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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Vozes Anoitecidas, Mia Couto

23.06.22, Almerinda

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(da série leituras pré blogue)
 
Vozes Anoitecidas, Mia Couto, 1986
Não por Mia Couto ter recentemente sido galardoado com o Prémio Camões, mas porque estive recentemente em Moçambique, no distrito do Gilé, província da Zambézia, senti uma enorme necessidade de reler o livro com que há já muitos anos atrás me estreara no contacto com este autor moçambicano.
Queria confrontar a ideia da estranheza de certas personagens, dos feitiços, dos encantamentos, isto é, de um outro mundo tão diferente que me tinha sido desvendado através da escrita de Mia Couto com a vivência que tinha experienciado no contacto directo com mulheres e homens daquela região da África rural tão afastada dos confortos e do acesso a alguns direitos básicos.
Volto então ao meu exemplar amarelecido de Vozes Anoitecidas, uma edição de 1987 da «Caminho» e tento perceber melhor a escrita, a invenção das palavras, a oralidade das gentes daquele país de África, o imaginário que nos é apresentado nos diversos pequenos contos de que é feito este livro do início da carreira literária de Mia Couto. Estão lá as histórias da violência doméstica, o peso das superstições e das tradições, as sequelas da guerra civil, a graça de algumas personagens como Ascolino do Perpétuo Socorro enredado em frases iniciadas por advérbios e no álcool, a tragédia dos amores impossíveis, a desgraça que é a infertilidade num continente onde o valor social passa pelo número de filhos ou a força da natureza que os humanos não controlam. Reconheço naquela escrita uma enorme proximidade à realidade e reencontro no trabalho com a língua e na invenção das palavras o prazer de uma leitura que tinha sido gostosa e carregada de poesia.
Termino, citando o texto de abertura de Mia Couto a esta colectânea de contos Vozes Anoitecidas:
«O que mais dói na miséria é a ignorância que ela tem de si mesma. Confrontados com a ausência de tudo, os homens abstêm-se do sonho, desarmando-se do desejo de serem outros. Existe no nada essa ilusão de plenitude que faz parar a vida e anoitecer as vozes.
Estas estórias desadormeceram em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. Na travessia dessa fronteira de sombra escutei vozes que vazaram o sol. Outras foram asas no meu voo de escrever. A umas e a outras dedico este desejo de contar e de inventar.”

 

23 de Junho 2013

 

 

Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, Julieta Monginho

13.06.22, Almerinda

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Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, Julieta Monginho, 2021

O terceiro livro que leio da autora e sempre a surpreender-me. O Rijksmuseum em Amsterdão que nunca visitei é central neste romance. Aliás, desta cidade, apenas conheci o aeroporto e o seu parque exterior com milhares de bicicletas estacionadas. Para me/nos orientar neste museu e nos seus quadros, em apêndice no final do livro, a autora faz-lhes uma referência. Tal como fiz em “O Nervo Ótico” de Maria Gaínza, procurei-os no Google e assim fiz uma “viagem” à distância, com toda a diferença que é estar na presença das obras.

Este livro é também uma viagem no espaço e no tempo em torno de várias personagens que ora vivem juntas, ora se afastam, que brigam, se reconciliam, que estão permanentemente em fuga, ou querem empreender uma fuga que lhes permita viver em harmonia. Este livro é um puzzle, uma construção de um lego que nos permite seguir pistas, para não nos perdermos. E se de vez em quando precisarmos de voltar atrás para encontrar os detalhes, as pedras, as chaves para abrir as portas deste dilúvio, o importante é que no fim compreendamos que, quaisquer que sejam as dificuldades da vida e do mundo que nos rodeia, o nosso movimento é sempre para nos salvarmos, para alcançarmos a felicidade.

A capa não podia ser mais apropriada. Um jovem louro, de mochila às costas, observa atentamente “A Ronda da Noite” de Rembrandt. A sinopse, na contracapa, que geralmente dispenso, é sintética e perfeita. Leo, que está sempre a desabafar connosco, leitores, tem uma relação muito forte com alguns dos quadros do museu, que visita assiduamente. Mário, o pai de Leo é segurança no museu e Leo encontra nesses quadros e nas suas figuras “a família” que não tem em casa. Primeiro as discussões, os gritos e depois as cenas são-lhe insuportáveis. “As Figuras dentro dos quadros, acolhiam-no como uma grande família, unida para sempre” (pág. 14), algo que nem Mário, nem Nina a mãe, nem Mart, o escritor companheiro do pai lhe conseguiam dar. A saída seria a fuga em que criasse uma máscara que fosse a síntese de detalhes de cada um dos quadros, mas “sem sorriso algum” (pág. 95). O grande problema era não poder levar o Cão Puck. Leo estabelece um pacto de silêncio com o leitor/a, a quem pede ideias, sugestões e a quem confia o seu plano de fuga.

Anos antes, Mário vira-se forçado a abandonar o Alentejo, quando o pai e os companheiros da venda, “o peso de uma voz em fúria e o peso das vozes masculinas, unidas pelo escárnio, enfim reconciliadas” (pág. 78) o tinham expulsado “repelindo essa nódoa de virilidade” (pág.66). Agora, depois de expulso do museu, por não ter conseguido reprimir a sua fúria, reencontra-se com a velha mãe perdida no seu mundo, mas com lampejos de memórias, para a salvar do dilúvio. Quem resgatar? O que resgatar? “Depois de enrouquecer, sem resposta do filho, Mário abandonou-se a um canto do barco. As lágrimas da vida inteira corriam de uma só vez, rendidas à inutilidade da coragem, à ineficácia das fugas sucessivas. Não existem regressos nem reencontros, pensava ele. Todos os passos vãos, menos os que se encaminham para o fim.” (pág. 131).

Quando cheguei ao fim deste livro, percebi que numa segunda, terceira leitura iria certamente descobrir outros sentidos, mas foram o sentido da fuga e da luta pela felicidade as marcas que senti mais fortes, neste mais recente livro de Julieta Monginho, autora com diversos prémios ao longo duma carreira literária com mais de vinte e cinco anos.

Maio 2022

Almerinda Bento

O Autocarro de Rosa Parks

10.06.22, Almerinda

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Este ano, provavelmente já teria ido, pelo menos uma vez à Feira do Livro. Já teria percorrido os pavilhões ao longo das duas áleas que ladeiam o Parque, já teria olhado maravilhada para os jacarandás, já teria encontrado uma sombra para me sentar a descansar e a beber água, já teria folheado os livros que tinha comprado, tentando descobrir alguns dos que faziam parte da lista a que vou acrescentando sempre mais um...

O ano passado fui lá três vezes, para matar uma imensa saudade. Não sei por que motivo este ano a Feira não aconteceu na época dos jacarandás. A covid continua aí, mas a maior parte de nós já anda sem máscaras, já foi vacinada e já esteve infectada. Em 2022 a Feira do Livro vai novamente ser no Verão, no fim de Agosto até 11 de Setembro.

Em 2013 comprei este livro. A recordar-me tenho o facebook que nos lembra estas coisas e hoje decido postar aqui um pequeno texto sobre este livro que comprei nesse ano, quando ainda não tinha criado o meu blogue. 

O Autocarro de Rosa Parks, Fabrizio Silei e Maurizio Quarello, 2011

Era um livro que procurava há já alguns meses e que finalmente descobri no último dia da Feira do Livro deste ano. Estava na secção infanto-juvenil de uma das editoras presentes, mas como acontece com os bons livros para crianças, a sua leitura adapta-se a qualquer idade, quer se seja criança, jovem ou adulto/a.
Trata-se de uma viagem feita por um avô e neto ao Museu Henry Ford em Detroit, para verem, entrarem e sentarem-se naquele lugar onde a 1 de Dezembro de 1955, Rosa Parks, uma costureira negra de 44 anos se recusou a ceder o seu lugar no autocarro a um homem branco. Essa recusa, esse “NÃO” convicto e sereno foi o detonador de um movimento formidável da comunidade negra norte americana contra a segregação racial, apoiada por um outro homem de grande coragem que foi Martin Luther King.
O avô, um dos passageiros negros que então cedera o seu lugar como era habitual, quis dar ao neto o testemunho da coragem dessa mulher que, por se ter recusado a fazer o que era suposto, fez história e mudou uma página no curso da luta pela justiça e emancipação social.
«Há sempre um autocarro que passa pela vida de cada um de nós. Mantém os olhos bem abertos e não percas o teu.»
Não é por acaso que a Amnistia Internacional Portugal associou o seu logo à edição deste belo livro que vale não só pelo texto de Fabrizio Silei como pelas expressivas ilustrações de Maurizio Quarello.
Para ser lido e relembrado este gesto de resistência à segregação e ao apartheid protagonizado por uma simples mulher, associando-lhe os nomes de grandes figuras da luta contra o racismo: Martin Luther King e Nelson Mandela.