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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Homens Imprudentemente Poéticos, Valter Hugo Mãe

29.03.22, Almerinda

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“Homens Imprudentemente Poéticos”, Valter Hugo Mãe, 2016

De cada vez que leio Valter Hugo Mãe percebo que estou a entrar num mundo muito próprio, em que a língua se transfigura e em que as personagens têm de ser lidas para além da capa exterior que as cobre. Comecei com o Sr. Silva e os companheiros de fim de vida no lar “Feliz Idade” em “a máquina de fazer espanhóis”(2010); seguiu-se Halla nos fiordes da Islândia, a sobreviver à morte da irmã gémea em “A Desumanização”(2013) e depois, o mais perturbador de todos, “o remorso de baltazar serapião” (2006) que lhe valeu o prémio José Saramago e que o Nobel classificou de “tsunami”.

Depois de algum tempo sem ler nenhum romance deste autor – para além das crónicas com o título Autobiografia Imaginária no JL – e porque já três novos livros de Valter Hugo Mãe se amontoavam na pilha dos “a ler/oferecidos”, foi a vez deste “Homens Imprudentemente Poéticos”. E quem são estes homens imprudentemente poéticos? Dois vizinhos num Japão antigo, o artesão Itaro e o oleiro Saburo, que criam uma inimizade incompreensível, como tantas vezes acontece. O artesão na arte de fazer leques é um homem obstinado, obcecado em fazer premonições sobre acontecimentos futuros, a partir da morte de animais/insectos. O oleiro, também ele um homem obstinado, pensando que conseguia salvar a mulher da morte que lhe havia sido profetizada por Itaro, faz crescer o jardim pela floresta adentro. Além destes dois homens que são afinal as personagens principais do romance, as figuras femininas são Matsu “que faz parte das pessoas diferentes” (pág. 47) é a irmã cega de Itaro, cuidada pela criada Kame. A senhora Kame, que tinha sido acolhida pela família do artesão, é a pessoa cuidadora, protectora, que está sempre presente em função dos outros “era um bicho domesticado. Viam-na com o carinho que se dava aos gatos enamorados por seus donos”.(pág. 38). E por fim, a senhora Fuyu, a mulher do oleiro Saburo, cuja presença ele teima em manter mesmo depois de morta, usando o seu quimono como espantalho nos canaviais, para afugentar os pássaros e, se possível, para a fazer voltar.

Como acontece com todos os livros de Valter Hugo Mãe, este é também muito visual. A floresta, lugar mágico povoado de bichos onde os suicidas procuram a sua morada derradeira, as violetas, as cerejeiras em flor, as flores do jardim, o lago Biwa e os seus peixes e, especialmente, o poço. A cena do poço no fundo do qual Itaro vai permanecer “sete sóis e sete luas” vai ser um lugar de descoberta, onde experiencia a mais profunda escuridão igual à cegueira da irmã e onde vence na luta contra o medo. É um dos capítulos mais intensos, assim como os três capítulos sobre a irmã Matsu que constituem a terceira parte do romance e que são duma enorme beleza poética.

Termino com alguns excertos para mim muito significativos:

“Contar-se-ia para sempre que um homem fora condenado a meditar no fundo de um poço durante sete sóis e sete luas e que, apavorado com o escuro, se amigou do próprio medo. Sentindo-lhe carinho.” (pág. 165)

“… o artesão cerrou os olhos, ainda mal acostumado à abundância da luz, e sentiu-se confortável  no escuro. Educara-se para o escuro. De verdade, sentiu nenhum medo da cegueira. Considerou que ficar sem ver era da ordem da limpeza. E o sábio disse: inclui-te naqueles que frequentam a universalidade.” (pág. 166)

“Ela sabia apenas da beleza das palavras porque era com elas que se explicava o mundo.”  (pág. 174)

“A cega, mais do que nunca, entendia o que era conhecer alguém e começava a dizer: conheço-te. Era a maneira mais exacta que tinha de afirmar que o via.” (pág. 177)

“Obstinado com pintar um novo leque, na expectativa do que lhe mostraria, tanto quanto outrora ansiava por saber o que veria no morto de algum bicho.” (pág. 183)

“Contava-se que saíra do poço tão imprudente quanto mágico.” (pág. 184)

“E Itaro pintava, demorava-se absurdamente a ver cada leque, e subitamente regressava à necessidade de pintar. Era inesgotável. Ele dizia. Que o deslumbre nunca se eternizava.” (pág. 184)

“… sei pouco, sei que há algo mais para saber. Pressentia que a arte era uma revelação, assentava numa suspeita mas nunca garantiria que resultado teria, afinal. Estava diante de um pressentimento de haver algo para descobrir mas faltava-lhe conhecer o quê. Apenas os leques, leque a leque, o levariam utopicamente mais além”. (pág. 185)

 

28 de Março de 2022

 

11 -12 -13

17.03.22, Almerinda

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11-12-13

Ano 2020

11 de Março – acabaram-se os beijinhos. Portugal registava 60 pessoas infectadas com covid 19 e eu desmarcava tudo a partir dessa data. Segundo a OMS, tinha-se entrado em pandemia e a doença já tinha atingido 114 países. O funeral da Conceição foi o último acto público a que fui antes de me fechar em casa.

12 de Março – o 1º dia em que fico em casa.

13 de Março – Portugal entra em estado de alerta até dia 9 de Abril; já se registaram 112 pessoas infectadas. A viagem programada a Berlim no final do mês fica sem efeito.

Ano de 2022

11 de Março – Bilbau é o destino que escolhemos para gastar algum do dinheiro da viagem a Berlim que não se realizou. O peso da guerra que deflagrou na Ucrânia desde 24 de Fevereiro não nos deixam pingo de motivação, mas lá vamos bem cedo a caminho do aeroporto. A covid continua, mas a guerra é avassaladora e parece que a pandemia deixou de existir. Só as máscaras e os controlos sanitários no aeroporto de Bilbau nos ajudam a lembrar aquilo que a comunicação social esqueceu. Será que o fim-de-semana em Bilbau nos ajudará a esquecer o que se passa no leste do continente europeu?

Da cidade de que só conhecia o aeroporto muito pequeno, ficara-me a imagem fugidia e longínqua daquela vez em que tinha ido a Irun, para uma reunião da MMM há vários anos com a Isabel Bento. Na preparação para esta vez, tinha pesquisado o tempo e alguns locais com interesse para visitar.

O primeiro dia foi mesmo para sentir o pulsar da cidade. Calma, acolhedora, num vale, com uma arquitectura equilibrada e harmoniosa, percorrer as margens do rio Nervión e perceber que aquela é uma cidade com muitos cães, com muitas pessoas em cadeiras de rodas, com corredores para bicicletas e onde nunca vimos dejectos de animais, raramente pontas de cigarros e só num sítio duas ou três máscaras atiradas no chão! Tudo tão distinto das nossas cidades, tão agradável e respeitador. Mau mesmo, o rio muito poluído, de um verde acastanhado baço e triste. Era preciso experimentar os primeiros pintxos e o Mercado da Ribeira foi a melhor escolha, com um painel logo na entrada a celebrar grandes mulheres e certamente a lembrar que naquela como em muitas outras cidades do estado espanhol, o 8 de Março é mesmo para ser celebrado. Depois foram as 7 calles que são o osso da Cidade Velha. Andar a pé, desfrutar do piso plano, mas perceber que muitas escadarias e subidas seriam preciso escalar, se queríamos conhecer a cidade para além da zona do rio Nervión.

À noite, seguimos para o lado oposto ao que tínhamos feito de manhã, para ver o edifício Guggenheim e a famosa Ponte Zubizuri da autoria de Santiago Calatrava. Fiquei fascinada e rendida quando me aproximei do Puppy de Jeff Koons. As flores eram mesmo flores a sério e o cheiro era real. Claro que a aranha Maman de Louise Bourgeois se impõe também pelo tamanho, mas o cachorro florido é uma verdadeira beleza. A chuva que não estava prevista obrigou-nos a mais uma entrada num bar, para mais uma bebida e mais um pintxo! Mas da molha não nos livrámos!

12 de Março – a excelente impressão sobre o hotel – Barceló Bilbao Nervion – ficou confirmada com o duche e o pequeno-almoço. Tudo muito bom, mas agora era preciso atravessar a ponte de Calatrava e conhecer o Guggenheim lá por dentro, ver o Puppy e a Aranha, mas de dia. Era sábado e o movimento na rua não se comparava com a calma da cidade que tínhamos desfrutado no dia anterior. Mas antes, subimos no Funicular Artxanda para conhecer o parque com esse nome e observar a cidade de Bilbau do alto. Muita sorte com o tempo que estava agradável e com óptima visibilidade. Muita gente no parque, muitas crianças e muitas pessoas da minha idade, ou seja, gente que já não é nova. Em Portugal, cada vez se vêem menos carrinhos de bebé a serem empurrados por jovens casais, mas aqui não. Há muitas crianças na rua, muitas crianças a brincar nos parques, muitas crianças a brincar livremente enquanto os pais e mães confraternizam ruidosamente nos cafés, nas esplanadas, na Plaza Nueva, que visitámos à noite e que é um verdadeiro festival de convívio e de animação. E os velhos não ficam em casa. Também mantêm o gosto por sair, por ir beber um copo, por passear ao longo do rio, por aproveitar a vida palpitante da rua.

Foi um dia esplêndido e muito intenso. Pela primeira vez vi um Rothko ao vivo no Museu Guggenheim, para além de muitos pintores de que já tinha visto obras noutros museus, como Robert Delaunay, Fernand Léger, Matisse, Modigliani e outros. Mas Rothko foi mesmo uma estreia absoluta! No piso térreo do museu, uma impressionante obra em aço de Richard Serra intitulada The Matter of Time. O fim da tarde foi para andar de barco, partindo do cais mesmo em frente ao hotel, seguindo por debaixo da ponte Zubizuri, olhando para o fantástico edifício de Frank Gehry, o Monumento do Sagrado Coração, a Universidade, o Estádio de San Mamés e depois toda a zona industrial com muitos edifícios há muito sem préstimo, com fábricas encerradas, lembrando uma época passada como acontece em Portugal. Foi também nesta parte do percurso de barco que mais se viam bandeiras lilás nas janelas, muitas mesmo, lembrando-me as companheiras feministas bascas, galegas e catalãs que conheci ao longo da vida.

13 de Março – a manhã tinha mesmo de ser para conhecer o Parque de El Arenal famoso por ser o local de exposição e venda de flores, para além de velharias, livros, moedas, ou seja, o sonho dos coleccionadores e dos amantes de flores. Os dois grandes telheiros que víramos nos dias anteriores vazios, estavam agora ocupados por vendedores com os seus produtos. Mas faltava-nos o grande Parque Etxebarria e a famosa Basílica de Begoña. Por ignorância, acabámos por lá chegar pelo caminho mais difícil, que parte da Praça Miguel Unamuno. Uma escadaria sem fim, embora ao lado houvesse um caminho paralelo sem escadas, mas igualmente difícil. Mas, chegar ao parque e entrar a basílica valeram bem a pena. Foi neste parque que vi mais gente de idade a passear, muitos casais com crianças, muitas pessoas a passear os seus cães e sempre o cuidado de apanhar os cocós que os animais naturalmente precisam de fazer…

A despedida para o almoço, antes do regresso ao aeroporto, foi de novo no Mercado da Ribera. Foram três dias muito agradáveis numa cidade que me surpreendeu pela arquitectura, pelas pessoas, pelo ambiente amigável, pela acessibilidade para todas as pessoas, pela vitalidade e onde me senti muito bem. Em três dias pode-se fazer muito, ver muita coisa e aproveitar o mais possível, desde que se esteja disponível para tal.

Foi uma pausa de que já tinha saudades.

A senhora da fotografia

08.03.22, Almerinda

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A senhora da fotografia

Hoje, ao olhar para a primeira página do Público, percebi que estava naquela fotografia a minha Notícia do Dia para o SPGL. Era óbvio. A guerra e os seus efeitos na vida das mulheres. É o 8 de Março, Dia Internacional das Mulheres. Em muitos sítios, muitas empresas e instituições lembram-se de oferecer neste dia gerberas e outras flores às mulheres, para lhes dizer que pensam nelas, que gostam muito delas, que as respeitam… bla, bla, bla. Sempre achei hipócrita esse gesto, mas isso é porque tenho mau feitio… Mas voltando à fotografia da capa do jornal Público, um soldado apoia e agarra pela mão uma senhora idosa que caminha sobre uma prancha de madeira. Mais atrás crianças, mulheres e homens fazem fila e aguardam a sua vez de o fazer. A senhora idosa olha o soldado nos olhos e certamente agradece-lhe, não só pelo seu gesto, mas porque é um dos muitos milhares de homens que estão no terreno a suster o avanço das tropas russas e a defender a sua terra.

Na guerra, são as mulheres, as crianças, as pessoas idosas e os mais vulneráveis quem sofre de forma mais aguda os efeitos e as consequências da barbárie. As desigualdades aumentam, a violência de género chega a níveis inauditos pois muitas vezes os corpos das mulheres são despojos de guerra, a pobreza torna-se endémica, as crianças deixam de ter acesso à escola, tudo fica suspenso ou paralisado. Os direitos ficam em stand by quando não retrocedem e isso para as mulheres, na sociedade patriarcal em que vivemos é dramático.

Mas avanço no jornal. Folheio-o à procura de mais notícias neste dia em que as Mulheres são fonte de notícias, comentários, análises, estudos, estatísticas. Voilà! página 16 – Política – “Legislativas de 30 de Janeiro elegeram menos mulheres”. A jornalista Marta Roque escreve dois artigos: “Secretária de Estado da Igualdade defende «regras explícitas» na lei da paridade” e “Pandemia atrasou em 30 anos o progresso das mulheres na paridade”. Encaixado entre os dois artigos, lá aparece a fotografia do presidente e a referência à sua mensagem neste dia, numa coluna com o título “Marcelo: balanços nos direitos das mulheres ainda «insuficientes»”.

Agradeço à senhora da fotografia ter-me ajudado a escrever o que queria neste Dia Internacional das Mulheres. Uma fotografia muitas vezes vale muito mais do que cem palavras. Daqui a um ano como estaremos? Tivemos uma pandemia que ainda não se foi embora, entrámos numa guerra que não sabemos quando nem como vai terminar… As mulheres pioraram nas suas vidas com a pandemia e tudo isso se vai agravar com a guerra. Por isso elas querem e pedem Paz. Paz! Tão simples, mas tão difícil.

8 de Março de 2022

Almerinda Bento

Nota: Quinzenalmente, faço um pequeno artigo para o meu sindicato, o SPGL, sobre uma notícia do dia, a partir de um jornal à escolha. Hoje foi isto. 

 

 

O Atalho dos Ninhos de Aranha, Italo Calvino

06.03.22, Almerinda

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O Atalho dos Ninhos de Aranha, Italo Calvino, 1947

Gosto sempre de ler um livro com um prefácio que me ajude a contextualizá-lo nas suas várias facetas. Em 1964 Italo Calvino fez um prefácio para o seu “O Atalho dos Ninhos de Aranha”de 1947. É um longo prefácio em que por várias vezes retoma a frase inicial “Este romance foi o primeiro que escrevi”. Escrito pouco depois da Libertação e da sua experiência como membro da Resistência à ocupação nazi, Calvino reflecte que o livro resulta da energia e da alegria do fim da guerra, da necessidade de verter para o papel a força da oralidade sem limites naquela época, de não querer pôr-se no papel de narrador que escreve as suas memórias de partigiano, pelo que decidiu que enfrentaria o tema “não de caras mas de esguelha. Devia ser tudo visto pelos olhos de uma criança, num ambiente de garotos e vagabundos. Inventei uma história que ficasse à margem da guerra de resistência, dos seus heroísmos e sacrifícios, mas que ao mesmo tempo nos transmitisse a sua cor, o sabor áspero, o ritmo…” Inconformista, avesso às directivas, cartilhas e imagens formatadas e normativas de conduta e militância, escolheu esse garoto – o pequeno Pin – antítese do herói socialista e do romantismo revolucionário, alguém que estilhaçasse os conceitos de herói e de consciência de classe.

O livro é dedicado a Kim – grande amigo e companheiro da Resistência de Italo Calvino – sendo que no capítulo IX a sua personalidade e características de dirigente político rigoroso e analítico são vertidas, dando um tom ideológico que corta, até certo ponto, o fio da narrativa em que Pin e os partigiani são os protagonistas. Pin é a criança que cresce de forma um tanto ou quanto selvagem, sem regras, sem amor, que mascara a sua solidão e desamparo com provocações aos mais velhos, a sua forma de entrar no mundo dos homens e de se sentir um deles. Ele quer ser acolhido pelos grandes, pelos homens da taberna, pelos partigiani, é coscuvilheiro, desvenda os segredos do bairro pobre, canta canções que os homens gostam de ouvir. Para os homens da taberna, Pin é importante porque é irmão da Morena do Beco Comprido. Para Lupo Rosso, Pin é importante porque tem uma arma, escondida num lugar único, mágico, que só ele conhece – o atalho dos ninhos de aranha – a sua única riqueza. Quando é confrontado com a possibilidade de desvendar onde fica esse atalho que leva à arma escondida, Pin hesita porque “o lugar dos ninhos de aranha é um grande segredo e é necessário que seja um verdadeiro amigo, em tudo e para tudo” (pág. 92)

Só há um homem de entre todos aqueles que olha para Pin como uma criança que precisa de carinho, ele também adulto carente. “Primo o grande, doce e cruel Primo” (pág. 211) é o único que “o leva pela mão, aquela grande mão, macia e quente como pão.” (pág. 226).

No prefácio, Italo Calvino escreve a certa altura “A Resistência representou a fusão entre paisagem e pessoas” (pág. 12) . Na minha memória, os bosques, os esconderijos, as casas abandonadas onde homens sujos se amontoam, o vale, os viveiros de cravos, os campos de rododendros, a preocupação dos homens ao encontro da coluna dos alemães: “É um dia azul como os outros, tão azul que quase faz medo, um dia com cantos de passarinhos que quase faz medo ouvir.” (pág. 189).

Um livro lindíssimo.

3 de Março de 2022