A preparar as férias...
E enquanto sigo a bom ritmo a excelente biografia de José Cardoso Pires, preparo as minhas leituras de férias, seguindo o acaso dos papelinhos que os meus dois potes contêm. Livros antigos/livros recentes.
Siga.
Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]
E enquanto sigo a bom ritmo a excelente biografia de José Cardoso Pires, preparo as minhas leituras de férias, seguindo o acaso dos papelinhos que os meus dois potes contêm. Livros antigos/livros recentes.
Siga.
A Força da Idade, Simone de Beauvoir, 1960
“A Força da Idade” é dos livros que herdei da minha irmã, talvez o mais importante. Ela tinha-me oferecido “Os Mandarins”, pediu-me que lho emprestasse para o ler e quase chegou ao fim do 2º volume naquelas férias fatídicas. Chegou a minha vez de ler este belíssimo exemplar de “A Força da Idade” editado pela Bertrand e descobri, ao longo da leitura, sublinhados que inevitavelmente me fazem reviver as suas preocupações, os seus interesses e os seus medos. Foi pois um livro cuja leitura me remeteu invariavelmente para ela e para as nossas vivências. Por isso, as palavras que vou escrever sobre este livro que Simone de Beauvoir dedicou a Jean Paul Sartre, dedico-as à memória da minha irmã Isabel.
Tinha lido “Memórias de uma Menina Bem Comportada” há muitos anos e lembro-me que foi durante muito tempo um livro muito vivo na minha memória, mas passados tantos anos, algumas das referências que Simone de Beauvoir faz no início do livro, naturalmente, pessoas importantes e marcantes na sua juventude, mas que entretanto deixei de identificar. “A Força da Idade”, para além de um livro autobiográfico em que a autora detalha momentos marcantes da sua juventude, como viveu pela primeira vez e de forma intensa a sensação de liberdade, é também um documento histórico valioso sobre o período que antecede a 2ª guerra mundial até ao momento da Libertação de Paris em Agosto de 1944.
No Prólogo, Simone de Beauvoir avisa: “Lancei-me numa aventura imprudente, quando comecei a falar de mim. Começa-se e nunca mais se acaba. “ (…) “No entanto, devo preveni-los que não pretendo dizer tudo” (…) “a minha vida foi estreitamente ligada à de Jean Paul Sartre; mas a sua história espera contá-la ele próprio e deixo-lhe essa tarefa.” E, em nota de rodapé: “Neste livro consenti em omitir; nunca em mentir. Mas é provável que a memória me tenha traído em pequenas coisas…”
O livro está dividido em duas grandes partes; a primeira vai de Setembro de 1929 ao Verão de 1938 e a segunda, desde esse Verão quando a ameaça da guerra era já muito presente até 25 de Agosto de 1944, quando os últimos ocupantes nazis abandonaram a cidade de Paris onde Simone de Beauvoir vivia.
Simone de Beauvoir tem 21 anos, vai viver para Paris onde dá umas aulas que lhe permitem a liberdade de ter um quarto seu. “Quando Sartre voltou a Paris, em meados de Outubro, começou verdadeiramente a minha nova vida” (pág.15). O dinheiro era pouco, liam, iam ao teatro, descobriam o cinema sonoro, discutiam as teorias de Sartre, tinham uma visão idílica sobre a paz, considerando a ascensão das ideias de Hitler “um epifenómeno sem gravidade” (pág.16). O seu ideal de vida era escrever e para este jovem casal “a liberdade era a nossa única regra” (pág.40). Viviam longe da realidade, no entanto, Beauvoir refere numa visita a uma pequena fábrica de tomadas para lâmpadas eléctricas que, ao ver a dureza, insalubridade das condições de trabalho e monotonia das tarefas, que o seu “primeiro encontro com o trabalho foi como um soco no estômago” (pág.53).
As caminhadas solitárias e a descoberta sistemática da região de Marselha, onde é colocada durante um ano, são um deslumbramento para Simone de Beauvoir. Segue-se Rouen, sem os encantos de Marselha, onde vai permanecer durante quatro anos, mas com a vantagem de estar mais próxima de Paris e de Sartre que dá aulas no Havre. Em Espanha, vencem as forças republicanas, mas na Alemanha as ideias de Hitler vão fazendo o seu caminho e na Itália os camisas negras estão cada vez mais presentes nas ruas. No entanto, apesar das perseguições aos judeus na Alemanha, os intelectuais nos quais Beauvoir e Sartre se incluíam encaravam isso com relativa serenidade e tinham uma visão distorcida sobre a situação política. Em finais de 1934, início de 1935 a situação económica deteriora-se, crescem os despedimentos e o desemprego. A xenofobia e as tendências nacionalistas de direita aprofundam-se. É interessante perceber a evolução no pensamento de Simone de Beauvoir que nessa altura só tinha interesse, ao nível da política externa, por o que se passava em Espanha em que as direitas estavam no poder, com a repressão selvática aos operários da Catalunha e das Astúrias. “Uma questão que nessa altura fazia correr muita tinta era o voto das mulheres; no momento das eleições municipais; Marie Vérone e Louise Weiss agitaram-se furiosamente; tinham razão; mas como eu era apolítica e não iria usar dos meus direitos, era-me absolutamente indiferente que nos reconhecessem ou não” (pág.183). O que a movia eram as questões da repressão que se fazia sentir, questiona-se sobre a pena de morte, mas do ponto de vista político a sua postura assim como a de Sartre era de meros espectadores (pág.186). A Frente Popular que introduzira grandes transformações sociais e melhoria na qualidade de vida dos operários franceses entra em declínio; os franquistas avançam em Espanha e Guernica é massacrada; a Grécia vive em ditadura e a pobreza do povo é indisfarçável. Só a URSS se mostrava desejosa de barrar o fascismo, mas “Nunca imagináramos a URSS como um paraíso, mas também nunca tínhamos posto seriamente em questão a construção socialista (…) Não haveria mais nenhum lugar no mundo onde se pudesse alojar a esperança?” (pág.245). As perseguições intensificam-se na Alemanha e a Europa vive uma onda de refugiados que se deslocam e que ninguém quer aceitar.
A Primavera de 1939 marca um ponto de viragem em Beauvoir, que faz um balanço dos seus últimos dez anos numa síntese que encerra a 1ª parte desta autobiografia. “Não é possível assinalar um dia, uma semana, nem mesmo um mês, para a conversão que então se deu em mim. Mas é certo que a Primavera de 1939 marca um corte na minha vida. Renunciei ao individualismo e ao anti-humanismo. Aprendi a solidariedade” (…) “É arbitrário cortar a vida aos bocados. No entanto, o ano de 1929, de que datam, ao mesmo tempo, o fim dos meus estudos, a minha emancipação económica, a saída da casa paterna, a ruptura das antigas amizades e o meu encontro com Sartre, abriu evidentemente para mim uma nova era. Em 1939, a minha existência mudou de uma maneira igualmente radical: a História apanhou-me para não mais me largar; por outro lado, dediquei-me a fundo para sempre à literatura. Encerrava-se uma época. Este período que acabo de contar fez-me passar da juventude à maturidade. Dominaram-me duas preocupações: viver e realizar a minha vocação ainda abstracta de escritor; isto é, encontrar o ponto de inserção da literatura na minha vida.” (pág. 302). “Todavia, ao fazer o balanço destes anos, parece-me que me deram muitíssimo: tantos livros, quadros e cidades, tantos rostos, tantas ideias, emoções e sentimentos! Nem tudo era falso.” (pág. 306)
No Verão de 1938, já com a ameaça iminente da guerra, ainda aproveita a natureza na Provença com Sartre, antes de regressar a Paris. A notícia da conclusão do pacto germano-soviético é o fim de toda e qualquer esperança. Os comboios sobrelotados, a mobilização e a angústia das pessoas são o sinal da viragem. No entanto, há ainda a crença de que a guerra não vai ser longa e que os fascismos vão ser liquidados e que a França e toda a Europa caminharão para o socialismo. É muito interessante o retrato que Beauvoir traça do estado de espírito das pessoas: inquietas, dando palpites, tentando adivinhar o futuro. Ela própria “sentia medo. Não receava por mim; nem por um instante pensei em fugir do País. Tinha receio por Sartre.” (…) ”E uma manhã a coisa aconteceu. Então, na minha solidão e angústia, comecei a escrever um diário. Parece-me mais vivo, mais exacto do que a narrativa que eu pudesse tirar dele.” (pág. 321) Vai então escrever um diário que começa a 1 de Setembro e vai até 14 de Julho do ano seguinte, com alguns períodos intermitentes, ou seja, todo o período em que está afastada de Sartre. Este diário é um retrato/documento vivo do quotidiano da França naquela época. A 1 de Setembro é declarada guerra à Polónia, Sartre é mobilizado para Nancy, as pessoas começam a comprar máscaras de gás, as rotinas alteram-se, os cafés fecham cedo e as boîtes não abrem. “O Flore está fechado. Sento-me na esplanada do Deux Magots e leio Journal, de Gide, de 1914; grande analogia com o momento presente” (pág. 326) Alguns dizem que esta guerra é uma brincadeira. “Durará muito tempo?”, pergunta Simone de Beauvoir. Num passeio pelos campos com Camille, “Voltamos através dos campos e aldeias. É um momento muito comovente e recordo-me do que Sartre me disse em Avinhão, e que é tão verdadeiro: que se pode viver numa grande doçura um presente rodeado de ameaças; não esqueço nada da guerra, da separação, da morte, do futuro bloqueado e no entanto nada pode apagar a ternura e a luminosidade da paisagem; como se fosse invadida por um sentimento que se basta a si próprio, que não pertence a nenhuma história, arrancado à sua própria história, de repente, completamente desinteressado.” (pág. 334). Na entrada de 25 de Outubro do diário, escreve Simone de Beauvoir: “Fernand diz que os jornais estão cheios de mentiras e que a guerra vai ser longa. Já não reajo a estas previsões. Trabalho no meu romance, dou aulas e vivo numa espécie de embrutecimento: nenhum futuro tem realidade.” (pág. 348)
Para se deslocarem, os franceses precisam de salvo-condutos, o que não é fácil de conseguir. As cartas que recebe de Sartre, em parte incerta, são abertas pela censura. Mais tarde, em código, ela consegue perceber que ele está na Alsácia. No PCF há demissões por desacordo com o pacto germano-soviético. Em Maio os alemães invadem a Holanda, a Bélgica e o Luxemburgo e a 4 de Junho a região de Paris é bombardeada. A vida muda radicalmente para Simone de Beauvoir que tem de ficar na cidade por causa da sua profissão. Sente-se enclausurada. Mas, com o avanço das tropas ocupantes, os professores são dispensados e os exames adiados. Paris é o caos, sem gasolina, sem comida para os franceses, mas os alemães pavoneiam-se e culpam os ingleses e os judeus pela situação de penúria que vivem os habitantes da cidade. É nessa altura que Simone de Beauvoir aprende a andar de bicicleta, o que lhe vai ser muito útil e para Sartre nas suas muitas deslocações. A repressão e o peso da ideologia nazi entram no quotidiano das pessoas. As notícias são escassas e deturpadas, alguns amigos começam a vacilar. Outros desaparecem.
Quando Sartre que estivera preso é libertado, quer seguir a política e cria um pequeno grupo – “Socialismo e Liberdade “ – à semelhança de muitos que existiam, que ajude à resistência aos ocupantes e colaboracionistas. O “trio” que Simone, Sartre e Olga constituíram antes da guerra, é agora alargado, como se fossem uma “família”. Partilham o pouco que têm, apoiam-se nas dificuldades que são cada vez maiores, a informação é escassa, os avanços das forças inglesas andam a par das execuções, das prisões e dos envios das pessoas para os campos de concentração, embora nessa altura ainda pouco se soubesse sobre os campos de concentração, as resistências organizam-se, mas há que estar atento aos delatores. Em contraponto ao ambiente hostil da ocupação e da guerra, à rudeza do frio e da fome, este grupo de intelectuais – Camus, Dullin, Picasso, Dora Marr, os Leiris, Éluard, Malraux … – fazia do Flore a sua casa e alimentava a sua amizade com a alegria de viver o momento e de aproveitar ao máximo o facto de estarem vivos. Tinham grandes projectos para o futuro e antecipavam o que fariam no pós-guerra. Sartre cria textos para peças de teatro, Simone trabalha no segundo romance e o seu reconhecimento como escritora surge quando finalmente “A Convidada”, o seu primeiro romance é editado e sobre ele são escritas críticas em jornais de referência. Simone de Beauvoir era finalmente reconhecida como escritora, ganha notoriedade e esse reconhecimento dá-lhe grande satisfação pessoal.
Como referi anteriormente, a parte final de “A Força da Idade” é o retrato dos dias que antecederam a vitória sobre o ocupante nazi e que foi sentida antecipadamente pela “família” que há tanto tempo a desejava. A Libertação não foi conseguida sem muito sofrimento e sem que o terror estivesse presente até ao fim. Simone de Beauvoir faz também aqui um balanço, uma reflexão sobre a guerra e o peso que ela irá transportar para a sua vida do pós-guerra e que não mais se apagará. Dos muitos amigos e amigas que vão surgindo ao longo das mais de quinhentas páginas, ela destaca o jovem Bourla cuja morte lhe é insuportável
Para além da minúcia e detalhe usados ao longo de todo o livro na descrição das paisagens e percursos que fazem ela e Sartre em toda a França, mas também noutros países como a Espanha, a Itália ou a Grécia; Simone de Beauvoir como observadora de tudo o que a rodeia é exaustiva na caracterização daqueles que lhe estão mais próximos e, de forma muito particular, partilha nas suas memórias a importância da literatura na sua vida “a literatura tornou-se-me tão necessária como o ar que respirava” (pág. 509); as dúvidas e inseguranças em todo o processo criativo, os elementos usados na construção de “L’Invitée”, mas também de “Le Sang des Autres” e “Tous les Hommes sont Mortels”, o que acho de grande interesse para quem estudar estas três primeiras obras da autora, na medida em que estão intrinsecamente ligadas à sua vivência e às pessoas que fizeram parte dos seus relacionamentos mais íntimos.
Por fim e assumindo que muitíssimo mais poderia dizer sobre este livro, não posso deixar de aqui transcrever um parágrafo que surge na parte final do livro, que reflecte as preocupações desta professora, filósofa, feminista, fundamental para o pensamento do feminismo e das feministas. A propósito do seu círculo de amigos, intelectuais quase todos oriundos do surrealismo, escreve Beauvoir: “ Tirei ainda um outro proveito dessa intimidade. Conhecia poucas mulheres da minha idade e nenhuma que levasse uma vida clássica de casada; os problemas de Stépha, Camille, Louise Perron, Colette Audry e os meus eram, na minha opinião, individuais e não generalizados. Em muitos pontos, compreendera quanto, antes da guerra, pecara por abstracção: sabia agora que não era indiferente ser judeu ou ariano; mas não me tinha apercebido de que houvesse uma condição feminina. Subitamente, encontrei um grande número de mulheres que tinham ultrapassado os quarenta e que, através da diversidade das suas possibilidades e méritos, haviam tido uma experiência idêntica: tinham vivido como «seres relativos». Como eu escrevia, como a minha situação era diferente da delas, e também, penso eu, como sabia escutar, disseram-me muita coisa; comecei a dar conta das dificuldades, das aparentes facilidades, dos logros e dos obstáculos que a maioria das mulheres encontra pelo caminho; senti também que, naquela medida, eram simultaneamente diminuídas e enriquecidas. Não dava ainda muita importância a um assunto que só indirectamente me dizia respeito, mas a minha atenção foi despertada.” (pág. 481)
10 de Julho de 2022
Almerinda Bento
(Para assinalar o dia do aniversário de Mia Couto, mais um texto da série leituras pré blogue)
“Terra Sonâmbula”, Mia Couto, 1992
“Terra Sonâmbula” é o primeiro romance de Mia Couto. É um livro belo, difícil, singular. A linguagem poética característica dos livros de Mia Couto é surpreendente e recria o português com a singularidade da oralidade moçambicana. Um romance carregado de poesia. Dá vontade de fazer um glossário com palavras e expressões que nos surpreendem a cada linha.
É um livro difícil, sobre a guerra civil e sobre as consequências devastadoras na terra e nas gentes. As diversas personagens andam à deriva, em círculos, procuram mas não encontram, são náufragos, deslocados em fuga à procura de poiso seguro para viver. O medo é para muitos a única coisa que possuem. Farida, filha-gémea, facto já de si sinal de grande desgraça segundo as tradições locais, pergunta a dado momento: “Essa guerra algum dia há-de acabar?” Siqueleto, outra personagem diz que não está triste, apenas cansado da guerra.
O velho Tuahir e o pequeno Muidinga, este sem memória do passado e aquele sem perspectiva de futuro, encontram um velho machimbombo calcinado que se torna num precário, mas único refúgio-casa para se protegerem dos bandos e das feras. Junto ao autocarro encontram uma mala perdida e uns cadernos-diário de uma personagem: Kindzu. Estes cadernos que Muidinga vai lendo para si e para o seu companheiro Tuahir são um tesouro que agarra Muidinga àquele refúgio inóspito. As histórias que vai lendo ajudam-nos a viver para além do pesadelo da guerra, da solidão, do desespero.
“ – Problema é deixar este escuro entrar na cabeça da gente. Não podemos dançar nem rir. Então vamos para dentro desses cadernos. Lá podemos cantar, divertir. ” As histórias nos cadernos de Kindzu estão carregadas de magia, de crendices, de fantasia e alternam com a história de Muidinga e Tuahir sobrevivendo no machimbombo e nos percursos que os levam a lado nenhum. O que é sonho? O que é realidade? Quando são a mesma coisa, se fundem e nos intrigam?
Apesar do efeito regenerador que a magia dos cadernos de Kindzu despertava, Kindzu era “um sonhador de lembranças, um inventor de verdades. Um sonâmbulo passeando entre o fogo. Um sonâmbulo como a terra em que nascera.” Para Muidinga não havia passado nem se vislumbra futuro.
“ - Tio, eu me sinto tão pequeno…
- É que você está só. Foi o que fez essa guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há país.”
Mia Couto quis neste livro trazer-nos a dor do seu povo que após dez anos de luta anti-colonial se viu logo de seguida envolvido numa longa guerra civil cujos efeitos perduram muito para além do fim oficial da guerra.
31 de Outubro de 2015
Almerinda Bento