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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Natasha

27.02.22, Almerinda

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Natasha. Natalya.

Estive com a Natasha, dois dias antes de ela fazer 42 anos. Na altura ela disse-me que estava em Portugal há 21 anos, precisamente metade da sua vida tinha-a passado aqui.  

Nestes 21 anos casou, teve dois filhos – um rapaz e uma rapariga – divorciou-se depois de ter vivido uma situação grave de violência doméstica, sobreviveu, criou o seu próprio negócio depois de o patrão ter encerrado o salão de cabeleireiro, sobreviveu a uma pandemia que a obrigou-a a ter o seu próprio salão fechado… Natasha é uma mulher linda, uma lutadora nata, uma sobrevivente às intempéries da vida.

Quando lhe perguntava como ia a família reagindo às investidas russas quando ainda a guerra era uma palavra impensável e por cá se percebia pela comunicação social que a escalada agressiva era real, ela respondia-me com a serenidade que lhe conheço que os pais e irmã estavam tranquilos e que a haver problemas o plano B era a Polónia.

A serenidade de Natasha continuei a senti-la na sua voz quando lhe telefonei no início da semana passada. A família e o povo ucraniano já estavam habituados e depois da invasão da Crimeia tudo era possível… Depois do dia 24 envio-lhe uma mensagem escrita e ela responde-me destroçada por sentir que a sua cultura, a sua identidade, o seu modo de vida estão a ser postos em causa por Putin e pelo exército russo e agradece todo o carinho.

Fico com o coração destroçado. Vejo as imagens na televisão e vejo a Natasha em todas aquelas mulheres que carregam os filhos, meia dúzia de coisas essenciais, deixando para trás os filhos, os maridos, os pais, as casas, a sua vida.

O meu vizinho do lado também é ucraniano, mas não sei como se chama. Educado e simpático, a nossa relação é mais pelos gatos que ele tem e que eu tenho. Conversas de circunstância sobre gatos, o pagamento do condomínio sempre a horas, bom dia, boa tarde, até logo. Hoje encontrámo-nos na escada e disse-lhe que ia à manifestação pela paz na Ucrânia. Ergueu as sobrancelhas, sorriu e disse muito bom. Acrescentou que a família que vive perto da região “separatista” (assinalou as aspas com os dedos) de Donetsk, mas em território da Ucrânia, ainda está bem.

Junto-me aos manifestantes. Dizem que foram dez mil, não sei fazer essas contas. Logo as televisões irão dizer um número. Só sei que éramos muitos. Muitos jovens e muita gente de todas as idades. O azul e o amarelo predominavam nas bandeiras, na roupa, num lenço ao pescoço, no bandeirão que passou de mão em mão sobre as nossas cabeças. Gritámos Paz, Paz, Paz. Fim da Guerra. Batemos palmas. Estivemos juntos e solidários com um povo que está a ser invadido, que sofre e que resiste.

Os povos querem Paz e essa energia é irresistível. Por isso éramos tantos hoje aqui e um pouco por todo o mundo. Toda a força e solidariedade com o povo da Ucrânia.

27 de Fevereiro de 2022

A Guerra não tem Rosto de Mulher, Svetlana Alexievich

21.02.22, Almerinda

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A Guerra não tem Rosto de Mulher”, Svetlana Alexievich, 2013

 

Enquanto fui lendo este livro, fui acompanhando pela comunicação social o aumento preocupante do conflito entre a Ucrânia e a Rússia. Sabendo nós o que os órgãos de comunicação social nos querem fazer crer, com encontros entre líderes, declarações solenes de parte a parte, retiradas estratégicas, receios de provocações, a verdade é que no dia em que terminei o livro, parece que o conflito está cada vez mais eminente. Nem a propósito, a ler um livro sobre a II Guerra Mundial, sobre o sofrimento do povo russo na perspectiva das mulheres, aquelas que estiveram na guerra mas que a sociedade russa fez por as esquecer e silenciar.

Svetlana Alexievich, que ganhou o Prémio Nobel da Literatura em 2015 pela sua “escrita polifónica, monumento ao sofrimento e à coragem na nossa época”, é natural da Bielorrússia e a viver em Minsk, com a profissão de jornalista, quis, com este livro, publicado nos anos 80, ouvir as vozes das mulheres que combateram nas trincheiras, que estiveram na linha da frente e que, depois da guerra, não só não foram reconhecidas como fundamentais no esforço de guerra, como, muitas vezes foram ostracizadas e vilipendiadas.

É um livro brutal, duro. A autora quis ouvir na primeira pessoa muitas centenas de mulheres cujas vozes gravou e que depois transcreveu numa polifonia única. Recordações de um tempo em que eram jovens com pouco mais de dezasseis anos, desejosas de combater e derrotar o inimigo nazi. A recolha destes testemunhos, que levou a autora a percorrer todo o país, iniciou-se nos anos 80, sendo que o livro foi recusado durante dois anos pela censura, por “não ter ideias soviéticas” (pág. 35), por “mostrar a sujidade da guerra” (pág. 37) e porque “Não precisamos da sua pequena história, precisamos de uma grande história. A história da Vitória” (pág. 39). Ainda hoje, o governo bielorrusso proíbe a edição dos seus livros que são lidos em russo e vendidos aos milhões.

 

“Começou a perestroika de Gorbachev… O meu livro foi logo publicado, teve uma tiragem vertiginosa: dois milhões de exemplares. Foi o tempo em que aconteciam muitas coisas impressionantes, de novo lançámo-nos com ímpeto não sabíamos bem para onde. De novo, para o futuro. Ainda não sabíamos (ou então esquecemos) que a revolução é sempre uma ilusão, sobretudo na nossa história” (pág. 30)

 

Este livro é de tal forma único e rico em testemunhos – “um coro de vozes” – que se torna difícil escrever sobre ele, escolher. O meu exemplar está repleto de anotações, sublinhados, dá vontade de transcrever tudo; imagino como terá sido hercúlea a tarefa da autora a “limpar” e deitar fora material de entre tudo o que recolheu, ouviu e gravou, para que resultasse nesta obra incrível.

 

“Os relatos femininos são diferentes e falam de coisas diferentes. A guerra «feminina» tem as suas cores, os seus cheiros, a sua iluminação e o seu espaço de sentimentos. Tem as suas palavras. Nesta guerra, não há heróis nem proezas incríveis, mas tão-só as pessoas ocupadas na sua actividade humana e simultaneamente desumana. Lá, não são só elas, as pessoas, a sofrer, mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que habitam a terra connosco. Estes sofrem sem palavras, o que é ainda mais horrível.”

… “Quero escrever a história desta guerra. A história feminina” (pág. 16)

 

Constituído por dezassete capítulos, o livro começa com o registo de excertos do diário do livro, onde a autora fala da influência que o livro “Sou de uma Aldeia em Chamas” de Ales Adamóvitch teve na sua obra e explica a sua estranheza por tudo o que lera sobre a guerra ter exclusivamente “voz masculina” e perceber que as mulheres, embora sendo protagonistas, estiveram sempre caladas, ninguém quis ouvir as suas vozes, dando como exemplo os casos da mãe e da avó. Os louros da vitória foram para os homens. Elas só foram homenageadas passados 30 anos sobre a guerra. Ao ir ao encontro daquelas que são as protagonistas do seu livro, mesmo passados tantos anos, sentiu que algumas tinham dificuldade em se libertar de uma narrativa da época (a verdade comum), sentindo-se constrangidas a contar a sua história, havia as que em dado momento já não conseguiam continuar “Não me quero lembrar” (pág. 47), mas também as que tinham ânsias de contar os detalhes, como as coisas se passaram (a verdade pessoal). “Por que é que só agora vieste ouvir-nos?” disseram-lhe algumas das narradoras.

De que falam aquelas mais de três centenas de narradoras de “A Guerra não tem Rosto de Mulher”, aquelas então raparigas russas de 1941? De solidão, de dúvidas, de medo, de ódio, de amor à Pátria, de vingança, de perdão, de reconciliação, de sentimentos de culpa, da roupa de homem que tiveram de vestir, de amor, de fervor ideológico, de escolhas dolorosas. Da fome e da solidariedade das populações sem o apoio das quais a vitória não teria sido possível. Dos cercos a Leninegrado e Estalinegrado. Os riscos e sacrifícios extremos dos partisans e sector clandestino são bem documentados no capítulo “Sobre batatas miudinhas…”, talvez um dos mais duros.

Elas ocuparam todas as profissões e não só as relacionadas com enfermagem. Muitas estiveram na linha da frente, o lugar mais desejado por elas, fruto do fervor ideológico e da convicção de que o inimigo seria vencido em pouco tempo, estiveram nos tanques, na Marinha, mas também nos “bastidores”: foram cozinheiras, lavadeiras, bombeiras, padeiras, fotógrafas, abastecedoras, no serviço postal, engenheiras civis… E as sapadoras, as que ficaram depois da guerra e que tiveram de ficar no terreno a desminar os campos.

Terminada a guerra, é o vazio para muitas delas. A esperança de que no fim da guerra todos se amariam rapidamente se esvai. As terras perderam os seus homens, as famílias estão desfeitas, elas sentem-se velhas. Muitos olham para elas com desconfiança, rotulam-nas de EC “esposas de campanha” (pág. 292). Elas receavam que ninguém quisesse casar com elas e os homens não as protegeram. A guerra terminara, mas para elas ia começar uma nova guerra. Os traumas que trouxeram da guerra ficaram e permanecem.

Termino, transcrevendo alguns excertos deste que foi o primeiro livro de Svetlana Alexievich e sobre o qual só tenho a dizer: leiam-no. Não mais o vão esquecer.

 

“Tenho pena dos que vão ler este livro e dos que não o vão ler…” (frase de uma das vozes deste livro. (pág. 33)

“Eu tinha uma trança muito bonita, saí já sem ela… sem a trança… Cortaram-me o cabelo à soldado.” “E não me devolveram o vestido. Não me deram tempo de entregar o vestido e a trança à minha mãe. Ela pedira muito para ficar com alguma coisa minha.” (pág. 51)

“A primeira vez é terrível… Mesmo terrível…” (pág. 54)

Mesmo que regresses viva de lá, a alma dói-te” (pág. 62)

“Certa vez, durante os exercícios… Não consigo lembrar-me disso sem chorar, não sei porquê… Era Primavera. Terminámos o exercício de tiro e regressávamos ao acampamento. Apanhei umas violetas. Um raminho pequeno, que atei à baioneta.” (pág. 98)

“Porque sobrevivi? Para quê? Penso… No meu entender, para poder contá-lo…” (pág. 135)

“Recordar é terrível, mas não recordar é mais terrível ainda.” (pág. 159)

“Depois da guerra nunca mais voltei a ser jovem.” (pág. 189)

“Todos ansiavam chegar vivos ao dia da Vitória” (pág. 277)

“Para os sapadores a guerra acabou uns anos depois da guerra… Imagine o que é estar à espera de uma explosão depois da Vitória? Estar à espera daquele instante…Oh, não! A morte depois da Vitória é a mais horrorosa. É como morrer duas vezes” (pág. 279)

“Não enterro o meu marido, enterro o meu amor.” (pág. 286)

 “Acho que, se não me tivesse apaixonado na guerra, não teria sobrevivido. O amor salvava. Salvou-me a mim.” (pág. 292)

“Na guerra nunca sorria”

“Na altura da minha partida para a frente, as cerejeiras do nosso pomar estavam em flor” (pág. 296)

“Será que é possível escrever sobre isto? Dantes não se podia…” (pág. 373)

 

19 de Fevereiro de 2022

 

 

 

 

3 anos

19.02.22, Almerinda

Hoje faço 3 anos. Sou uma das personagens que deram o primeiro rosto ao Lendo e Escrevendo. Somos várias meninas- mulheres. Chamo-me Concha e saí das mãos de uma artesã do Seixal. Lamento não saber o nome dela. Ela fez-me garrida e afirmativa e eu gosto de mim. Há um ano esteve cá a Vânia. Enquanto este blogue existir, neste dia outras como a Vânia ou a Concha virão cá agradecer a todos e todas que me seguem.

Por este Mundo Acima, Patrícia Reis

05.02.22, Almerinda

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Por este Mundo Acima, Patrícia Reis, 2011

Este foi o último livro que li em 2021, terminado exactamente no último dia do ano, mas sobre o qual só agora tenho oportunidade de escrever. Foi com este livro, um fechar de ano em beleza. Um livro extraordinário, o segundo que leio de Patrícia Reis e a certeza de que é uma autora cuja obra quero continuar a descobrir.

O que é viver, como é viver, depois de um desastre nunca antes visto, um acontecimento que dizima grande parte da humanidade, que nunca é revelado o que é, mas que ao longo do livro é designado por “o acidente”? Há o antes e o depois do “acidente”. Eduardo, o narrador, é um editor, arrogante, com a obsessão de fazer listas a propósito de tudo e de nada. Sobrevivente do “acidente”, procura na sua cidade – uma zona bem caracterizada de Lisboa – os amigos de sempre: Sofia, Lourenço e Jaime. Não os vai encontrar, mas vai descobrir segredos que o vão ajudar a compreender Sofia, a “menina-desastre”, a “rapariga-tesoura” afinal e tão-somente uma mulher só. Eduardo sente-se remetido à animalidade, o computador não serve para nada, as pilhagens aos bens que ainda restam são constantes, a cidade está totalmente destruída e irreconhecível. Sem amigos, sem futuro, desesperado, com saudades da música, como é possível sobreviver? Recorda-se da frase de uma escritora que lhe tinha dito que “em situações limite, somos apenas animais”. Ele é um sobrevivente que perdeu os amigos, que lamenta o que lhes poderia ter dito e que não disse e essa ideia de perda definitiva é-lhe insuportável.

Só a amizade poderá restituir-lhe o sentido da vida. “A amizade é a mais transformadora das forças humanas” (pág. 131) foi a convicção mais forte que tivera quando fora ao hospital ver o amigo Lourenço que tentara o suicídio. Este livro é com efeito “uma celebração da amizade” como a autora escreveu na mensagem que autografou no meu exemplar. Agora, depois d’“o acidente” vai ser uma criança que Eduardo encontra a dormir – Pedro – e um manuscrito que ele rejeitara e nunca publicara que lhe vão restituir a vontade de viver.

“Já te contei que encontrei uma criança? Diz coisas espantosas. Não sei como será agora. Tenho um manuscrito e uma criança.

Nunca me senti tão próximo da ideia de felicidade.” (pág. 142)

 

É preciso transmitir a vida, passar o testemunho, ensinar àquela criança tudo o que sabe, trazer de volta uma ideia de humanidade, abolir a palavra “tristeza” do vocabulário. A biblioteca da avó que ele vai reconstituindo, o clube de leitores que se vai criando, a memória, assim vai ganhando expressão um renascer das cinzas duma sociedade e duma humanidade devastadas. Ao ler este “Por este Mundo Acima” de Patrícia Reis não pude deixar de recordar “Fahrenheit 451” de Ray Bradbury, a força daquela comunidade que resistia, guardando a memória dos livros em que cada pessoa era um livro vivo.

5 de Fevereiro de 2022