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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Maria Stuart, Stefan Zweig

30.04.22, Almerinda

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Maria Stuart, Stefan Zweig, 1935

Em 2018, li quatro contos de Stefan Zweig, por ocasião de uma das sessões do Clube de Leitura da Livraria Bertrand do Chiado em que fomos convidas/os a descobrir a obra deste autor austríaco. Fiquei tão entusiasmada com a capacidade do autor de analisar as personagens, que na altura decidi que no futuro havia de ler uma das diversas biografias que Zweig escreveu. Há pouco “tropecei” neste “Maria Stuart” num leilão online de livros duma alfarrabista e logo não hesitei em comprar uma 9ª edição de 1961, da Livraria Civilização, com tradução de Alice Ogando.

No breve prefácio, o autor chama a atenção para o facto de a rainha Maria Stuart ser porventura aquela que é objecto de leituras e interpretações mais contraditórias, de acordo com quem as faz, sua origem, religião, corrente ou concepção social. Sendo esta biografia baseada em documentos, quis o escritor “ser mais objectivo e abordar esta tragédia com toda a paixão, mas com toda a imparcialidade de artista. (…) E por muito prudente que se possa ser na escolha, o historiador será obrigado, muito honestamente, a acompanhar a sua opinião com um ponto de interrogação e de confessar que este ou aquele acto da vida de Maria Stuart ficou obscuro e ficá-lo-á provàvelmente para sempre.”

O que posso dizer desta biografia, agora que terminei a sua leitura? É extraordinária. E com vontade de em breve ler “Maria Antonieta” do mesmo autor, a qual já antes me foi aconselhada. E, embora isto seja mais difícil,  com vontade de voltar a Edimburgo e olhar para o palácio de Holyrood e o imponente castelo com outros olhos, lembrando aquela que “com seis dias foi rainha da Escócia, com seis anos noiva do príncipe mais poderoso da Europa , com dezassete anos rainha de França” (pág.41), aos dezoito viúva, rainha da Escócia e herdeira legítima da coroa de Inglaterra, embora tenha tido sempre a barreira intransponível de Isabel que nunca lha concedeu. 45 anos duma vida aventurosa que Stefan Zweig vai, ao longo de cerca de quatrocentos páginas narrando, de forma rigorosa, com uma riqueza e profundidade na análise psicológica das personagens, estabelecendo com o leitor  um diálogo fluido e claro.

Período conturbado da história europeia aquele século XVI. As potências digladiavam-se ambicionando aumentar o seu poderio. A Reforma e a Contra-Reforma jogavam os seus peões e estendiam a sua influência. Os casamentos combinados das crianças que viriam a ser os futuros reis e rainhas eram a moeda dos negócios das potências de então. Os espiões, traidores, intriguistas enxameavam a corte num ambiente que podia ir das cartas melosas e dissimuladas, mas cheias de alçapões, até aos cativeiros sem fim mas sem serem cruéis, mas também aos envenenamentos ou às mortes brutais com o punhal ou com o machado do carrasco, qual espectáculo para gáudio do povo. Shakespeare só teve de usar o seu génio para criar as suas personagens trágicas a partir das personagens de carne e osso do tempo em que viveu.

No centro da biografia de “Maria Stuart”, para além da jovem despreocupada, culta, apaixonada, impetuosa, sedutora, destemida, corajosa, arrogante e que escolhe morrer como mártir pelas suas convicções religiosas, todo o drama da vida de Maria gira em torno do facto de ser a herdeira legítima da coroa de Inglaterra. Para Isabel, filha de Henrique VIII e de Ana Bolena, declarada bastarda em vida do pai, mas rainha de Inglaterra por morte da meia-irmã Maria, a existência da prima Maria Stuart foi sempre um perigo e um obstáculo de que se quis livrar com receio de que a coroa de Inglaterra lhe fosse retirada. Ao longo de vinte e cinco anos, Isabel fez da recusa do contacto, do fingimento, da ambiguidade e da falsidade na sua relação com a prima, a quem tratava por “sua irmã”, as armas que usou como escudo para a fragilidade da sua ascendência.

O livro é verdadeiramente maravilhoso, numa narrativa marcada por períodos decisivos da vida da rainha Maria Stuart com indicações precisas de datas relevantes, sendo as descrições de um escritor de elevada qualidade. Destaco o penúltimo parágrafo  – No meu fim está o meu começo (8 de Fevereiro de 1587) – o mais dramático e o mais visual, referente às últimas horas de Maria Stuart antes de subir ao cadafalso até ao momento em que o carrasco desfere os três golpes que concluem a decapitação de uma mulher que não vergou. “Agora, pouco mais tem que fazer. Inclina a cabeça sobre o cepo, que abraça com os dois braços. Até ao último momento, Maria Stuart conserva a sua grandeza de rainha. Nenhuma das suas palavras, nenhum dos seus gestos exprimem medo. A filha dos Stuart, dos Tudor, dos Guise preparou-se para morrer dignamente.” (pág.381).

27 de Abril de 2022

 

 

71 anos

28.04.22, Almerinda

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71 anos

Não sei o que o meu smartphone me vai dizer amanhã quanto tempo a mais estive ligada a ele. Mal me levantei, a indicação de que havia mensagens no facebook, no sms e no whatsapp “obrigou-me” a abri-las antes de tomar o pequeno-almoço. São rotinas a que já não escapamos.

Tinha levado a “Visão” da semana passada para a cozinha porque queria ler a entrevista do Sérgio Godinho a propósito dos 50 anos de “Os Sobreviventes” e as “Novíssimas Cartas Portuguesas”, 50 anos depois da publicação do livro das 3 Marias que a censura proibiu por considerar “insanavelmente pornográfico e atentatório da moral pública”. Em dia de aniversário, merecia começar bem o dia e bem acompanhada ao pequeno-almoço, já que o isolamento me tem estado a obrigar a ficar em casa... É verdade que nestes dias, acordo sempre triste porque já não tenho cá a mãe que às 8h 30m em ponto me ligava para me lembrar que tinha sido naquele hora que eu decidira sair para o mundo; porque já não tenho cá o pai e o seu sorriso doce a dar-me os parabéns; porque já não tenho cá a querida Bel que dava sempre aos outros mais do que aquilo que recebia. É impossível nestes dias de comemoração não lembrar as nossas festas em que estávamos todos juntos e sentir essa perda que só é colmatada com as recordações felizes.

Impressiona-me pensar que já passaram 71 anos. Um tempo que me permitiu fazer muitas amizades, viver muitas vidas, muitas experiências, elaborar pensamento e acção, descobrir tantas coisas e perceber que há tanto por conhecer e fazer. Neste dia em que agradeci tantas felicitações senti-me privilegiada e orgulhosa pela pessoa que sou.

Mais uma vez vou escrever a frase que mais escrevi e disse no dia de hoje: muito obrigada.

28 de Abril de 2022

Aguarela da minha amiga Eisabete Trinta

Contos de Cães e Maus Lobos, Valter Hugo Mãe

06.04.22, Almerinda

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Para ti, Zita, irmã do coração, que tiveste o carinho de me oferecer este belo livro num dia de anos. 

“Contos de Cães e Maus Lobos”, Valter Hugo Mãe, 2015

À medida que fui lendo “Contos de Cães e Maus Lobos”, o quinto livro que leio de Valter Hugo Mãe, fui percebendo que me iria ser difícil escrever sobre os doze contos deste livro. Achei mesmo que me iria limitar a transcrever alguns excertos mais significativos que me tinham mais impressionado. Para além da escrita pessoalíssima de Valter Hugo Mãe, cada conto é acompanhado de imagens de artistas plásticos que o autor convidou. Destaco a capa belíssima de Paulo Damião que ilustra o primeiro conto “ A Menina que carregava Bocadinhos” e o prefácio de Mia Couto a que deu o título “Um Pequeno Prefácio para Contos Gigantes”. A certa altura, Mia Couto escreve: “ Tal como nos livros anteriores, há nesta antologia de contos o convite ao regresso a um recanto de que nunca saímos, um reencantamento de infância, uma cumplicidade de quem partilha vazios e silêncios”. (…) “ Está nestes contos aquilo que está em toda a sua obra: o questionar das nossas certezas mais fundas, uma visita às profundezas da alma.” (…) “E é por isso que estes contos, mais do que gigantescos, não têm tamanho.”

“A Menina que carregava bocadinhos” é o sonho de liberdade. “A liberdade também era isso, não voltar”… …a criada vestiu a sua blusa de princesa e soltou os cães que se puseram em rebuliço e latindo.” (pág. 29).

“O menino nadou para depois de uma onda grande e não voltou. A mãe estendeu as mãos na água buscando o seu corpo diluído. Julgava ela que o filho se diluíra como um cubo de açúcar incapaz de adocicar o mar. Jurou que o buscaria sempre. Haveria de o reconhecer nem que ele se tornasse ínfimo.” (pág. 37). Assim começa o segundo conto com o título “O menino de água”, que na nota do autor que figura no final do livro “é para todas as pessoas que acreditam que as crianças não se podem perder pela tragédia do mundo que os adultos criam.” (pág. 159).

Crescer não é fácil; por vezes é até doloroso e um processo solitário. Assim li “Querido monstro” de que escolhi esta passagem: “…nenhuma tristeza define obrigatoriamente o que podemos fazer no dia seguinte. No dia seguinte, ainda que guardemos a memória de cada dificuldade, podemos sempre optar por regressar à busca das ideias felizes.” (pág. 52).

Quando decidimos não agir em conformidade com aquilo que a sociedade espera de nós, podemos ser postos de lado ou ser considerados malucos. Assim aconteceu com “A princesa com alma de galinha”. “Um dia, a princesa disse que queria ser enfermeira e imediatamente correu pelo reino a notícia de que a moça estava maluca.” (pág. 59).

Da história de uma criança que vive no cimo de um monte isolado com a mãe e o pai que é guarda-florestal, transcrevo este parágrafo e relevo o papel determinante que certos professores e professoras têm nas nossas vidas e na nossa maneira de olhar para o mundo: “Percebi que para dentro de nós há um longo caminho e muita distância. Não somos nada feitos do mais imediato que se vê à superfície. Somos feitos daquilo que chega à alma e a alma tem um tamanho muito diferente do corpo.” (pág. 85).

“O rapaz que habitava os livros” fala de quando a paixão dos livros se sobrepõe a tudo. “Os livros não esquecem nada. Eles são para sempre a mesma memória admirável. Esquecer livros é uma agressão à sua própria natureza. Embora, na verdade, eles nem se devam importar, porque podem esperar eternamente.” (pág. 93). “Todos os livros são conversas que os escritores nos deixam. Podemos conversar com Camões, Shakespeare ou Machado de Assis, mesmo que tenham morrido há tantos anos. A morte não importa muito para os livros”. (pág. 95).

“Tinha um pássaro no coração. Era assim mesmo, o lugar mais decente para aprisionar um animal de estimação”. (pág. 106), do lindíssimo conto “Modo de amar”.

A história da menina do capuchinho vermelho e do lobo mau é recriada em “O mau lobo”. Aqui de novo a inocência da menina e do lobinho que vai ser curado com as mezinhas que a avó conhece.

“As mais belas coisas do mundo” foi talvez o conto que mais amei de entre os doze contos do livro, o qual nos fala da relação do narrador com o seu avô. Dá vontade de o transcrever todo, de o reler e reler e reler. “Eu entendi que o meu avô era como todas as mais belas coisas do mundo juntas numa só. E entendi que fazer-lhe justiça era acreditar que, um dia, alguém poderia reconhecer a sua influência em mim e, talvez, considerar de mim algo semelhante. Com maior erro ou virtude, eu prometi tentar.” (pág. 128).

Quando li “Quatro Velhos”, o penúltimo conto, não consegui deixar de pensar no conflito actual entre a Rússia e a Ucrânia!

Neste encantamento que é ler e ficar a matutar depois de cada conto, chego ao último “Bibliotecas” ilustrado por Jas e fico rendida logo com a primeira frase: “As bibliotecas deviam ser declaradas da família dos aeroportos, porque são lugares de partir e de chegar.” (pág. 149). Vira-se a página, no alvoroço da descoberta que Valter Hugo Mãe nos propõe sobre o que são as bibliotecas, e não resisto: “Adianta pouco manter os livros de capas fechadas. Eles têm memória absoluta. Vão saber esperar até que alguém os abra. Até que alguém se encoraje, esfaime, amadureça, reclame o direito de seguir maior viagem. E vão oferecer tudo, uma e outra vez, generosos e abundantes. Os livros oferecem o que são, o que sabem, uma e outra vez, sem se esgotarem, sem se aborrecerem de encontrar infinitamente pessoas novas. Os livros gostam de pessoas que nunca pegaram neles, porque têm surpresas para elas e divertem-se com isso. Os livros divertem-se muito.” (pág. 150). E a terminar: “Todos os livros são infinitos. Começam no texto e estendem-se pela imaginação. Por isso é que os textos são mais do que gigantescos, são absurdos de um tamanho que nem dá para calcular. Mesmo os contos, de pequenos não têm nada. Se os soubermos entender, crescemos também, até nos tornarmos monumentais pessoas. Edifícios humanos de profundo esplendor. // Devemos sempre lembrar que ler é esperar por melhor”. (págs. 151, 152)

Na Nota do Autor, que encerra o livro, acompanhada da arte de Duarte Vitória, Valter Hugo Mãe esclarece que “Não sei escrever para crianças. Acho que apenas ausculto a sua candura, mas não sei rigorosamente dirigir-me a elas. Sou desajeitado. Os contos que invento ficam arrevesados de ser uma coisa e outra. Talvez sejam a consciência magoada pela evidência de hoje me ter adulto”.

Se quem ler este meu texto tiver ficado tentado a ler este “Contos de Cães e Maus Lobos” já me darei por feliz. É de facto um livro invulgar.

6 de Abril de 2022