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Lendo e escrevendo

Lendo e escrevendo

O País do Carnaval, Jorge Amado

25.10.21, Almerinda

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“O País do Carnaval ” – Jorge Amado, 1931

Surpreendeu-me que este livro tivesse sido escrito quando Jorge Amado tinha apenas 18 anos. Trata-se do seu primeiro livro e, embora Jorge Amado já estivesse envolvido na vida cultural e política desde os 14 anos, a verdade é que este livro reflecte uma maturidade de alguém mais velho.

O tema central do romance é a busca da finalidade da vida para os amigos com quem Paulo Rigger se relaciona na cidade da Bahia, depois do regresso ao Brasil vindo de Paris para onde o pai o enviara para estudar Direito. Liga-se a um grupo pelo prazer da discussão em tertúlias e em debates em torno da política e dos temas da actualidade, mas é o tema da finalidade da vida aquele que mais os motiva. Esse grupo de homens ainda jovens, no princípio das suas vidas activas, com percursos titubeantes e imprecisos, com personalidades e concepções de vida tão diversas, tem como figura aglutinadora e carismática Pedro Ticiano, um homem mais velho, jornalista ostracizado pelas suas opiniões críticas e contundentes. Será através do amor, ou da religião, ou do trabalho, ou da política, ou da revolução que os homens se completarão e assim atingirão a Felicidade? Ou afinal, a Felicidade é impossível de se atingir e, como diria Pedro Ticiano, só os imbecis e cretinos a alcançam? Num contexto de desilusão por uma revolução que não tirou o Brasil “da beira do abismo”, o sonho de o Brasil vir a ser “o primeiro país do mundo” é cada vez mais uma miragem.

As frases retóricas, as blagues, a fuga ao senso comum ou o romper com o convencionalismo podiam ser proferidos entre amigos e figurar nas lapelas daqueles homens duma certa elite intelectual. Mas a cultura de onde provinham e de que estavam imbuídos não se apagava por um passe de magia. Veja-se o caso do principal personagem Paulo Rigger e da forma como se relaciona com as mulheres, que ele vê afinal como mero objecto do seu desejo impulsivo e cujos direitos e desejos não considera. As mulheres estão catalogadas ou como rameiras, mulheres para o prazer, aquelas que “já não são moças” e daí sem possibilidade de se casarem, ou mulheres virtuosas, essas sim dignas de serem desposadas. Em tudo ele fracassa. Nunca desde o regresso ao Brasil ele conseguiu sentir-se senão um estrangeiro, sem ligação ao seu povo, que ele acha que só está feliz quando e se o governo lhe der apoios para os clubes carnavalescos. “ – País do Carnaval! País do Carnaval! Eu se fosse Presidente ou Ditador, decretaria um Carnaval de 365 dias… Adorar-me-iam…” (pág.100).

A edição deste romance das Publicações Dom Quixote, inserido na colecção Autores Lusófonos, conta com um interessante prefácio de Augusto Frederico Schmidt, que nos ajuda a contextualizar o momento da história do Brasil em que foi escrito.

“ Paulo Rigger, seu personagem, não é um cerebral, não é um filho do ocidente saturado e exasperado de cultura, é apenas um pobre moço brasileiro, como eu, como você, como todos nós.

Nós estamos vivendo o momento do tédio.”…

“Seus personagens estão. E procuram. Não procuram apenas o sentido da pátria, da terra, mas procuram o sentido de si próprios. O país é apenas um ponto de referência. A pátria é sentida porque está ausente. O seu livro é balbuciante ainda, mas é uma obra inicial.”

Por fim, Jorge Amado sentiu necessidade de escrever um pequeno texto que precede o romance, datado de 1930, com o título EXPLICAÇÃO, de onde retiro esta frase significativa: “Este livro é um grito. Quase um pedido de socorro. É toda uma geração insatisfeita que procura a sua finalidade.”

17 de Outubro de 2021

O Alegre Canto da Perdiz

21.10.21, Almerinda

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Trago hoje aqui um texto que escrevi sobre "O Alegre Canto da Perdiz" de Paulina Chiziane, cuja obra foi agora justamente reconhecida com o Prémio Camões.

 

O Alegre Canto da Perdiz, Paulina Chiziane, 2008

Vinda do Gilé, um dos distritos da Zambézia, província do centro de Moçambique, os meus dedos agarraram por acaso, na estante da casa em Maputo da minha amiga Zita, este livro de Paulina Chiziane. Autora que já conhecia de outros livros, ao começar a leitura de “O Alegre Canto da Perdiz” senti que afinal ainda estava na Zambézia, entre aquelas mulheres sofridas e lutadoras com quem tive a oportunidade de conviver nas terras distantes e esquecidas do Gilé.

É um livro marcante, com trechos que é preciso ler devagar, saborear, anotar, voltar atrás. Poesia pura. Complexo, aborda temas muito vastos: a colonização, o racismo, a assimilação, a traição, a ambição de ter uma vida melhor mesmo que isso seja a destruição dos outros e/ou a autodestruição, a guerra de libertação, os conflitos entre raças e entre sexos. As contradições da vida, o remorso, o arrependimento, o reencontro e a reconciliação.

É a exaltação da Natureza, a exaltação da Zambézia e dos Montes Namuli origem da humanidade, a terra dos palmares e do canto da perdiz logo pela manhã (gurué, gurué). A exaltação da(s) Mulher(es), da sua diversidade, dos corpos, da sexualidade, das suas lutas, das violências que sofrem e que infligem, da sobrevivência.

As histórias daquelas mulheres – Serafina, Delfina, Maria das Dores e Maria Jacinta – são pretexto para falar do estatuto das mulheres na sociedade, do seu papel e da permanência das violências qualquer que seja o regime em que tenham vivido. E para os homens também – José dos Montes, Simba, Moyo – o sonho da liberdade é uma miragem, porque a independência não é o fim do colonialismo. “Nessa independência que sonhamos o mundo não será o mesmo. Libertaremos a terra, sim, mas jamais seremos senhores… O colonialismo habitará a nossa mente e o nosso ventre e a liberdade será apenas um sonho.”

No entanto, e mesmo ao chegarmos ao fim deste romance que é também uma pinceladada história do povo moçambicano ao longo dos séculos, a autora quis-nos deixar um sinal de esperança no futuro, quando José dos Montes – o sipaio assimilado que matou sem remorso – diz à sua mulher Delfina – que por ambição se prostituiu e prostituiu a filha-criança: “No final desta guerra seremos um. Esses filhos metade pretos, metade brancos, metade asiáticos, serão os fósseis a partir dos quais se compreenderá a nossa História. Nas próximas gerações as raças se amarão, sem ódio nem raivas, inspiradas no nosso exemplo. A humanidade aventureira conquistará outras estações celestes com gente azul e verde. Terá chegado o momento de inventar novas raças e recriar novas humanidades. Os pretos, os brancos e seus mulatos deverão expurgar ódios, raivas e ressentimentos que ainda restem.”

Março 2014

 

O Vício dos Livros, Afonso Cruz

10.10.21, Almerinda

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“O Vício dos Livros ” – Afonso Cruz, 2021

Tudo nos atrai neste livro. Desde logo o título, a ilustração da capa, o livro objecto em si, de capa dura. Do autor apenas tinha lido há anos “Nem todas as Baleias voam”, que fala da arte, de que não se consegue fugir quando se é capturado por ela.

E quando se é capturado pelos livros? “O Vício dos Livros” fala da extraordinária força dos livros. Do seu poder imenso. Basta ir seguindo os títulos dos textos de que é constituído este pequeno livro, uma espécie de roteiro que vamos seguindo. A leitura chega a conseguir afastar a morte: “A morte também é leitora, por isso, aconselho a que andem sempre com um livro na mão, porque, quando a morte chega e vê o livro, espreita para ver o que estamos a ler, tal como eu faço no autocarro, e distrai-se.” A leitura é um verdadeiro elixir para aumentar o tempo e a qualidade de vida, digo eu.

Por vezes, deparamos com surpresas no meio de livros esquecidos nas estantes. Pois “os livros são seres pacientes. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.” Quantas vezes isso não nos aconteceu, embora eu nunca tenha conhecido “um esquifobético”, que se referia ao seu corpo como “neve”.

De entre os vários títulos que constituem “O Vício dos Livros”, quero salientar alguns que achei especiais.

 “Liberdade” que fala duma escritora árabe que, apontando para um niqab exposto numa loja, diz: Já fui uma mulher destas”… “Comecei a ler e libertei-me.”

“O Terceiro pulmão de Bagdade” que fala de lugares onde não se desiste. A Rua Al-Mutanabi em Bagdade é o terceiro pulmão da cidade pois, apesar de atentados suicidas que mataram e feriram dezenas de pessoas, continua a ser um local de resistência, onde livreiros, alfarrabistas e escritores expõem, vendem e trocam os seus livros. Em 2019, a Feira do Livro de Bagdade teve mais de um milhão de visitantes, o que é deveras extraordinário, se compararmos com outras feiras do livro de renome mundial.

“Gatos” pois “gatos e escritores são espécies claramente aparentadas: por trabalharem sós, pela contemplação e observação e curiosidade”.

“Bibliotecas” com referência à biblioteca do faraó Ramsés II que tinha os seguintes dizeres no cimo da porta de entrada: “Casa para terapia da alma”. Para Jorge Luis Borges “Uma biblioteca é uma autobiografia”.

Muitas vezes, já tarde nas nossas vidas, percebemos que não estivemos disponíveis nem atentos a ouvir e a aprender com os velhos, com os nossos familiares que já morreram e é assim que há “Histórias que se estragam”, porque “quando morre um velho, desaparece uma biblioteca”, segundo um adágio africano. É essa “luz por dentro”, o extraordinário conhecimento que descobrimos em tantos velhos através das suas histórias, das suas memórias e reflexões e a que tantas vezes damos pouco valor e atenção.

Como se atesta em “O Vício dos Livros”, depois de se ler um livro, sai-se sempre modificado. Um livro não pode ser neutro, nem inodoro, nem algo que não cause sobressaltos no leitor. “A leitura é um diálogo entre autor e leitor”, “… deve resultar numa transformação e um leitor deverá saber que aquele que abre um livro não é a mesma pessoa que o fecha”. “Um bom livro dirige-se ao futuro de cada leitor e não ao seu presente”. Numa das suas muitas referências bibliográficas ao longo do livro, Afonso Cruz cita Graham Greene para dizer que “Quando abrimos um livro, abrimos um futuro”.

A impressão inicial no primeiro contacto visual e táctil com “O Vício dos Livros” é confirmada quando se chega à sua última página. Dá vontade de ir buscar-lhe excertos, pequenas citações. Daqueles livros a que se vai, a que se quer voltar sempre.

8 de Outubro de 2021

 

Ao Cair da Noite; Michael Cunningham

04.10.21, Almerinda

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Ao Cair da Noite, Michael Cunningham, 2010

Este foi, de entre os três livros que até agora li de Michael Cunningham, o que menos me entusiasmou. Centrado num casal bem sucedido com profissões ligadas à arte, pertencendo a uma elite culta e endinheirada, com um casamento de vinte anos, o único “contratempo” da relação é o afastamento da filha de ambos – Beatrice – a viver em Boston. Rebecca é editora de uma revista e Peter negoceia em arte.

A aparente estabilidade do casal é posta em causa com a chegada de Mizzy, o irmão mais novo de Beatrice, que se vai instalar no apartamento do casal. Muitas das certezas de Peter, até as mais íntimas, passam a ser questionadas. Sentimentos de culpa face ao afastamento da filha; a dor da perda do irmão Matthew; as dúvidas sobre se devia denunciar ou ocultar à mulher os consumos de droga de Mizzy; as dúvidas sobre o próprio valor da arte e de artistas actuais com quem trabalha; a atracção erótica que Mizzy exerce sobre ele, tudo isto é o cerne deste romance de Michael Cunningham que decorre em Nova York.

A estrutura do romance é feita de diálogos curtos e sincopados, em que Peter, sendo personagem, mas também narrador, dialoga com o leitor, faz reflexões, questionando os seus pensamentos, partilhando as suas dúvidas, hesitações, incertezas e fragilidades. É este questionamento, este diálogo constante, o que achei mais interessante no romance, esta humildade de pôr à prova todas as certezas, até aquelas que poderiam ser vistas como inquestionáveis.

Por fim, o livro está repleto de referências a artistas contemporâneos, sobretudo americanos. Nas considerações de Peter, negociante em arte, está implícita uma crítica ao mundo da arte e das galerias em que se move, ao reconhecimento e valorização que é dado a certos artistas em detrimento de outros, em função dos patrocínios e dos padrinhos que os promovem. “Não nos encaminhamos para um reino em que o lixo é tratado de facto como um tesouro?”

Em minha opinião, esta entorse que aqui versa o real valor da arte pode aplicar-se a outras áreas da vida actual, tão obcecada pelo sucesso e pela aparência e indiferente à essência e qualidade dos valores produzidos.

28 de Setembro de 2021

 

Seis Ruas, Márcia Lima Soares

03.10.21, Almerinda

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Seis Ruas, Márcia Lima Soares, 2020

Conheci a Márcia na militância política, nos activismos mais difíceis, aqueles que põem toda a coragem de afirmar a sua identidade e os seus desejos, lutando contra a tradição, o politicamente correcto, o status quo. Afirmativa, sem rodeios, invulgar, as suas gargalhadas e postura positiva destacam-na como uma mulher que ama a vida a tempo inteiro.

Na dedicatória que me escreveu no seu “Seis Ruas” pedia-me entre outras coisas que, se quisesse, ilustrasse alguma das passagens do livro e que depois as partilhasse. Não me senti tentada nem habilitada a isso. Preferi escrever um pouco sobre o que o livro deixou em mim.

Os espaços, as ruas, as casas estão povoados de memórias. Neste caso, as seis ruas, todas na margem sul, acompanham a história da narradora e do seu irmão mais velho, aquele que ela tanto desejou quando era a filha única e com o qual teve sempre uma ligação muito próxima. Sendo muitas vezes maternal, aparece sempre como a menina viva, brincalhona e que vai acompanhando o crescimento dos irmãos que entretanto vão nascendo. Ao longo das páginas, com o decorrer dos anos e nas várias ruas onde moram, as brincadeiras, as traquinices, os desastres vão surgindo e em muitos nos revemos. Alguns episódios surgem-nos mais detalhadamente, alguns pormenores são mesmo divertidos e fazem-nos recordar as peripécias das brincadeiras das crianças. A narradora não transforma num relato fofinho o que são as constipações duma criança, nem aquilo que um rabinho limpo e bem cheiroso mostrado em anúncios televisivos apaga da realidade suja e mal cheirosa de uma criança.

Os anos passam. Novos desafios. Casas mais pequenas, sonhos de um sótão cheio de projectos, divórcio dos pais, novas amizades, novas aprendizagens. Mesmo sem querermos e à medida que o livro avança há um adensar de tragédia sempre que as datas são mencionadas com o pormenor do dia, do mês e do ano. O avô que quase se afogou e, mesmo assim, a vida a continuar num concurso televisivo em que o tema eram os pássaros. Irreverentemente, Tiago cumpriu a sua promessa exibindo o “rabo muito branco a imitar a Lua cheia”. E por fim, aquele derradeiro dia quente de Agosto no regresso de um dia bem passado na praia.

Senti este livro como um testemunho de amor ao irmão Tiago. A necessidade de, em livro, a Márcia verter mais umas lágrimas por ele, dar umas gargalhadas para lhe dizer que não o esquece, que ele está sempre com ela, mesmo vivendo agora “além Tejo”. É um testemunho muito belo e sentido, pelo qual só posso dar os parabéns à irmã que ficou para contar.

Sei que a Márcia fará muitos outros livros. Acrescentando novas ruas, novas viagens, novas cidades, novas personagens. Com todos os amores da sua vida, agora que o seu amor maior, a Laurinha, vem acrescentar um novo sentido e uma nova motivação para uma vida com muitos caminhos, muitas causas e muito amor.

3 de Outubro de 2021

Almerinda Bento