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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

O Luto de Elias Gro, João Tordo

30.08.22, Almerinda

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“O Luto de Elias  Gro”, João Tordo, 2015

É o terceiro livro que leio de João Tordo e confesso que “Três Vidas”, o primeiro lido, foi o que mais de agradou. “O Luto de Elias Gro” é demasiado depressivo. O estado de desespero e aniquilamento a que o narrador se vai entregar desde que decide ir viver para uma ilha, num farol desactivado, vai-se adensando ao longo da narrativa. Quando esta já vai a caminhar para o final, a personagem de um médico que o visita numa cabana imunda pergunta-lhe se ele (narrador) acredita nele (médico). “Acredito no quê?, respondi, soerguendo-me no colchão. Que as pessoas são feitas de porcelana, respondeu ele. Tem tido algumas provas disso. Mas, diga-me, como é que tem tratado aqueles que o ouvem? Aqueles para quem escrevo esta história?, perguntei. Sim, esses. Tenho-os tratado com paciência e com carinho, garanti. Como espera que o tratem a si? É capaz de ser isso, concordei. Tem-se alongado nas descrições, passa demasiado tempo a ruminar, acrescentou ele. Tenha cuidado ou as pessoas aborrecem-se… O que lhe aconteceu, acontece-lhe a si e a mais ninguém. Mas todas as histórias são empatia, argumentei. Ou empatizamos com aquele que nos conta, ou com aqueles que nos são contados, ou, então, kaputt. Ao menos percebeu o que lhe quis dizer, prosseguiu o médico, que coçou a barba, correndo várias vezes os dedos pelo cabelo. Sobre a porcelana.(…) Está a falar de quem? Estou a falar de si, disse o médico. Você partiu-se em pedaços e agora não há meio de voltar atrás. Vai ter de aprender a viver feito em lascas. Estime as feridas. Cuide delas. Dê-lhes carinho quando precisarem de carinho e proteja-as quando assim tiver de ser. (…) Você não é robusto, é feito de vidro. Se o deixarem cair, desfaz-se. Reconheça, aceite e levante-se desse colchão bolorento.” (págs. 247 e 248) O mesmo médico que um dia, antes do exílio na ilha, lhe dissera “Dê tempo ao tempo e verá como, um dia, se sentirá mais apaziguado. A mim aconteceu-me”.(p.117)

Este é um livro de lutos. O de Elias, que se afunda no desgosto com a morte da jovem mulher; a do narrador com a morte da filha e abandono da mulher; a de Alma cuja filha não sobrevive ao naufrágio; a de Cecília cujo pai ausente não a consegue acompanhar no seu crescimento emocional. Cada um, à sua maneira, tenta sobreviver ou afundar-se no luto. Pela procura do transcendente, pela fé; isolando-se da agitação citadina, numa ilha, num farol sem qualquer conforto para além de um livro de contos de Borges, lutando contra os fantasmas com um par de luvas de boxe, ou com uma garrafa de whisky; sendo a figura maternal que vela por todos; passando da agressividade à ternura enquanto exibe a sua “erudição” nomeando as centenas de ossos de que é feito o corpo humano… Declinações de várias pessoas, mas em que o factor comum é um sofrimento imenso. Pessoas, feitas de porcelana. Fortes, quase a atingir o aniquilamento, a degradação física.

A dado passo, o narrador confessa, fruto da sua experiência de vida no farol “… que o homem transporta consigo o inferno, e que esse inferno não são os outros mas nós mesmos, quando entregues às nossas ideias mais acérrimas, às nossas intransigências mais cruéis, às nossas dúvidas mais corrosivas” (p.116). Voltando à frase inicial do livro, quando, muito doente e próximo da morte, Elias Gro fala com o narrador e lhe diz que “O paraíso deve consistir no cessar da dor” (p.15), encontro na epígrafe de “O Luto de Elias Gro” – citações de Jorge Luis Borges e Lars Drosler – o foco de toda a obra: “Que o céu exista, mesmo que o nosso lugar seja o inferno” (Jorge Luis Borges) e “Eu era passageiro e responsável por um naufrágio, passara uma vida inteira a cavar um buraco no casco e, agora, procurava o mastaréu para não morrer afogado.” (Lars Drosler)

 

30 de Agosto de 2022

 

Integrado Marginal

15.08.22, Almerinda

 

 

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Integrado Marginal, Bruno Vieira Amaral, 2021

Este ano tem sido um ano de grandes leituras e este livro de Bruno Vieira Amaral é de facto um livro extraordinário. Uma obra completíssima, séria, resultado de um enorme trabalho de investigação sobre a vida de José Cardoso Pires, um grande escritor, considerado por Óscar Lopes “o maior prosador vivo da língua portuguesa” (pág. 463). Para além da extensa bibliografia, do recurso a espólios de diversos autores e fontes diversificadas, o autor de “Integrado Marginal” apoia as informações que nos vai dando no livro com base em cerca de quinhentas notas, para além de um extenso índice onomástico, que é um valioso auxiliar para quem quiser aprofundar a relação de José Cardoso Pires com tantas e tantas personalidades da vida cultural e política que com ele conviveram e que fazem parte integrante da nossa história. “Integrado Marginal” é uma biografia competente, rigorosa, apaixonante de José Cardoso Pires, editada pela Contraponto na série Biografias de Grandes Figuras da Cultura Portuguesa Contemporânea. No capítulo dos Agradecimentos com que Bruno Vieira Amaral termina o seu livro, ele escreve: “Espero que esta biografia honre a memória e a obra de José Cardoso Pires e que traga novos leitores para os seus livros.” Não tenho quaisquer dúvidas que o conseguiu.

Tendo como pano de fundo o Portugal que vai dos anos 20 do século passado ao ano da Expo 98, Bruno Vieira Amaral foi certeiro no título escolhido para definir José Cardoso Pires – Integrado Marginal - definição que Cardoso Pires usou para si próprio na grande entrevista que deu a Artur Portela em 1991 (pág. 514). Portugal, mas sobretudo Lisboa, a cidade que ele escolheu como lugar dos afectos, dos amigos, dos bares, das conversas onde o cigarro e o uísque eram presença constante, a Costa da Caparica onde se refugiava para escrever, sem coisas que o desviassem da concentração e do rigor na escolha das palavras e na organização das ideias. Portugal do salazarismo, da resistência à censura da PIDE e da Igreja e de todas as polícias por quem Cardoso Pires  tinha um ódio de estimação. Portugal e a geração de 45 que não conseguiu agarrar a oportunidade do fim da guerra; a crise profunda dum país orgulhosamente só que se afundou na guerra colonial e que ainda acreditou que o marcelismo podia trazer ventos de democracia, que só sopraram a sério com o 25 de Abril. As contradições dum país marcado pela ruralidade, pelo analfabetismo, pelo conservadorismo e pela ditadura, com uma burguesia convertida à democracia, desejosa de agarrar os fundos europeus, para que Portugal deixasse de ser “atrasado” e periférico.

E de Cardoso Pires, uma personagem complexa e fugidia, que aspectos poderei realçar a partir desta biografia de Bruno Vieira Amaral? A sede de liberdade, de independência, a intransigência com o falso e o postiço, um materialista sem papas na língua nem elegâncias, em que o pudor dificultava a expressão dos afectos e que, por não ser de meias-tintas, poderia ser simplificado numa qualquer etiqueta ou caricatura redutora e distorcida. Com um percurso escolar que não foi brilhante, desde sempre mostrou propensão para a escrita. Na verdade, o que ele realmente gostava de fazer, mas que exigia tempo, era escrever, mas tinha de se desdobrar em várias actividades que lhe garantissem o sustento. Enquanto escritor, lutou num país com um analfabetismo gigante, sem hábitos de leitura e num regime que tudo vigiava e cortava. O meio literário, com as suas diferenças e divisões naturais, para quem se queria afirmar era também um campo cheio de obstáculos. Lento na escrita, a relação dos seus editores com o autor foi de respeito, amizade e compreensão, com a certeza de que o resultado seria depurado e rigoroso. Tal como o percurso árduo de ascensão e notoriedade na obra de Cardoso Pires, assim se passou com a literatura e os autores portugueses que precisaram do tempo e das políticas públicas de apoio por parte dum país endemicamente fechado e que se abria ao mundo dando a conhecer as suas potencialidades e riqueza cultural e literária. Esta biografia, ao nomear as dezenas de grandes homens e mulheres das letras e da cultura portuguesa, presta-lhes também a eles um tributo e uma homenagem, a saber, Mário Dionísio, Alves Redol, Luiz Pacheco, Maria Lamas, Miguel Torga, Sttau Monteiro, Júlio Pomar, João Abel Manta, Maria Velho da Costa, Mário Cesariny, Alexandre O’Neil, Salgado Zenha, Francisco Sousa Tavares, Maria Lúcia Lepecki, Fernando Gusmão, Fernando Namora, Augusto Abelaira, Alçada Baptista, Assis Pacheco, Lídia Jorge, António Lobo Antunes, José Saramago, Antonio Tabucchi, Clara Ferreira Alves, Inês Pedrosa, Nelson de Matos, João Pedro Vasconcelos…

Integrado marginal, José Cardoso Pires não era homem de casa. O “Zé”, pai de Ana e de Rita, nunca foi de grandes paciências nem de meiguices com as filhas, que deixou anos mais tarde para a neta Joana e para o Rui. Era então um “avô babado” a fazer o inimaginável com os netos. A mulher “Edite, o verdadeiro pilar da vida dele” (pág. 439) deve ter sido duma paciência que só um amor gigante consegue compreender. Esse amor ao marido e ao pai que está implícito ao longo da biografia de Bruno Vieira Amaral expressa-o o autor nos Agradecimentos finais que começam logo desta maneira: “Este livro, na sua forma final, não teria sido possível sem o contributo e a ajuda da família direta de José Cardoso Pires: Edite Pereira, Ana Cardoso Pires e Rita Cardoso Pires. O trabalho que têm feito para preservar a memória e manter viva a obra de Cardoso Pires é notável. O auxílio que me prestaram não teve outra intenção que não a da preservação do legado literário do escritor” (pág. 563).

Tudo o que escrevi é pouco, muito pouco, para o manancial de informação desta biografia. Quero realçar todas as referências detalhadas sobre toda a obra de Cardoso Pires até ao seu derradeiro “Lisboa – Diário de Bordo”(1998) e que deixam uma imensa vontade de agarrar e ler todos os livros deste escritor extraordinário da nossa língua.

Mouriscas, 13 de Agosto de 2022

Almerinda Bento