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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

"Se isto é um Homem"

27.01.22, Almerinda

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Hoje, no Dia Internacional da Memória das Vítimas do Holocausto, publico um texto que escrevi em 2013, após a leitura deste livro de Primo Levi.

“Se Isto é um Homem”, Primo Levi, 1958

Entre Dezembro de 1945 e Janeiro de 1947, Primo Levi escreveu o seu “Se isto é um Homem”. É o registo, a memória da sua experiência de recluso entre o dia 13 de Dezembro de 1943, então com 24 anos, altura em que foi capturado pela milícia fascista em Itália e depois deportado para Auschwitz onde conseguiu sobreviver até ao dia 27 de Janeiro de 1945, data da chegada das tropas russas ao campo de extermínio nazi.

É pois um registo na 1ª pessoa. Impressionante, brutal, este é o primeiro livro deste escritor italiano, químico de formação. Ao lê-lo, acho que qualquer apreciação que se faça é sempre uma leitura pessoal e limitada daquilo que foi mais relevante ou que mais nos impressionou. Muito haveria para dizer, farei apenas alguns registos, mas tal como Primo Levi sentiu necessidade de deixar para a posteridade uma experiência dramática e terrível da história da humanidade, para que não se esqueça, nem se apague da memória, considero que este é um livro de leitura obrigatória e inesquecível. Não há como lê-lo.

Logo no início, aquando da chegada ao campo de Auschwitz inicia-se o ritual paranóico das contagens, das esperas, da indignidade, do arbítrio, da desumanização. “Wieviel Stücke”? Quantas peças? Porque para os nazis “aquilo” não eram pessoas, homens, mulheres, crianças. Eram peças.

No meio do horror, do sem sentido da vida no campo – o Lager – do nunca se saber se no dia seguinte ainda se se está vivo, de os nazis tudo fazerem para que não haja uma réstia de humanidade entre aqueles cadáveres seminus que se arrastam e agonizam cheios de fome, frio, cansaço, Primo Levi realça alguns presos que se distinguiram porque conseguiram ser diferentes naquela massa humana sem poder, sem voz, cujo nome fora substituído por um número tatuado no braço. Alguns porque lutaram por preservar um mínimo de dignidade, nem que fosse o manter os hábitos de higiene, mesmo quando a água era gélida ou suja. A ausência de privacidade, a falta de espaço físico, o medo do desconhecido, o salve-se quem puder como forma de conseguir sobreviver, os negócios que se faziam para arranjar mais um pedaço de pão cinzento, os sonhos sempre iguais, as traições, as hierarquias mesmo entre os detidos, mas também as amizades inseparáveis (Alberto, Lorenzo, Arthur e Charles),

“… creio que devo justamente a Lorenzo o facto de estar vivo hoje; não tanto pela sua ajuda material, quanto por me ter constantemente lembrado com a sua presença, com a sua maneira tão linear e fácil de ser bom, que ainda existia um mundo justo para além do nosso, algo e alguém ainda puro e incontaminado, não corrupto e não selvagem, alheio ao ódio e ao medo; algo que mal se pode definir, uma remota possibilidade de bem, pela qual, porém, valia a pena conservar-se.

As personagens destas páginas não são homens. A sua humanidade está sepultada, ou eles mesmos a sepultaram, debaixo da ofensa que sofreram ou que infligiram a outrem. …

Mas Lorenzo era um homem; a sua humanidade era pura e incontaminada, estava fora deste mundo de negação. Graças a Lorenzo, aconteceu-me não esquecer que também eu era um homem.”

O livro é não apenas um registo verídico e desapaixonado duma situação extrema, mas é também uma reflexão sobre a condição humana e um legado que nos é deixado para que a humanidade não volte a repetir os mesmos erros. Entre muitas, realço uma reflexão que o autor faz sobre o diferente significado das palavras quando se é livre ou quando se está privado da liberdade, tais como Inverno, ou fome, ou dor, ou cansaço, ou frio.

O livro é todo ele muito impressionante, adensando-se para o final com as selecções sobre quem vai para o crematório, ou quando se percebe que as tropas soviéticas se estão a aproximar o que pode significar a libertação ou a solução final para todos os prisioneiros, os últimos dias com a debandada dos alemães do campo e os prisioneiros e doentes sem forças e sem recursos para poderem ainda serem resgatados com vida. Um dos últimos capítulos, inesquecível, em vésperas da chegada das tropas russas, é o daquele preso que condenado à forca por ter tentado sublevar-se, grita “Ich bin der Letzte!” (Eu sou o último), num acto de resistência, e o silêncio, o medo e também a vergonha de todos os prisioneiros obrigados a testemunhar a cena do enforcamento de um homem que ousou lutar.

Por fim, dizer quanto a leitura deste livro me lembrou outras leituras: “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago, ou “Os Anagramas de Varsóvia” de Richard Zimler ou “O Rapaz do Pijama às Riscas” de John Boyne.

Fundamental ler este livro!

Setembro de 2013

 

Os Despojos do Dia

25.01.22, Almerinda

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Recordando um livro maravilhoso que li há 4 anos.

Os Despojos do Dia, Kazuo Ishiguro,1989

 

“Os Despojos do Dia”, mais conhecido pela versão cinematográfica interpretada pelo grande Anthony Hopkins e pela grande Emma Thompson, é o primeiro livro que li do escritor britânico Kazuo Ishiguro, autor premiado com o Prémio Nobel da Literatura em 2017. Embora tenha adjectivado os dois actores como grandes, por os conhecer de grandes desempenhos e interpretações em vários filmes, no entanto, não vi este filme e apenas repito apreciações positivas de amigos e amigas que os viram a desempenhar os papéisde Mr. Stevens e de Miss Kenton, uma antiga governanta da casa onde o primeiro era mordomo.

Mr. Stevens, o narrador, é o mordomo de uma casa senhorial e responsável pelo pessoal. O actual patrão – Mr. Farraday – faz-lhe uma proposta, para ele impensável e irrealista, de lhe emprestar o seu Ford e aproveitar para percorrer o país, enquanto ele estiver ausente nos Estados Unidos para tratar de assuntos pessoais. A ideia fica-lhe a magicar e acaba por aceitá-la, percebendo-se desde o princípio que o seu destino será a região de Devon/Cornualha, local para onde foi viver Miss Kenton há vinte anos quando se casou.

O narrador dirige-se ao leitor/a conduzindo-o/a na narrativa. Escolhe fazer essa viagem seguindo os caminhos secundários e não as estradas principais o que lhe permite fazer paragens e encontrar pessoas invulgares e paisagens únicas,mas, sobretudo, aquela é uma viagem interior, uma reflexão pelas memórias da vida, da sua profissão e das escolhas que fez. Quando uma vida é exclusivamente pautada por conceitos como lealdade, serviço, sentido do dever, dignidade ou honra, em que nunca se fez escolhas próprias porque se depositou a vida e o destino nas mãos de alguém (neste caso um patrão) e em que os sentimentos e as emoções são reprimidos, apagados ou secundarizados, possivelmente ficar-se-á cego e impossibilitado de seguir outro caminho. Com efeito, ele nunca consegue cortar com o passado e a reflexão que faz sobre o antigo patrão – Lord Darlington – “os seus esforços foram errados, ou mesmo tolos”, ou que a sua vida e trabalho foram “um lamentável desperdício”, Mr. Stevens não consegue fazê-la para si próprio.

Percebe-se que Mr. Stevens quer reencontrar Miss Kenton, actualmente Mrs. Benn por casamento, remediar algo do passado que ficou por encerrar, mas toda a subtileza da escrita e a consistência da personagem e da sua personalidade permitem-nos antever o desfecho daquela viagem.

“Os Despojos do Dia” é um livro maravilhoso. Algumas descrições fizeram-me lembrar “Contos Sublimes” de Hermann Hesse ou“As Velas ardem até ao Fim” de Sándor Márai. Gostei da forma como as personagens – sobretudo o mordomo Stevens – nos são apresentadas com grande subtileza, como a narrativa está repleta de nuances, nos vai desvendando pormenores decisivos e há uma espécie de filtro que faz desta obra um romance de grande qualidade. Grande trabalho de Fernanda Pinto Rodrigues, tradutora falecida em 2013, com uma vida dedicada à tradução de grandes nomes da literatura anglo-saxónica e que foi galardoada em 1995 com o Grande Prémio de Tradução.

18 de Janeiro de 2018

As Boas Intenções, Augusto Abelaira

02.01.22, Almerinda

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As Boas Intenções”, Augusto Abelaira, 1963

 

Este foi o penúltimo livro que li em 2021 e o segundo de Abelaira que leio este ano, depois de “A Cidade das Flores”. Quer “As Boas Intenções” quer “Sem Tecto entre Ruínas” que irei ler no início deste novo ano foram herdados da minha irmã, os quais aguardavam a sua vez há alguns anos.

“As Boas Intenções” foi escrito em 1963 e a sua acção decorre num período revolucionário, na transição entre a monarquia e a república, no início do século XX. O valor deste livro é acrescido com um posfácio escrito por Abelaira em Janeiro de 1978, que é o prefácio à 3ª edição, ou seja, quatro anos depois do 25 de Abril, “num dia de excessivo pessimismo, em plena crise governamental”. Em 1963, quando Abelaira escrevera “As Boas Intenções”, vivia-se um período de desalento, após o fracasso das ilusões suscitadas pela candidatura de Humberto Delgado e posteriormente a frustração que foi o golpe de Beja. O desalento do autor era o desalento dum povo sem esperança face a um ditador que parecia imortal. A literatura, aquele livro era uma espécie de “exorcismo”, “uma tentativa de interferir na História recorrendo a palavras mágicas”. “Só um milagre, portanto” podia deitar abaixo o regime de Salazar que parecia eterno. “Agora” (Janeiro de 1978), “que o nosso país caiu na mediocridade sem esperança, a literatura terá talvez de novo o seu papel. A magia ainda que disfarçada, digo.” Céptico em relação à possibilidade de sucesso de todas as revoluções e também da revolução de Abril, Abelaira considera “ingénuo” o seu texto, quase “um acto de superstição”, quando de novo confere à literatura o papel de enganar a História, de fazer magia, como se de um exorcismo se tratasse.

Como anteriormente referi, “As Boas Intenções” decorre no período pré-implantação da República, marcado por conspirações. Se há a crença de que o derrube da monarquia trará uma vida melhor ao povo, que os que apoiarem a República serão recompensados (com uma casa), os protagonistas mostram-se pessimistas: “As revoluções fazem-se com mentiras”. “A República não vai modificar a sorte destes homens. Para que servirá então? Para substituir clientelas?”pergunta Brenda a Vasco que lhe responde “Para entreabrir a porta por onde hão-de entrar os homens de boa vontade. Os das revoluções a sério” (pág. 234).

Maria Brenda, filha de Alexandre a Maria Carlota, envolvida no movimento conspirativo, debate com outros protagonistas a perspectiva que cada um tem sobre a revolução, sobre a mudança, sobre o presente e o futuro, sobre a realização pessoal versus satisfação do colectivo: “Sim, haverá uma revolução quando cada um de nós estiver disposto a fazê-la, só há revoluções quando somos nós que as fazemos.” A incerteza de que a revolução será vitoriosa é a falta de crença nos homens e nas ideias, a convicção de que “não há homens justos.”

O livro é um mosaico de momentos, de diálogos a acontecer entre diferentes protagonistas – Brenda e Vítor, Alexandre e Maria Carlota – que, embora distintos, têm traços comuns, são um continuum. Os anos passam, mas afinal as coisas não mudam, tudo se repete.

Lembrando a revolução de Abril e o que foi o movimento dos capitães que derrubou a ditadura em 1974, o último parágrafo de “As Boas Intenções” é extraordinariamente premonitório e refere-se à queda do regime monárquico a 5 de Outubro de 1910, com a entrada dos revoltosos no quartel de prevenção há várias noites: “Horas depois, com uma facilidade que tantos anos de sofrimento e de lutas não deixariam prever, quase sem resistência, meia dúzia de tiros ou pouco mais, o regime caía. Definitivamente?” (pág. 255)

Um livro que dá que pensar. Um mestre da literatura, atento, pessimista, para quem escrever foi uma forma de agir.

 

26 de Dezembro de 2021