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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Memorial do Convento, 1982

16.09.22, Almerinda

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Esta é uma memória com 8 anos e, portanto, anterior ao meu blog e por isso, hoje publico-a aqui pela primeira vez. 

Ainda estou em estado de graça! ❤
Memorial do Convento, José Saramago, 1982
Escrever, fazer uma apreciação sobre uma obra de Saramago é uma imensa responsabilidade e desafio. Não por ele ser o Nobel português (mais que merecido), mas porque Saramago escreve incrivelmente bem, nos surpreende pela forma como escreve e pela forma como nos convoca a olhar para a vida, para as coisas do quotidiano, para o comezinho, transformando-o. Acho que essa é uma das dimensões e papel da Literatura. E Saramago é Mestre.
É impossível ficar-se indiferente com Saramago. “Memorial do Convento” é um livro que mete respeito pela subtileza e pela densidade, pela mestria no jogo das palavras e das ideias, pela profundidade do pensamento e da escrita. A pretexto da construção de uma obra monumental que o rei D. João V (O Magnânimo) – o rei-sol português – quis deixar como marca do seu reinado, Saramago faz um retrato da Lisboa caótica do século XVIII; do poder do rei enebriado pelas riquezas do Brasil, da Índia e de África; do clima de suspeição e medo que a Igreja e o Santo Ofício lançam sobre todos e todas que saem dos limites impostos, colocando-lhes o ferrete de heresia ou bruxaria; do povo cuja vida é sofrimento, trabalho, doença e morte, mas que também sabe usar da astúcia e das festas para sobreviver. O grande protagonista deste romance é de facto o Povo. É ele que vai à guerra e fica mutilado, é ele que prepara o palanque e todas as condições para que o rei lance a primeira pedra, é ele que carrega as pedras que hão-de fazer o convento, é ele que, ao lado das juntas de bois, “faz ombros” com eles para carregar os blocos maiores que hão-de ser a glória do rei, é ele que se junta para ver a comitiva real passar. O rei é uma figura menor, está ausente e aparece episodicamente ou para garantir a descendência real ou para satisfazer os seus desejos carnais ou para cumprir as obrigações da sua condição de rei como, por exemplo, os casamentos reais que mais não são que negócios entre as famílias nobres da Europa.
As grandes personagens, e sobre eles/as há tanto a dizer, são Baltazar Sete-Sóis, Blimunda Sete-Luas, o padre Bartolomeu de Gusmão (o Voador), Scarlati (o senhor Escarlate) e todos aqueles milhares de operários anónimos que acreditaram que a construção da grande obra em Mafra, que iria durar muitos anos, lhes iria permitir deixar a sua vida de miséria e fome! Só a descrição do que foi ir a Pêro Pinheiro buscar a pedra para a varanda sobre o pórtico da igreja nos dá a dimensão do esforço humano supremo das grandes obras faraónicas construídas a poder de braços e de vidas de muitos milhares de pessoas.
Blimunda e Baltazar elevam-se acima do comum dos mortais; eles encerram em si o amor, a comunhão e o respeito entre duas pessoas que não se anulam antes vivem a sua individualidade e se reforçam. Sendo que Blimunda tem todas as características para ser presa da Inquisição, dados os seus poderes especiais, ela é afinal quem resiste no trio que ousou acreditar que as vontades recolhidas conseguiriam fazer elevar a passarola no ar. Ao espírito inventivo do padre Bartolomeu de Gusmão juntou-se a força da música do cravo de Scarlatti.
Concluindo, ao longo da leitura de “Memorial do Convento” estas foram as palavras que frequentemente me ocorreram: amor, sonho, vontades, superação.
Setembro, 2014

Entre Pássaro e Anjo, João de Melo

15.09.22, Almerinda

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“Entre Pássaro e Anjo”, João de Melo, 1987

 

Gosto de ler livros que vão saindo, mas não deixo de ir à descoberta de tantos que se foram acumulando numa altura da minha vida em que o tempo de leitura era muitas vezes reduzido e, sobretudo, limitado aos períodos de férias. Faço agora aquilo que me prometi, quando a aposentação parecia uma coisa longínqua. Àqueles que se foram acumulando, juntei os muitos que herdei da minha irmã, leitora compulsiva e muito atenta aos escritores portugueses. Este “Entre Pássaro e Anjo” é um deles.

Quando outro dia na Feira do Livro, enquanto João de Melo me autografava o seu “Livro de Vozes e Sombras”, lhe dizia que estava a terminar “Entre Pássaro e Anjo”, ele fez uma expressão admirada, tanto mais que desde 1987 quando o livro saiu, já produziu mais catorze títulos… “Já está um pouco datado…” disse-me ele. Mas estará mesmo?

“Entre Pássaro e Anjo” é um livro de contos. Com a força da presença das mulheres, podem ser “… tão numerosas como todas as mulheres que existem só para nos proteger e salvar” (p. 21), apaixonadas como a adolescente pelo seu professor, ou “viúvas-de-sangue”/ “viúvas-de-padre”/”fêmeas tristes do seu celibato” (p. 148) entre muitas outras designações escolhidas pelo autor para falar das carpideiras no funeral do padre Governo. Da sinopse na contracapa do livro retiro o seguinte: “É bem provável que a figura dominante de “Entre Pássaro e Anjo” seja de facto a mulher, ave pousada na manhã, como de uma delas chega a dizer o autor. E contudo, raras vezes como neste livro se terá ido tão longe na crueldade com que se descreve a ruína do corpo feminino e o velho adormecimento da paixão, o amargo refúgio do homem dentro da realidade autista dos seus sonhos. Voar, diz ainda João de Melo, é a principal vocação de pássaros e anjos. Mas a humanidade está infelizmente sempre pronta a ignorar esse apelo, incluindo as mulheres que não raras vezes se transformam em «mães masculinas» com largo uso de repreensão do próximo…” Ilustro esta ideia com uma citação extraída do conto “A Divina Miséria”: “A gente habitua-se à noite, tanto quanto os pássaros acabam por habituar-se a viver nas gaiolas suspensas das empenas. Se acontece de alguém erradamente os soltar, conhecem apenas a tristeza de umas asas sem préstimo. Perderam o sentido da orientação. Não sabem que as árvores servem para nelas pousarem. Remam no ar, contra o vento, embatem em obstáculos súbitos e inevitáveis. Desconhecem um mundo e recusam-se a aprendê-lo de novo. Cheios do tédio do infinito, permanecem atónitos e dificilmente escapam às doenças que existem só nos desertos. Se os não voltam a fechar nas gaiolas, morrem facilmente, perdidos da alegria. E já não têm idade. E nada sabem a respeito dos outros pássaros de voo largo e horizontal que, sendo livres, pousam tão devagar na alegria. Até medo lhes ganham. Afigura-se-lhes que os objectos que eles se tinham habituado a olhar à distância, por detrás da sua prisão de canas fictícias, estão agora para os devorar.” (p. 157)

Um livro muito político, com mensagens fortes, gritos contra a opressão, os opressores, sejam eles a Igreja, o poder instituído, a ditadura, a guerra, uma relação de casal que morreu e que não é mais que uma rotina. Podia ser qualquer país a viver sob ditadura, mas sente-se Portugal naquelas linhas, seja pela referência ao horror da guerra em África no conto “As Manhãs Rosadas”, ou nas alusões a um país entorpecido pelo sol e pela preguiça, que vive das glórias passadas, subjugado pelos americanos e esmagado pela dívida externa à espera de um homem providencial para as finanças como antes esperara por um ditador, um país sem futuro eternamente à espera de D. Sebastião em “Postumografia de Pedro-o-Homem”. “A Divina Miséria”, que decorre numa Ilha açoriana, parte da morte e do funeral do padre Governo para fazer uma crítica arrasadora à Igreja e ao seu poder. ”A dinastia dos padres era uma sucessão infame cujo único objectivo era perpetuar a mudez e a pobreza dos pobres. Sabe como? Dividiam o poder entre compadres, um braço armado na rua, outro braço na sacristia, e eles sempre na sombra, a fingirem-se, a darem-se ares de boas pessoas. Depois, vinham os ideólogos eclesiásticos, escreviam, propagandeavam que a pacificação do Rozário e do mundo era obra da Igreja e só dela.” (ps. 145 e 146) No entanto, a oposição e a hipótese de uma revolução é abortada com o desembarque dos marines americanos…

João de Melo não deixou de reflectir neste seu livro de contos também a sua experiência enquanto professor e escritor. A sala de professores num primeiro dia de aulas de Outubro, por onde desfilam “os animais docentes” descritos de uma forma tão divertida e real, na sua imensa diversidade, no conto com o mesmo nome. O professor, que partilha a viagem de autocarro para a escola com os seus alunos, que “pensara ao princípio que a sua presença salvaria o ensino do seu país” até que descobriu que “os autores vivos e os mais novos deles não estavam nos programas, quis pôr-se a berrar. Estava no país dos mortos, no país dos génios absolutos e indiscutíveis, só porque tinham morrido. Não valia a pena berrar. O país recusara-se a chegar ao século vinte!” (p. 117). “O Solar dos Mágicos”, último conto do livro, é uma sessão de lançamento e homenagem a um livro que ganhou um prémio literário; um logro, afinal. Não passa de um livro em branco. Mais uma sessão mundana, de gente que quer ser vista, que aproveita para comer e beber, que se quer abeirar de ministros e deputados. Um país com um ministro da Cultura, mas que não tem cultura.

Acho que é um livro cheio de ironia. Sem papas na língua. Muito crítico e, direi eu, actual e intemporal.

 

12 de Setembro de 2022