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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

Uma pilha de livros

27.12.21, Almerinda

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Estamos a chegar ao fim de 2021. Comecei ontem a ler aquele que será o meu último livro ainda este ano e achei que era hora de os juntar a todos para uma fotografia de grupo. Verifico que faltam alguns, entretanto emprestados e que portanto não puderam ficar contemplados na foto. 

Há um ano, seguindo uma sugestão da autora de um blog de que gosto muito - Livros para adiar o Fim do Mundo - escolhi uma quantidade de livros que há muito aguardavam a sua vez de serem lidos, aparentemente esquecidos nas estantes, escrevi os títulos em tirinhas de papel, dobrei-as e meti-as dentro de um pote. Iriam ser lidos, à medida que fossem saindo do pote, como acontece naqueles sorteios das equipas de futebol. Isto para ser levado a sério, sem batotas, nem truques. O que saísse seria o que iria ser lido.

Mas, como resistir aos novos livros que iam saindo e que ia comprando, aos que me foram oferecidos, ou que recebia por correio enviados por algum alfarrabista? Era impossível resistir, pelo que criei um segundo pote com as "novidades". A partir desse momento, os nomes eram retirados alternadamente ora do primeiro pote, ora do segundo. 

No final, agora que iniciei o livro "Por este Mundo Acima" que comprei na Feira do Livro deste ano, é esta a lista completa dos livros lidos em 2021:

  • "Bela" de Ana Cristina Silva
  • "A Cidade das Flores" de Augusto Abelaira
  • "Uma Bomba a iluminar a Noite do Marão" de Daniela Costa
  • "Caderno de Memórias Coloniais" de Isabela Figueiredo
  • "Um Postal de Detroit" de João Ricardo Pedro
  • "Palavras em Tempos de Crise" de Luís Sepulveda
  • "Homossexualidade e Resistência no Estado Novo" de Raquel Afonso
  • "Histórias Daqui e Dali" de Luis Sepulveda
  • "Margarita e o Mestre" de Mikail Bulgakov
  • "Da Meia Noite às Seis" de Patrícia Reis
  • "Filhos e Amantes" de D. H. Lawrence
  • "Mulheres da minha Alma" de Isabel Allende
  • "A Rapariga de Auschwitz" de Eva Schloss
  • "Rua de Paris em Dia de Chuva" de Isabel Rio Novo
  • "Casa da Malta" de Fernando Namora
  • "Almoço de Domingo" de José Luís Peixoto
  • "A Geração da Utopia" de Pepetela
  • "Eliete" de Dulce Maria Cardoso
  • "Ao Cair da Noite" de Michael Cunningham
  • "O Vício dos Livros" de Afonso Cruz
  • "Seis Ruas" de Márcia Lima Soares
  • "O País do Carnaval" de Jorge Amado
  • "D. Casmurro" de Machado de Assis
  • "Apenas Miúdos" de Patti Smith
  • "As Boas Intenções" de Augusto Abelaira
  • "Por este Mundo Acima" de Patrícia Reis

Foram 15 livros de autores portugueses, 11 de autores estrangeiros, mas todos foram lidos na língua portuguesa. 12 homens e 11 mulheres que me permitiram horas e horas de prazer, reflexão e companhia. Repeti Abelaira, Sepulveda e Patricia Reis de que li dois livros de cada ao longo deste ano. 

Sobre todos escrevi aqui no blog. Não é por acaso que se chama Lendo e Escrevendo. Também desenhei, mas quando desenhei não li e quando li não desenhei. Não é fácil conciliar duas paixões que são muito exigentes, que exigem concentração, dedicação e exclusividade.

Claro que os potes ainda têm muitas tiras de papel com títulos que não cheguei a ler, por o tempo não dar para mais. Assim, já tenho os potes prontos para 2022. 

Oxalá 2022 seja tão frutuoso em leituras como foi 2021. 

 

Viagem a Portugal, José Saramago

18.12.21, Almerinda

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O Viajante volta já

"A viagem acabou. 

Não é verdade. A viagem não acaba nunca. Só os viajantes acabam. E mesmo estes podem prolongar-se em memória, em lembrança, em narrativa. Quando o viajante se sentou na areia da praia e disse: «Não há mais que ver», sabia que não era assim. O fim duma viagem é apenas o começo doutra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na Primavera o que se vira no Verão, ver de dia o que se viu de noite, com sol onde primeiramente a chuva caía, ver a seara verde, o fruto maduro, a pedra que mudou de lugar, a sombra que aqui não estava. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos ao lado deles. É preciso recomeçar a viagem. Sempre. O viajante volta já."

«Viagem a Portugal», José Saramago

associando a uma fotografia algures na A23 que me inspirou para esta composição

Dezembro 2021

 

 

O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler

14.12.21, Almerinda

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O Último Cabalista de Lisboa, Richard Zimler, 1996

Um livro duro, tremendo mesmo. Para além da violência que foi aquela matança de cerca de dois mil cristãos-novos no Rossio naquela Páscoa de 1506, sente-se o medo, a desconfiança, a suspeita, o cheiro do lixo, do esterco, da sujidade da cidade de Lisboa. O fumo das fogueiras da Inquisição paira e vai persistir muito depois de aqueles judeus que haviam sido forçados a converter-se terem sido queimados e terem sido os primeiros a conhecer com a morte o ódio da intolerância.
A Inquisição estabelecida em Portugal em 1536 continuará a mostrar a sua ferocidade em Portugal e em Espanha nos três séculos seguintes. Já antes de 1500 os reis de Espanha haviam convencido D. Manuel a expulsar todos os judeus do país e em troca conceder-lhe-ia a mão da sua filha. Muitos judeus em Espanha foram obrigados a fugir, mas muitos que ficaram foram duramente reprimidos. Em Portugal segue-se um processo de conversão forçada dos judeus ao cristianismo, - são os cristãos-novos - mas muitos deles continuam clandestinamente a praticar os seus rituais religiosos. Portugal vive um período de seca prolongada e de peste que dizima milhares de habitantes; é preciso encontrar um culpado, um bode expiatório para esses males. Os judeus (os marranos) são então o alvo a abater. Os frades dominicanos dirigiam e incitavam as levas de cristãos sedentos de violência, vingando-se nos judeus e cristãos-novos acusados de todos os males que então se viviam. A violência é inaudita e gratuita. Homens, cães e abutres disputam os cadáveres. D. Manuel é um rei fraco incapaz de suster o caos. “Lisboa uma Veneza de sangue”.
O relato que constitui “O Último Cabalista de Lisboa” é feito a partir de uns manuscritos encontrados numa velha casa de Istambul onde se fala do massacre de Lisboa de 1506. Neles se conta a odisseia vivida pela família de Beremias Zarco (Pedro Zarco de seu nome cristão) naquele período de convulsão tendo sido escritos entre 1507 e 1530 pelo próprio. Beremias, um dos sobreviventes do massacre do Rossio decidiu fugir para Constantinopla quando percebeu que em Portugal não havia futuro para si e para a sua família, pelo facto de serem judeus. O relato escrito dessa experiência terrível em Lisboa esteve interrompido durante largos anos, mas em 1530 quis terminá-lo quando decidiu regressar a Lisboa, na sequência de uma visão do seu grande mestre o tio Abraão Zarco.
“O Último Cabalista de Lisboa” é a história da matança dos judeus de Lisboa, dos judeus anónimos, mas também dos amigos, vizinhos, familiares de Beremias, mas, sobretudo, a estranha morte do tio Abraão Zarco, respeitado membro da escola cabalística de Lisboa e com quem Beremias trabalhava decorando com iluminuras os manuscritos que a tia Ester copiava. Beremias não descansa enquanto não resolve o intrincado enigma da morte do tio. Quem poderia ter morto aquele homem encontrado sem vida com uma jovem na cave secreta onde faziam as iluminuras e os rituais da sua religião? Alguém muito próximo que conhecia aquele espaço secreto tinha sido o traidor que roubara um valioso manuscrito iluminado, o assassino do tio e da rapariga? E qual a relação entre os dois? Beremias e o seu maior amigo – Farid, um surdo mudo com quem se relaciona através de gestos – é o interlocutor que lhe permite comunicar de forma mais profunda e é o seu aliado mais perspicaz na busca do caminho para descobrir o enigma da morte do tio.
No processo dos motins e da matança no Rossio, Beremias perde a fé em Deus e nos homens. A perda do tio, o desaparecimento do irmãozinho Judas cujo rasto nunca se chegou a conhecer, o confronto com a fragilidade da vida em condições de violência extrema contra a sua comunidade que o obriga a fugir com a família levam-no à descrença. No final, ele afirma “Muita da minha fé evadiu-se-me juntamente com o sangue de meu tio”; ele “sente-se como uma árvore cujos ramos principais foram cortados por um cutelo”.
Um retrato histórico rigoroso de uma época que marcou o nosso país. Uma memória sobre a intolerância religiosa que não pode ser esquecida. Um grande livro reconhecido como uma obra de referência.

14 de dezembro de 2017

Nota: faz hoje precisamente 4 anos que escrevi sobre este livro. Nessa altura ainda não tinha criado este blog, pelo que hoje o coloco aqui, como sinal do grande apreço que tenho por este tão relevante livro de Richar Zimler. 

Apenas Miúdos, Patti Smith

10.12.21, Almerinda

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“Apenas Miúdos ” – Patti Smith, 2011

A primeira vez que ouvi falar de Patti Smith foi há bem pouco tempo, numa campanha presidencial de Marisa Matias em que “People have the Power” cantado por ela me deixava fascinada pela força que o poema convocava. Mais tarde, foi à grande amiga Patti Smith que coube ler em Estocolmo a mensagem de Bob Dylan, agraciado em 2016 com o Nobel da Literatura. Foi pois com interesse que quis conhecer esta mulher despojada de artifícios de artista, neste “Apenas Miúdos”, o seu primeiro livro em prosa.

Ela e Robert Mapplethorpe, a quem Patti prometera escrever a história deles num livro, são esses “miúdos”. É um livro de memórias que começa nos primeiros anos de Patti a viver com os pais e os irmãos no sul da Nova Jérsia, a partida para Nova York em 1967 quando decide viver a sua vida independente, o encontro com Robert e a descoberta de um mundo novo, os amores, desamores, encontros e desencontros da vida tumultuosa dos anos 70, uma década de amor, rock and roll, drogas, arte, experimentalismo, busca incessante da felicidade, até à morte de Robert em 1989, quando Patti vive em Detroit, é mãe dum filho e duma filha e é casada com Fred Sonic Smith. O livro está repleto de nomes dos famosos da música, da arte e da cultura anglo-americana que nessa época passavam na rádio e nos gira-discos dos jovens de todo o mundo.

Patti e Robert, dois jovens de 21 anos, com culturas e histórias diferentes, anseiam da vida muito para além dos percursos previsíveis, expectáveis pela sociedade. Querem exprimir-se pela arte, querem ser livres, querem criar aquilo que ainda nunca antes foi experimentado, mas ainda não sabem como fazê-lo. Escrever um livro, escrever poemas, musicar poemas, desenhar, ler e aprender com o que se lê, fotografar. Se Robert ficou célebre pela fotografia, nunca tendo conseguido adaptar-se a trabalhos estáveis ou fixos, aceitando o que aparecesse, a verdade é que Patti, para além de ter trabalhado em livrarias, experimentou várias formas de expressão, desde uma breve incursão no teatro, a modelo para fotografias de Robert, leituras de poemas ao vivo, desenha, faz recensões de discos, mas sempre com o seu maior desejo de escrever poemas para canções. E tudo isto num ambiente de falta de dinheiro permanente e de busca de reconhecimento. Se o primeiro mês da chegada de Patti Smith a Nova York foi uma experiência de sem-abrigo, ela confessa que se sentia segura “Não tinha nada para oferecer a um ladrão, e não temia os homens que andavam por ali a rondar”. Os seus mantras dessa época eram “Sou livre, sou livre” “Tenho fome, tenho fome”. (P. 45) Mas no meio da solidariedade que lhe permitia uma pequena refeição ou um banho em casa de algum amigo, foi o encontro com Robert que veio marcar a sua vida, muito para além do tempo de vida de Robert.

Nova York palpitava de vida. Jovens como eles, à procura de si próprios. “Éramos um bando de inadaptados, mesmo no terreno liberal de uma escola de arte. Por vezes dizíamos a brincar que éramos um «salão de inúteis»”.(p. 75) Leais, mas livres. Foi no Hotel Chelsea onde “toda a gente que passa por aqui é alguém, mesmo que não seja ninguém no mundo lá de fora” (p. 115) , “uma feira franca, onde toda a gente tinha algo de si para vender e ninguém parecia ter muito dinheiro ” (pp. 134 e 141) que Patti e Robert conheceram uma imensa comunidade de  artistas e que marcou Patti pelos famosos que ali tinham vivido ou pernoitado, como Oscar Wilde, Dylan Thomas, Thomas Wolfe ou Bob Dylan. Para Patti o Hotel Chelsea é a sua nova universidade onde, para além de entrar em contacto com os seus poetas de eleição, aprofunda a sua relação antiga com a poesia de Rimbaud, conhece Janis Joplin e tantos outros músicos, poetas, cantores, sendo o fim do Chelsea, quando cada um se vai embrenhando nas suas vidas e escolhendo os seus destinos, o fim de um ciclo para ela.

Neste livro de memórias, Patti é duma franqueza comovente. Há uma marca forte de espiritualidade na personalidade de Patti, alguém que passando por um ambiente tão desprendido e livre passa muito consciente de si e quase intocada. O seu ar andrógino criava falsas ideias e incompreensão entre os que com ela se relacionavam, de que era lésbica e se drogava. Imagino-a sentada no chão, no Hotel Chelsea ou no estúdio que compartilhava com Robert, a escrever poemas na Remington e mais tarde na Hermes 2000, a planear a sua ida a Paris para visitar o túmulo de Jim Morrison e a Charleville para visitar o lugar onde Rimbaud nasceu e está sepultado. A ligar todos aqueles que morreram ainda jovens: o Brian Jones dos Rolling Stones, o Jim Morrison, o Jimmy Hendrix ou a Janis Joplin. A sentir que a sua vida está numa encruzilhada, que a sente como irrelevante e irreverente e que quer dar-lhe uma volta. A imaginar no primeiro dia de cada ano que “o que acontecer hoje, acontece no resto do ano” e a decidir 1973 como o seu ano da poesia. Mas sempre ligada a Robert, admirando-o, amando-o e dando-lhe todo o apoio, mesmo quando as suas propostas a chocam por serem demasiado radicais.

Os anos 80 trazem consigo a SIDA, uma doença desconhecida e fatal. Uma geração que morrera no Vietname ou por consumo de drogas via agora chegar uma cruel praga para a qual a medicina ainda não estava preparada. No dia em que Patti sabe que está grávida da filha Jesse, recebe a notícia de que Robert está doente com SIDA. Quando mais tarde se reuniram e Robert decidiu fotografar a capa do álbum de Patti “Ele transportava a morte dentro de si e eu transportava a vida. Ambos estávamos cientes disso, bem o sei. Era uma simples fotografia. O meu cabelo estava entrançado como o da Frida Kahlo. O sol a bater-me nos olhos. E eu estou a olhar para o Robert e ele está vivo.”

“Apenas Miúdos” é um livro comovente. O retrato de uma época, de uma geração. Um testemunho que vale a pena ler.

7 de Dezembro de 2021