeu o Prémio Nobel da Literatura.

Também neste dia assisti a um impressionante espectáculo de Dança pela Companhia de Dança Contemporânea de Évora em torno do “Ensaio sobre a Cegueira”, no Auditório Municipal do Seixal. Tal como com o livro, é impossível ficar indiferente depois de ver aqueles três bailarinos a actuar.

8 de Outubro de 2022

Almerinda Bento

 

À Procura da Manhã Clara, Ana Cristina Silva

02.10.22, Almerinda

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À Procura da Manhã Clara”, Ana Cristina Silva, 2022

 

Desde que li pela primeira vez o livro “O Rei do Monte Brasil” de Ana Cristina Silva, nunca mais deixei de acompanhar a sua produção literária. Fascina-me a sua capacidade de caracterização das personagens e o modo como organiza as suas narrativas, conseguindo criar uma empatia perfeita com o leitor.

Em “À Procura da Manhã Clara”, a narrativa é entremeada por cartas de Annie Silva pais, filha do último director da PIDE, dirigidas a diferentes pessoas. Logo no Prólogo, Annie estabelece a diferença entre a mãe que anotava na sua pequena agenda “coisas verdadeiramente ridículas” (pág. 11), e ela que desde sempre escreveu cartas “para exorcizar os sofrimentos de infância” (pág. 12). Amarfanhava-as, deitava-as fora e depois disso era capaz de sorrir. Mais tarde, já adulta, escreveu várias cartas aos pais, aos amores, aos amigos, mas nunca as enviou: “Nessas cartas jogava mais audaciosamente com a verdade e por isso mesmo nunca as enviei.” (pág. 13). Guardou-as numa caixa de sapatos e, ao relê-las, perto da morte, descobriu “quem tinha sido verdadeiramente” (pág. 13). Na última carta, dirigida a Che, Annie escreve “Estas cartas nunca enviadas retratam-me melhor do que todos os discursos por mim proferidos.” (pág. 273).

Annie é uma mulher idealista, apaixonada, com uma profunda ânsia de liberdade que sufoca numa relação de absoluto antagonismo com a mãe e com o regime retrógrado, conservador e opressivo da ditadura. Se o antagonismo entre filha e mãe não lhes dá azo a qualquer laivo de amor filial e maternal, tal não acontece na sua relação com o pai, cheia de sentimentos ambíguos, por estarem ideologicamente em lados opostos. Se a antipatia pela mãe tem a ver com um ideal de vida baseado nas aparências e na futilidade, saber que o pai, que sempre fora o seu herói, é o responsável pelo aparelho repressivo que persegue, tortura e mata, causa-lhe um imenso desgosto.

Portugal é um país triste e pobre, de mulheres sofridas, vestidas de negro, de olhos baixos, subjugadas e submissas. D. Nita, a mãe de Annie, é o símbolo da mulher da elite ligada ao poder, fútil e inclemente, minuciosamente caracterizada na sua vacuidade ao longo do livro, quer nos momentos em que está em alta, quer em situações como quando vai para a prisão ou quando é confrontada com a necessidade de apoiar a filha gravemente doente.

Os sentimentos altruístas e de apego à revolução cubana por parte de Annie, materializados na sua paixão por Che e pelos heróis da Sierra Maestra, no espírito de sacrifício em prol do colectivo e no seu empenhamento profissional nas missões em que participa como tradutora e intérprete, permanecem vivos até ao fim. Os desencontros amorosos, a degradação do rumo político a que aspirava em Portugal e no mundo, a morte do pai, as traições no país que escolheu para viver e a sua doença tornam Annie uma figura trágica e solitária, que a autora tão bem retrata.

 

Nota: Quando terminei a leitura das quase trezentas páginas do livro, voltei ao princípio e reli todas as cartas que Annie nunca enviou e que guardou na caixa de sapatos.

 

 

30 de Setembro de 2022

Almerinda Bento