"Se isto é um Homem"
Hoje, no Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto, publico um texto que escrevi em 2013, após a leitura deste livro de Primo Levi.
“Se Isto é um Homem”, Primo Levi, 1958
Entre Dezembro de 1945 e Janeiro de 1947, Primo Levi escreveu o seu “Se isto é um Homem”. É o registo, a memória da sua experiência de recluso entre o dia 13 de Dezembro de 1943, então com 24 anos, altura em que foi capturado pela milícia fascista em Itália e depois deportado para Auschwitz onde conseguiu sobreviver até ao dia 27 de Janeiro de 1945, data da chegada das tropas russas ao campo de extermínio nazi.
É pois um registo na 1ª pessoa. Impressionante, brutal, este é o primeiro livro deste escritor italiano, químico de formação. Ao lê-lo, acho que qualquer apreciação que se faça é sempre uma leitura pessoal e limitada daquilo que foi mais relevante ou que mais nos impressionou. Muito haveria para dizer, farei apenas alguns registos, mas tal como Primo Levi sentiu necessidade de deixar para a posteridade uma experiência dramática e terrível da história da humanidade, para que não se esqueça, nem se apague da memória, considero que este é um livro de leitura obrigatória e inesquecível. Não há como lê-lo.
Logo no início, aquando da chegada ao campo de Auschwitz inicia-se o ritual paranóico das contagens, das esperas, da indignidade, do arbítrio, da desumanização. “Wieviel Stücke”? Quantas peças? Porque para os nazis “aquilo” não eram pessoas, homens, mulheres, crianças. Eram peças.
No meio do horror, do sem sentido da vida no campo – o Lager – do nunca se saber se no dia seguinte ainda se se está vivo, de os nazis tudo fazerem para que não haja uma réstia de humanidade entre aqueles cadáveres seminus que se arrastam e agonizam cheios de fome, frio, cansaço, Primo Levi realça alguns presos que se distinguiram porque conseguiram ser diferentes naquela massa humana sem poder, sem voz, cujo nome fora substituído por um número tatuado no braço. Alguns porque lutaram por preservar um mínimo de dignidade, nem que fosse o manter os hábitos de higiene, mesmo quando a água era gélida ou suja. A ausência de privacidade, a falta de espaço físico, o medo do desconhecido, o salve-se quem puder como forma de conseguir sobreviver, os negócios que se faziam para arranjar mais um pedaço de pão cinzento, os sonhos sempre iguais, as traições, as hierarquias mesmo entre os detidos, mas também as amizades inseparáveis (Alberto, Lorenzo, Arthur e Charles),
“… creio que devo justamente a Lorenzo o facto de estar vivo hoje; não tanto pela sua ajuda material, quanto por me ter constantemente lembrado com a sua presença, com a sua maneira tão linear e fácil de ser bom, que ainda existia um mundo justo para além do nosso, algo e alguém ainda puro e incontaminado, não corrupto e não selvagem, alheio ao ódio e ao medo; algo que mal se pode definir, uma remota possibilidade de bem, pela qual, porém, valia a pena conservar-se.
As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. …
Mas Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora deste mundo de negação. Graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem.”
O livro é não apenas um registo verídico e desapaixonado duma situação extrema, mas é também uma reflexão sobre a condição humana e um legado que nos é deixado para que a humanidade não volte a repetir os mesmos erros. Entre muitas, realço uma reflexão que o autor faz sobre o diferente significado das palavras quando se é livre ou quando se está privado da liberdade, tais como Inverno, ou fome, ou dor, ou cansaço, ou frio.
O livro é todo ele muito impressionante, adensando-se para o final com as selecções sobre quem vai para o crematório, ou quando se percebe que as tropas soviéticas se estão a aproximar o que pode significar a libertação ou a solução final para todos os prisioneiros, os últimos dias com a debandada dos alemães do campo e os prisioneiros e doentes sem forças e sem recursos para poderem ainda serem resgatados com vida. Um dos últimos capítulos, inesquecível, em vésperas da chegada das tropas russas, é o daquele preso que condenado à forca por ter tentado sublevar-se, grita “Ich bin der Letzte!” (Eu sou o último), num acto de resistência, e o silêncio, o medo e também a vergonha de todos os prisioneiros obrigados a testemunhar a cena do enforcamento de um homem que ousou lutar.
Por fim, dizer quanto a leitura deste livro me lembrou outras leituras: “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, ou “Os Anagramas de Varsóvia” de Richard Zimler ou “O Rapaz do Pijama às Riscas” de John Boyne.
Fundamental ler este livro!
Setembro de 2013